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As duas vidas de Rimbaud
Ivo Barroso
especial para a Folha
Muitos leitores poderiam esperar
deste "Rimbaud, o Filho", do escritor francês Pierre Michon, uma análise do relacionamento entre o poeta de
Charleville e seus pais; o "desertor" capitão Rimbaud e sua mulher, a amarga e
forreta Vitalie Cuif. Entre os livros "convencionais" de estudos rimbaldianos
-pitorescamente denominados "Vulgata" por
Michon-, há pelo menos
três que tratam diretamente do assunto: "Madame Rimbaud", de Françoise Lalande; "Rimbaud
et Son Père", de Charles
Henry L. Dodenham; e
"L'Adolescent Rimbaud", de Robert
Montal. Mas em todos eles o que se pretende é levantar feitos e ações, ao passo
que Pierre Michon está mais voltado para efeitos e emoções.
Por isso, o "filho" do título tem para ele
um sentido mais amplo e quase antitético: Rimbaud não é apenas o filho do casal Frédéric/Vitalie, mas o filho espiritual
de Hugo, de Banville, de Izambard -enfim, o filho da literatura- e é, ao mesmo
tempo, o pai da poesia por
ter conseguido superá-los, ultrapassá-los e de fato expressar aquele "frisson nouveau" que Victor
Hugo atribuía a Baudelaire.
Daí ter escrito um livro
sumamente singular,
cheio de tensão, como se fosse o depoimento de alguém que estivesse observando Rimbaud ao vivo ou, mais que isso, penetrando e decodificado seus sentimentos íntimos e suas reações aparentemente ilógicas.
E o faz num estilo que é ao mesmo tempo surreal e realístico, que prima pela
originalidade, representante da nova literatura francesa, ainda que o relato venha repassado de referências extraídas
da obra do poeta ou hauridas nas páginas incontáveis da vulgata.
A maior ousadia que conhecemos neste campo até agora é a "autobiografia" de
Rimbaud, uma vida de Rimbaud escrita
na primeira pessoa, de autoria do escritor alemão Henning Boëtius, "Ich ist ein
anderer" ("Je est un autre"), em que o
autor se esmera por assumir a "personna" de Rimbaud e soar por meio dela
com a força do "gamin", embora não raro faça sobressair a posada vulgaridade
deste em detrimento de sua autêntica genialidade.
Pierre Michon quis um pouco mais
que isso: descobrir a razão que faz de
Rimbaud a própria imagem da poesia.
Desse Rimbaud misterioso e enigmático,
em torno do qual há pelo menos dois
momentos que intrigam todos os seus
leitores e estudiosos: 1) Por que deixou
de escrever?; 2) Por que uma mulher tão
sovina e beata quanto Vitalie Cuif teria
emprestado ao filho dinheiro para publicar um livro tão estranho quanto "Une
Saison en Enfer". Michon dá seu parecer,
no livro, sobre a primeira questão.
Acha que Rimbaud descobriu não
muito a tempo que a verdadeira vida não estava na poesia, mas sim no dinheiro
("que o verbo não era esse passaporte
universal com o qual sonhara" e "percebeu um pouco tarde que só o ouro tinha
alguma chance de ser essa senha"), e por
isso tratou de amealhá-lo no famoso cinturão, à custa de mil sacrifícios.
A hipótese aproxima-se bastante daquela que admite ter o poeta vivido duas
vidas consecutivas: uma dedicada à poesia e outra aos negócios, à semelhança
desses jovens que são anarquistas aos 18
e "zangões" da Bolsa aos 20. Acha, ainda,
que "ele parou de escrever porque não
pôde tornar-se o filho de suas obras, ou
seja, aceitar a paternidade delas". Hipótese que revela o terreno imponderável
por onde não raro caminha a narrativa.
Contudo, o autor elabora em torno
desse e de outros pontos-chave da biografia rimbaldiana com um impulso jubilatório que consegue provocar no leitor uma cumplicidade de pensamento e
de visão, fazendo deste uma espécie de
comparsa ou testemunha de suas fantasias. Um livro de impressões, é certo,
mas escrito com aquela "devoção" que é
quase impossível de ser reprimida por
todos os que mergulham nesse assunto.
Se ainda não é o livro que o leitor mais
exigente espera, capaz de superar toda a
vulgata e soar com a força daquela "linguagem universal" com que sonhava o
poeta, é pelo menos um livro que se coloca à margem dos estudos universitários
ou mesmo das análises pseudopsicológicas, no qual podemos distinguir um
Rimbaud realmente dotado de neurônios.
Rimbaud, o Filho
112 págs., R$ 18,00
de Pierre Michon. Tradução de
Juremir Machado da Silva. Ed.
Sulina (r. Cel. Genuíno, 290, CEP
90010-350, Porto Alegre, RS,
tel. 0/xx/51/228-1966).
Ivo Barroso é poeta e tradutor, entre outros, de
"Arthur Rimbaud - Poesia Completa".
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