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+ memória
Morta no último dia 17, Elsie Lessa se tornou uma das maiores
cronistas brasileiras ao buscar exprimir a fugacidade das cenas cotidianas
Tão outra, eu mesma
Mario Sergio Conti
da Reportagem Local
Elsie Lessa detestava calor, pressa e
mau humor. Gostava de viajar, de escrever, de conversar. O seu Rio de Janeiro predileto era o do mês de maio, depois
dos exageros do verão, quando caminhava sozinha pela praia e nadava, inclusive nos dias de chuva. Ela levou décadas
para se reconciliar com São Paulo, onde
nasceu há 88 anos e teve infância pobre.
Não pobre de pedir comida na rua, mas
de a luz da casa às vezes ser cortada no
fim do mês por falta de pagamento, do
dinheiro ser contado e não chegar para
comprar roupas bonitas.
Sua mãe era dona de pensão. Seu pai,
pastor presbiteriano, um erudito. Por
conta de seu cargo na igreja, foi algumas
vezes à Escócia. Ele amava a literatura inglesa do século 19 e traduziu Platão direto do grego. Era uma família quatrocentona, descendente de Brás Cubas, de há
muito estabelecida nas letras. Elsie Lessa
era neta de Julio Ribeiro, o criador da
bandeira paulista, autor de "Gramática
Expositiva da Língua Portuguesa" e do
romance "A Carne", pedra de toque do
naturalismo.
Aos 18 anos, formada em contabilidade e trabalhando como estenógrafa e datilógrafa para ajudar nas despesas da casa, Elsie casou com um primo, também
ele filho de pastor presbiteriano, o escritor Orígenes Lessa, o autor do romance
"O Feijão e o Sonho". Ela passou a frequentar os meios modernistas de São
Paulo, escreveu contos e editou uma revista feminina, "Lar Moderno".
Já com um filho, o jornalista e escritor
Ivan Lessa, o casal mudou para Nova
York durante a Segunda Guerra. Lá, Elsie
fez curso de enfermagem, produziu programas em português para a rádio NBC
e, como era linda, começou carreira de
modelo e foi capa da "Harper's Bazaar".
Orígenes e Elsie voltaram para o Brasil
em 1943 e passaram a morar no Rio de
Janeiro. Frequentavam as rodas boêmio-literárias, nas quais ela brilhava pela beleza, pelo bom humor, por gostar de ouvir e contar casos. Dois anos depois, Elsie
começou a trabalhar em "O Globo" e virou repórter e cronista.
E que cronista. Nos seus primeiros 16
anos de jornal, publicava crônicas seis
vezes por semana. Depois, os textos se
tornaram semanais e, nos últimos anos,
quinzenais. Foram talvez mais de 5.000
crônicas em 55 anos de trabalho. Pena
que só uma pequena parte delas tenha sido editada, em cinco livros, e os únicos
ainda disponíveis sejam "Canta Que a
Vida É um Dia" e "Formoso Tejo Meu".
E que cronista também em termos de
qualidade. Elsie era culta, mas nunca foi
nem fez praça de intelectual. Jamais escreveu sobre política ou a condição feminina, raramente sobre cultura e literatura, e só uma vez defendeu uma bandeira,
aliás bastante impopular: a de que as brasileiras prestassem um equivalente ao
serviço militar obrigatório.
Elsie Lessa tinha uma sensibilidade artística que, combinada com uma vasta
experiência de vida, transformou suas
crônicas num panorama da vida concreta brasileira em mais de meio século.
Sensibilidade artística: seus poderes de
observação desciam às minúcias do que
descrevia e narrava. Descia aos odores e
às cores de uma cesta de maçãs vista na
infância, aos borrifos do esguicho quando dera banho de mangueira no filho, no
jardim de uma casinha em São Paulo,
aos reflexos de uma vitrine em Roma.
Detalhes, retalhos do passado, povoavam suas crônicas. De um passado contemplado, como escreveu em "Jornada
Sentimental":
"Sem aquele antigo aperto de peito,
aquela angústia, aquela opressão, que foram companheiras cotidianas da minha
mocidade. Feridas e espinhos que não ferem mais, devo ter aprendido um jeito
de caminhar me machucando menos,
acho bom sentir tudo o que já deixei para
trás, sem querer um dia de volta tudo o
que já vivi. Sou turista do mundo, na cidade em que nasci, numa tarde sem programa, num pedaço de vida que já quase
não reconheço. Gosto de revirar dentro
do peito as emoções que me voltam desses antigos caminhos, com dores antigas
e antigas alegrias, que já perderam umas
e outras a sua força".
Experiência de vida: Elsie correu o
mundo. Durante muito tempo sua coluna teve o título de "Globe-trotter". Ela foi
à África, à Escandinávia, visitou vários
países da América Latina e revirou a Europa do avesso. Conveniências familiares (seu segundo marido, Ivan Pedro de
Martins, serviu na embaixada brasileira
na Inglaterra, onde também vivia sua neta Juliana) levaram-na a viver cinco anos
em Londres e 15 em Cascais, no litoral
português. Viu muita coisa e muitas coisas contou, num tempo em que não havia turismo de massa, as viagens eram
longas e complicadas (sua primeira ida
aos Estados Unidos levou 45 horas) e o
exterior era terra incognita para o grande público.
Vida concreta brasileira: onde quer
que estivesse, Elsie escrevia como uma
brasileira, para brasileiros. Seus temas
não eram os grandes acontecimentos
políticos, altas autoridades, fatos memoráveis. Ela escrevia sobre a moça no café
parisiense, as praias cariocas, ruas da São
Paulo da sua meninice, buscando, sem
pressa, captar a vida que se vive e o tempo que passa. Como registrou, novamente, em "Jornada Sentimental":
"Num mundo que mudou tanto, tão outra eu mesma, quase fico reconhecida ao
reencontrar os antigos marcos".
O Brasil teve grandes cronistas neste
século. Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino e Rubem Braga, por exemplo.
E teve também Elsie, que compôs esse
verso no meio de uma sentença: "Tão
outra eu mesma". Ela gostava de citar
uma frase de G.B. Shaw, dita quando a
mãe do escritor irlandês foi cremada:
"That beautiful flame was my mother".
Elsie Lessa morreu na quinta-feira, dia
17 de maio, em Cascais, e, conforme pediu, foi cremada.
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