São Paulo, domingo, 28 de maio de 2000 |
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+ comportamento O surgimento da sociofobia permite vislumbrar a natureza subjetiva da psiquiatria Sociofobia - o comércio da timidez
MICHELLE COTTLE
Você tem dificuldade para falar em público?
Você tem dificuldade para fazer amizades?
Você é uma pessoa tímida?
Se respondeu "sim", poderia participar de um
programa de pesquisa financiado pelo Instituto Nacional de Saúde Mental (EUA). Mesmo que você sempre
tenha considerado a timidez um dos elementos de sua
personalidade, parece que a ciência médica decidiu que
essa característica pode ser na verdade a expressão de
um distúrbio mental crônico. E você não está só, pelo
contrário. Segundo a Associação Psiquiátrica Americana (APA), está ocorrendo uma verdadeira epidemia de
timidez patológica. A APA avalia que um oitavo dos
americanos, em algum momento da vida, serão vitimados pela doença da ansiedade social -também conhecida como sociofobia. De acordo com os médicos, a sociofobia pode reduzir a personalidade mais animada a
um estado de trêmula introversão. O ator Laurence Olivier e o rei Jorge 6º da Inglaterra, por exemplo, teriam
sido vítimas da sociofobia. Se a proporção de 1 para 8
estiver correta, a sociofobia é a terceira doença mental
mais comum em um país como os Estados Unidos, depois da depressão e do alcoolismo.
Médicos, empresas e cidadãos comuns estão mobilizados para dar o alarme sobre essa ameaça à saúde
-disseminando a má notícia de que a sociofobia é
avassaladora, juntamente com a boa notícia de que agora ela pode ser tratada com medicamentos. No ano passado, a indústria farmacêutica SmithKline Beecham recebeu a aprovação da FDA (agência que regula medicamentos nos EUA) para comercializar o Paxil, um antidepressivo semelhante ao Prozac, para tratamento da
doença. Ao mesmo tempo, uma coalizão de grupos sem
fins lucrativos (com apoio financeiro da SmithKline)
lançou uma campanha de esclarecimento público sobre
o problema, construída em torno do inteligente slogan:
"Imagine ser alérgico a gente".
Resumindo, a sociofobia é o que os médicos às vezes
chamam de "diagnóstico quente". A pesquisa e o marketing sobre o tema -afecção que há dez anos mal tinha registro na literatura profissional- ilustram como
certos traços de personalidade antes considerados perturbadores, mas "normais", podem ser reclassificados
como sintomas de uma condição médica que pode ser
tratada.
Esse processo tem um lado positivo, é claro. Muitas
pessoas que eram prejudicadas pelos sintomas se beneficiaram do maior conhecimento sobre depressão e sobre os medicamentos existentes para tratá-las. Mas a
súbita onda da sociofobia também serve para lembrar
que as doenças não aparecem, simplesmente.
As definições de doença e de saúde não pertencem exclusivamente ao reino da ciência pura. São também fenômenos sociais, culturais e econômicos. Não são inventadas, exatamente, mas incutidas e moldadas para
aceitação pública por um conjunto de pesquisadores
médicos, profissionais de saúde mental, laboratórios
farmacêuticos e grupos de opinião, todos atuando em
graus variados de ambição, conhecimento científico,
oportunismo e boas intenções. Em geral é um processo
longo e penoso.
Assim, o surgimento da sociofobia permite vislumbrar não tanto a anatomia de uma doença específica,
mas a natureza da medicina psiquiátrica, ainda inerentemente subjetiva, e as forças culturais que ajudam a
traçar os limites entre o que nos dizem para considerar
normal e o que nos dizem para considerar patológico.
Um distúrbio como a sociofobia não surge espontaneamente, na forma completa, de algum recesso febril
do cérebro humano. Antes que possa estrear adequadamente, equipes de pesquisadores e psiquiatras, às vezes
trabalhando com um mero punhado de sintomas semelhantes encontrados em pacientes isolados, devem
conceituar o problema, defini-lo e avaliar que porcentagem da população poderia sofrer dele. Essa última parte
é especialmente importante porque, para uma doença
mental causar verdadeira sensação nas comunidades
clínica e empresarial, é preciso que afete muita gente.
