São Paulo, domingo, 28 de maio de 2000


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+ memória
Morta no último dia 17, Elsie Lessa se tornou uma das maiores cronistas brasileiras ao buscar exprimir a fugacidade das cenas cotidianas
Tão outra, eu mesma

Mario Sergio Conti
da Reportagem Local

Elsie Lessa detestava calor, pressa e mau humor. Gostava de viajar, de escrever, de conversar. O seu Rio de Janeiro predileto era o do mês de maio, depois dos exageros do verão, quando caminhava sozinha pela praia e nadava, inclusive nos dias de chuva. Ela levou décadas para se reconciliar com São Paulo, onde nasceu há 88 anos e teve infância pobre. Não pobre de pedir comida na rua, mas de a luz da casa às vezes ser cortada no fim do mês por falta de pagamento, do dinheiro ser contado e não chegar para comprar roupas bonitas.
Sua mãe era dona de pensão. Seu pai, pastor presbiteriano, um erudito. Por conta de seu cargo na igreja, foi algumas vezes à Escócia. Ele amava a literatura inglesa do século 19 e traduziu Platão direto do grego. Era uma família quatrocentona, descendente de Brás Cubas, de há muito estabelecida nas letras. Elsie Lessa era neta de Julio Ribeiro, o criador da bandeira paulista, autor de "Gramática Expositiva da Língua Portuguesa" e do romance "A Carne", pedra de toque do naturalismo.
Aos 18 anos, formada em contabilidade e trabalhando como estenógrafa e datilógrafa para ajudar nas despesas da casa, Elsie casou com um primo, também ele filho de pastor presbiteriano, o escritor Orígenes Lessa, o autor do romance "O Feijão e o Sonho". Ela passou a frequentar os meios modernistas de São Paulo, escreveu contos e editou uma revista feminina, "Lar Moderno".
Já com um filho, o jornalista e escritor Ivan Lessa, o casal mudou para Nova York durante a Segunda Guerra. Lá, Elsie fez curso de enfermagem, produziu programas em português para a rádio NBC e, como era linda, começou carreira de modelo e foi capa da "Harper's Bazaar". Orígenes e Elsie voltaram para o Brasil em 1943 e passaram a morar no Rio de Janeiro. Frequentavam as rodas boêmio-literárias, nas quais ela brilhava pela beleza, pelo bom humor, por gostar de ouvir e contar casos. Dois anos depois, Elsie começou a trabalhar em "O Globo" e virou repórter e cronista.
E que cronista. Nos seus primeiros 16 anos de jornal, publicava crônicas seis vezes por semana. Depois, os textos se tornaram semanais e, nos últimos anos, quinzenais. Foram talvez mais de 5.000 crônicas em 55 anos de trabalho. Pena que só uma pequena parte delas tenha sido editada, em cinco livros, e os únicos ainda disponíveis sejam "Canta Que a Vida É um Dia" e "Formoso Tejo Meu".
E que cronista também em termos de qualidade. Elsie era culta, mas nunca foi nem fez praça de intelectual. Jamais escreveu sobre política ou a condição feminina, raramente sobre cultura e literatura, e só uma vez defendeu uma bandeira, aliás bastante impopular: a de que as brasileiras prestassem um equivalente ao serviço militar obrigatório.
Elsie Lessa tinha uma sensibilidade artística que, combinada com uma vasta experiência de vida, transformou suas crônicas num panorama da vida concreta brasileira em mais de meio século.
Sensibilidade artística: seus poderes de observação desciam às minúcias do que descrevia e narrava. Descia aos odores e às cores de uma cesta de maçãs vista na infância, aos borrifos do esguicho quando dera banho de mangueira no filho, no jardim de uma casinha em São Paulo, aos reflexos de uma vitrine em Roma. Detalhes, retalhos do passado, povoavam suas crônicas. De um passado contemplado, como escreveu em "Jornada Sentimental":
"Sem aquele antigo aperto de peito, aquela angústia, aquela opressão, que foram companheiras cotidianas da minha mocidade. Feridas e espinhos que não ferem mais, devo ter aprendido um jeito de caminhar me machucando menos, acho bom sentir tudo o que já deixei para trás, sem querer um dia de volta tudo o que já vivi. Sou turista do mundo, na cidade em que nasci, numa tarde sem programa, num pedaço de vida que já quase não reconheço. Gosto de revirar dentro do peito as emoções que me voltam desses antigos caminhos, com dores antigas e antigas alegrias, que já perderam umas e outras a sua força".
Experiência de vida: Elsie correu o mundo. Durante muito tempo sua coluna teve o título de "Globe-trotter". Ela foi à África, à Escandinávia, visitou vários países da América Latina e revirou a Europa do avesso. Conveniências familiares (seu segundo marido, Ivan Pedro de Martins, serviu na embaixada brasileira na Inglaterra, onde também vivia sua neta Juliana) levaram-na a viver cinco anos em Londres e 15 em Cascais, no litoral português. Viu muita coisa e muitas coisas contou, num tempo em que não havia turismo de massa, as viagens eram longas e complicadas (sua primeira ida aos Estados Unidos levou 45 horas) e o exterior era terra incognita para o grande público.
Vida concreta brasileira: onde quer que estivesse, Elsie escrevia como uma brasileira, para brasileiros. Seus temas não eram os grandes acontecimentos políticos, altas autoridades, fatos memoráveis. Ela escrevia sobre a moça no café parisiense, as praias cariocas, ruas da São Paulo da sua meninice, buscando, sem pressa, captar a vida que se vive e o tempo que passa. Como registrou, novamente, em "Jornada Sentimental": "Num mundo que mudou tanto, tão outra eu mesma, quase fico reconhecida ao reencontrar os antigos marcos".
O Brasil teve grandes cronistas neste século. Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino e Rubem Braga, por exemplo. E teve também Elsie, que compôs esse verso no meio de uma sentença: "Tão outra eu mesma". Ela gostava de citar uma frase de G.B. Shaw, dita quando a mãe do escritor irlandês foi cremada: "That beautiful flame was my mother".
Elsie Lessa morreu na quinta-feira, dia 17 de maio, em Cascais, e, conforme pediu, foi cremada.


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