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Ponto de fuga
Fitzcarraldo
Jorge Coli
"A Valquíria", ópera de Richard Wagner , exige cantores excepcionais. Ao montá-la, qualquer teatro do mundo, mesmo os maiores, pena para encontrar um elenco homogêneo e satisfatório. Exige também grande orquestra, capaz de dominar, durante quase quatro horas,
uma escrita terrível. Desse modo, dizer simplesmente:
""A Valquíria", de Richard Wagner, foi apresentada em
Manaus", cheira a delírio manso. Acrescentar: "Com
elenco quase inteiramente brasileiro", a loucura parece
subir de grau. Imaginar um resultado que não seja capenga, mas inspirado, comovente, vibrando em cada
nota, eletrizando o público como num thriller até os últimos acordes, parece desatino de um Fitzcarraldo.
Fitzcarraldo, aqui, chama-se Luiz Fernando Malheiro.
Com uma diferença essencial: se o herói de Herzog também era mordido pela paixão da ópera, sua grandeza
épica estava no gesto inútil. O maestro Malheiro, ao
contrário, não apenas dirige ópera como poucos neste
país mas sabe amarrar o sonho mais distante aos meios
de realizá-lo. Esta Valquíria, tão forte, não nasceu de
uma hora para outra. Não é um enxerto artificial, esvaindo-se depois de algumas apresentações, sem deixar
marca. No seu amor pela ópera, Malheiro soube fazer
progredir forças musicais neste país, soube aprimorar
orquestra e escolher cantores. Soube imprimir, ao festival de Manaus, um sentido de constância e de continuidade, que autoriza os projetos mais ambiciosos. Ele lavra, sem alarde, o terreno, para que brotem as mais belas plantas.
Família - Wotan, deus nórdico, é casado com Fricka,
mas teve nove filhas com uma outra deusa, além de dois
gêmeos com uma mortal. A lista não deve parar por aí,
mas ela basta para povoar a ópera "A Valquíria". Como
são deuses e filhos de deuses, suas vozes devem ser as
mais belas e poderosas do mundo. A soprano italiano
Maria Russo encarnou Brunnhilde, a valquíria do título. Ela o canta há apenas quatro anos. Sua voz possui volume e colorido; sua técnica não tem hesitação; seu estilo demonstra expressiva autoridade: não é preciso ser
grande profeta para adivinhar que ela estará, em breve,
nos melhores teatros internacionais.
Os outros intérpretes eram brasileiros. Eduardo Álvares foi estupendo, não há outra palavra, cantando Siegmund, ao par dos mais célebres e ilustres. Sua irmã, Sieglinde, revelou uma Laura de Souza capaz de abalar o
mais empedernido ouvinte, vocalmente poderosa e
sensível. Pepes do Valle impôs Hunding, soturno, cruel,
em primeiro plano. Celine Imbert, com inteligência e a
voz renovada no controle, no timbre, no alcance, conferiu a Fricka uma presença que, muitas vezes, nem em
Bayreuth ocorre. Wotan é um papel que já deixou muitos cantores de língua de fora: Lício Bruno chegou até o
fim, soberano em controlar fragilidades. O bando das
oito valquírias, todas excelentes, testemunhou quanto a
idéia de conjunto presidiu à produção.
Clã - No segundo ato, a cenografia de Ashley Martin-Davies fazia com que os deuses andassem em cima de
uma maquete. Ela evocava o projeto da Nova Berlim,
que o arquiteto Albert Speer concebera para Hitler. As
fraquezas de Wotan, entre autoritarismo e respeito de
leis e regras, adquiriam ali a dimensão histórica dos desequilíbrios políticos.
Traço - "A Valquíria" do teatro Amazonas, ao que se
diz, será gravada em DVD, boa e excelente coisa. Mas o
festival programou também, neste ano, uma ópera
muito rara de Carlos Gomes, "Condor", com ótimo
elenco, encabeçado por Fernando Portari, Celine Imbert e José Gallisa. O registro aqui se torna mais obrigatório: o único testemunho dessa obra em disco, editado
pela Masterclass, é uma gravação muito antiga e precária. "Condor" significou uma renovação musical na
obra de Gomes e toma grande importância no patrimônio da música brasileira. É preciso que essa representação de Manaus seja conservada em som e imagem, para
que um público muito mais vasto possa descobri-la.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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