Liebowitz participou da equipe consultora encarregada de atualizar o verbete sobre sociofobia. Ele explica que, à luz de análises adicionais, o comitê decidiu incluir um subtipo genérico da condição. Esse acréscimo, combinado ao uso de questionários de filtragem mais abrangentes, levou ao subsequente aumento dos índices da doença entre toda a população, diz Liebowitz. Mais importante, porém, pode ter sido a decisão do comitê de retirar dos critérios de diagnóstico a frase "um desejo compulsivo de evitar". Desde então uma pessoa poderia ser classificada como sociofóbica se sua ansiedade simplesmente lhe causasse "perturbação intensa". Perguntado sobre essa alteração semântica crucial, Liebowitz explica: "Acho que a questão principal é que há pessoas que lutam para superar situações difíceis". Estas não passariam no teste da aversão total, mas também suportam as situações sociais com "enorme esforço pessoal". "Não queremos penalizar essas pessoas", diz. "Não queremos dizer que para se enquadrar na definição e ter reembolso do tratamento elas devem parar de se esforçar." Seja qual for o raciocínio, o impacto dessa mudança no diagnóstico foi notável. Um estudo publicado em janeiro de 1994 nos Arquivos de Psiquiatria Geral avalia em 13% a incidência da sociofobia entre os norte-americanos -a proporção de 1 para 8 hoje em voga. Um estudo posterior, publicado na edição de fevereiro de 1996 do mesmo periódico, registra conclusões semelhantes. Salientando o aumento dramático em relação à pesquisa anterior, os autores do estudo explicaram que é sobretudo uma questão de definição: se tivessem usado o padrão da "aversão" do DSM-3, o índice registrado teria caído para 8,3%; caso se limitassem aos questionários mais estritos dos estudos anteriores, o índice teria caído ainda mais, para 4,8%. Pessoas normais Os próprios questionários de pesquisa convidam a uma interpretação ampla da sociofobia. Por exemplo, na primeira fase de uma pesquisa canadense, perguntou-se às pessoas se em certas situações -como "participar de reuniões sociais" ou "falar para uma grande platéia"- elas tendiam a ficar "muito mais nervosas", "um pouco mais nervosas" ou "mais ou menos iguais" às outras pessoas. Às que responderam "muito mais" ou "um pouco mais" perguntou-se então que situação as perturbava mais, em que grau isso tinha um impacto negativo em suas vidas e a que ponto essa perturbação as "incomodava". As opções de resposta eram "nada", "um pouco", "um grau moderado" ou "demais" (com base nos padrões do DSM-3-R -"interferência ou perturbação intensa"-, essa pesquisa definiu a taxa de incidência de sociofobia em pouco mais que 7%). A pesquisa foi feita por telefone -opção que dificilmente propicia uma análise cuidadosa pelos entrevistadores. Mas em qualquer circunstância as perguntas estariam abertas a mais interpretações. É da natureza humana supor que somos menos descontraídos ou aptos do que os outros para conversar, falar em público, sermos entrevistados para empregos ou flertar com o sexo oposto. Isso é especialmente verdadeiro na adolescência -que seria a fase de maior ocorrência de sociofobia. Depois de avaliar vários outros modelos de pesquisa igualmente vagos, decidi realizar por conta própria um estudo não-científico. Pedi a alguns colegas de trabalho na "The New Republic" que fizessem um teste rápido de diagnóstico criado por um psiquiatra da Universidade Duke. Primeiro, os participantes deviam classificar numa escala de 0 a 4 seu medo ou sua aversão a sete situações sociais: falar em público ou diante de outras pessoas, falar com superiores hierárquicos, falar com estranhos, sentir-se envergonhado ou humilhado, ser criticado, frequentar reuniões sociais e fazer alguma coisa sendo observado (exceto falar). Em seguida eles deviam classificar o grau em que as situações sociais lhes causavam rubor, tremor, palpitação ou suor. O livro de que tirei o teste, "Social Fobia", do médico John R. Marshall, advertia que "não existe uma nota absoluta que indique sociofobia". Como ponto de comparação, porém, ele explicava que "pacientes numa pesquisa de tratamento para sociofobia tinham notas anteriores ao tratamento entre 19 e 56". Dos 23 funcionários da "The New Republic" que fizeram o teste (os outros supostamente eram tímidos demais), a nítida maioria ficou acima de 19. Sem dúvida deve ser muito mais excitante trabalhar na pesquisa ou no tratamento de um distúrbio mental que afeta 35 milhões de pessoas do que em outro que afete, digamos, 2 milhões. Para começar, quanto mais vítimas uma doença faz, maior a pressão para que o governo financie pesquisas sobre ela. Atualmente existem mais de 20 projetos de pesquisa sobre sociofobia financiados pelos Institutos Nacionais de Saúde (em 1986 havia apenas um). Mas os dólares do governo representam apenas migalhas da torta das verbas. Diante de uma base de clientes de tamanho suficiente, a indústria farmacêutica abrirá todos os caminhos. Entrevistado pelo jornal "The New York Times", Liebowitz, que também dá consultoria ao setor farmacêutico, afirmou que, quando a incidência de sociofobia chegou a 8% ou 9% (em boa parte graças à definição ampliada que ele defendeu), as empresas de medicamentos demonstraram um agudo interesse pela sina dos sociofóbicos. Esse interesse com frequência se manifesta na forma de financiamento direto de pesquisas. Outras vezes as empresas canalizam dinheiro por intermédio de entidades sem fins lucrativos como a APA -cujo site sobre sociofobia na Web é sustentado pela SmithKline- e a ADAA. A campanha "alérgico a gente" é só um dos diversos projetos da ADAA patrocinados pela indústria farmacêutica. Participação isenta Três anos atrás, para facilitar esses empreendimentos conjuntos, a ADAA formou um comitê consultor com representantes de aproximadamente dez laboratórios farmacêuticos. O comitê ajuda a associação a conceituar e financiar diversos projetos educativos. Ross, da ADAA, descreve a participação do setor nessas iniciativas como "isenta, mas maravilhosamente producente". No entanto os fabricantes de remédios e a ADAA evitam indicar exatamente quem controla que partes desses projetos. Por exemplo, a campanha "alérgico a gente" é orquestrada pela agência de publicidade da SmithKline, a Cohn & Wolfe Healthcare. Uma parte do trabalho foi feita sem remuneração. O restante, segundo Ross, foi pago diretamente pela gigante farmacêutica. "Eu faço questão de não me envolver. Nós não queremos saber", ela explica. Richard Koenig, da SmithKline, insiste, porém, que em projetos desse tipo a companhia simplesmente dá o dinheiro à ADAA, que o distribui como achar melhor. Ross admite que, devido ao papel da ADAA como grupo de opinião, seus laços com a indústria farmacêutica exigem que ela "ande na linha". Sua política básica é "nunca fazer nada que promova ou comercialize diretamente medicamentos e coisas relacionadas". Apesar disso, os fabricantes geralmente encontram meios de deixar suas impressões nos projetos que apóiam. Um folheto da ADAA sobre sociofobia de 1996, "patrocinado por uma verba educacional da SmithKline Beecham", ressalta que "em geral os medicamentos são eficazes no tratamento da sociofobia e podem ser usados com ou sem outros tratamentos". Não se mencionam os altos índices de "recaída" ligados ao tratamento com remédios (o número citado com mais frequência é 50%, seis meses após a interrupção da medicação). Embora não haja dados concretos para comprovar que a terapia com uma combinação de drogas seja mais eficaz, essa é a opinião geral dos profissionais. "Há menor probabilidade de recaída quando a pessoa já fez terapia de comportamento cognitivo", diz Ross, que é dona de um centro de tratamento para distúrbios da ansiedade. Uma pessoa que apenas toma medicamentos não sabe enfrentar situações estressantes que surgem mais adiante, ela explica. É claro que até a mais desinteressada campanha educativa beneficia os fabricantes de remédios. Cada vez mais a indústria vê como meta de marketing a comercialização da doença, e não apenas do medicamento para tratá-la. Na "era dos antidepressivos", David Healy, diretor do departamento de medicina psicológica da Universidade do País de Gales, afirma que "as empresas farmacêuticas evidentemente fabricam remédios, mas menos evidentemente fabricam opiniões sobre as doenças. Não o fazem forjando novas idéias nos laboratórios farmacêuticos, mas reforçam certas opiniões". Depressão comercializada Healy lembra que na década de 60, para promover um antidepressivo, um laboratório "comercializou o conceito de depressão comprando e distribuindo 50 mil exemplares de um livro que ensinava a identificar e tratar a depressão em ambientes médicos". Se os médicos fossem sensibilizados para os indícios da doença, aumentaria muito a probabilidade de os identificar nos pacientes. Um exemplo mais recente foi o financiamento, por laboratórios, do Dia Nacional de Contenção da Sociofobia e Outros Distúrbios da Ansiedade. O evento anual -oficialmente patrocinado pela ADAA- cresceu e já conta com 1.600 pontos de avaliação. A ADAA orgulha-se de que, num desses eventos recentes, 76% dos participantes relataram que "a ansiedade interfere em (suas) vidas cotidianas", e 51% foram aconselhados a procurar tratamento. Em seu livro, Healy nota um padrão emergente no campo da medicina psiquiátrica: sabe-se da existência de um distúrbio mental relativamente raro, descobre-se o efeito de uma droga psicotrópica sobre o problema e em seguida o índice de diagnósticos aumenta exponencialmente. Ele verifica esse aumento na história da depressão, do distúrbio do pânico, do distúrbio obsessivo-compulsivo e da sociofobia. "Isso não quer dizer que os psiquiatras ou as empresas farmacêuticas estejam fabricando doenças mentais", diz o doutor Carl Elliott, professor adjunto no Centro para Bioética da Universidade de Minnesota. "Elas existem. Mas os limites são muito imprecisos. E, quando se pode ganhar dinheiro com uma droga psicoativa, subitamente surge um grande interesse em expandir esses limites." A maioria dos profissionais de saúde mental ressalta a enorme diferença entre a sociofobia e as inseguranças corriqueiras. "É mais que simples timidez" tornou-se uma espécie de mantra na APA. Mas é difícil distinguir entre um caso "leve" de sociofobia e a timidez "normal". Ross sugere que uma pessoa sociofóbica é tão dominada pela ansiedade que realmente evita certas situações. Mas não segundo o DMS-3-R (ou o DSM-4, nesse caso). Liebowitz, por sua vez, diz que tudo existe num espectro. "É uma questão de definição. A sociofobia é uma timidez tão grave que causa verdadeira perturbação ou deixa a pessoa incapacitada, que realmente interfere em sua vida ou a faz sentir-se arrasada." Portanto a distinção entre timidez e doença mental é hoje uma questão do que cada indivíduo considera "perturbação intensa" e de quanto a percepção da própria personalidade confere com a percepção do que deveria ser. A afirmação de que a sociofobia não é "apenas timidez" sugere uma linha divisória que simplesmente não existe. No fundo, a maioria das pessoas sabe que a timidez -por mais perturbadora que seja- não é uma doença. Mas a sociofobia, estão sempre nos advertindo, é algo completamente diferente. Não é normal. Se você sente isso, precisa de ajuda. Se 1 em cada 8 americanos, por exemplo, é vítima desse distúrbio, a probabilidade de que você seja um deles é bem grande, não é? E, mesmo que não seja, talvez fosse ótimo receber uma ajuda farmacológica. A ciência não pode determinar o ponto exato em que a timidez de uma pessoa é "normal" e não será afetada por drogas. Busca de satisfação Assim como o surgimento do Prozac levou muitos yuppies moderadamente ansiosos a experimentá-lo em busca de satisfação, não serão poucos os que verão nas drogas contra a sociofobia um meio de melhorar a autoconfiança. A experiência do Prozac também mostra que não se pode necessariamente confiar que os médicos avaliarão com cuidado cada indivíduo antes de rabiscar uma prescrição. Cada vez mais psiquiatras estão saindo de cena enquanto os vendedores de medicamentos "educam" práticos e internos para identificar e tratar (isto é, medicar) os distúrbios mentais. Nada disso pretende sugerir que algumas pessoas não estejam sofrendo. Existem os que têm um medo debilitante do intercâmbio social. Raramente saem de casa. Não conseguem ir à escola ou ter um emprego. É impossível namorar. Mas que o sistema de saúde mental e as empresas farmacêuticas afirmem que 35 milhões de americanos vagam num mar de timidez patológica ultrapassa os limites do plausível. É mais provável que essa "epidemia" seja uma nova etapa da cruzada cultural para "medicinalizar" qualquer característica -física ou de comportamento- que não se enquadre nos falsos ideais criados pela cultura pop, pela publicidade e pelas normas morais e políticas em mutação. E, quanto mais pessoas aceitarem esses ideais definidos culturalmente, menos tolerantes seremos com as que não aceitem. "Certamente existe um aspecto cultural muito relevante no fato de a timidez ser considerada vergonhosa", diz Elliott, da Universidade de Minnesota. "Os americanos parecem considerar a timidez uma grande deficiência social. Escrevemos livros de auto-ajuda para superar a timidez, o que para meus amigos chineses e japoneses é muito estranho. Nos Estados Unidos supõe-se de modo geral que ser extrovertido é uma tendência natural das pessoas." Realmente pode-se questionar até que ponto essa epidemia nacional de sociofobia decorre da sensação crescente de que todos devem ser agressivos e impositivos, devem lutar pelo estrelato. Esqueça a vida tranquila de contemplação. Para obter seus 15 minutos de fama, casais fazem fila para expor os aspectos mais degradantes ou banais de suas vidas ao escrutínio público, por intermédio de programas de televisão ou da Internet. Temos cada vez menos admiração pelos que não agarram a vida pelo pescoço. E, se tivermos que tratar um oitavo da população com drogas caras para colocá-la na linha, que seja. Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves. Texto Anterior: Quem é Próximo Texto: + memória - Mario Sergio Conti: Tão outra, eu mesma Índice |
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