São Paulo, domingo, 28 de maio de 2000


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As duas vidas de Rimbaud

Ivo Barroso
especial para a Folha

Muitos leitores poderiam esperar deste "Rimbaud, o Filho", do escritor francês Pierre Michon, uma análise do relacionamento entre o poeta de Charleville e seus pais; o "desertor" capitão Rimbaud e sua mulher, a amarga e forreta Vitalie Cuif. Entre os livros "convencionais" de estudos rimbaldianos -pitorescamente denominados "Vulgata" por Michon-, há pelo menos três que tratam diretamente do assunto: "Madame Rimbaud", de Françoise Lalande; "Rimbaud et Son Père", de Charles Henry L. Dodenham; e "L'Adolescent Rimbaud", de Robert Montal. Mas em todos eles o que se pretende é levantar feitos e ações, ao passo que Pierre Michon está mais voltado para efeitos e emoções.
Por isso, o "filho" do título tem para ele um sentido mais amplo e quase antitético: Rimbaud não é apenas o filho do casal Frédéric/Vitalie, mas o filho espiritual de Hugo, de Banville, de Izambard -enfim, o filho da literatura- e é, ao mesmo tempo, o pai da poesia por ter conseguido superá-los, ultrapassá-los e de fato expressar aquele "frisson nouveau" que Victor Hugo atribuía a Baudelaire.
Daí ter escrito um livro sumamente singular, cheio de tensão, como se fosse o depoimento de alguém que estivesse observando Rimbaud ao vivo ou, mais que isso, penetrando e decodificado seus sentimentos íntimos e suas reações aparentemente ilógicas.
E o faz num estilo que é ao mesmo tempo surreal e realístico, que prima pela originalidade, representante da nova literatura francesa, ainda que o relato venha repassado de referências extraídas da obra do poeta ou hauridas nas páginas incontáveis da vulgata.
A maior ousadia que conhecemos neste campo até agora é a "autobiografia" de Rimbaud, uma vida de Rimbaud escrita na primeira pessoa, de autoria do escritor alemão Henning Boëtius, "Ich ist ein anderer" ("Je est un autre"), em que o autor se esmera por assumir a "personna" de Rimbaud e soar por meio dela com a força do "gamin", embora não raro faça sobressair a posada vulgaridade deste em detrimento de sua autêntica genialidade.
Pierre Michon quis um pouco mais que isso: descobrir a razão que faz de Rimbaud a própria imagem da poesia. Desse Rimbaud misterioso e enigmático, em torno do qual há pelo menos dois momentos que intrigam todos os seus leitores e estudiosos: 1) Por que deixou de escrever?; 2) Por que uma mulher tão sovina e beata quanto Vitalie Cuif teria emprestado ao filho dinheiro para publicar um livro tão estranho quanto "Une Saison en Enfer". Michon dá seu parecer, no livro, sobre a primeira questão.
Acha que Rimbaud descobriu não muito a tempo que a verdadeira vida não estava na poesia, mas sim no dinheiro ("que o verbo não era esse passaporte universal com o qual sonhara" e "percebeu um pouco tarde que só o ouro tinha alguma chance de ser essa senha"), e por isso tratou de amealhá-lo no famoso cinturão, à custa de mil sacrifícios.
A hipótese aproxima-se bastante daquela que admite ter o poeta vivido duas vidas consecutivas: uma dedicada à poesia e outra aos negócios, à semelhança desses jovens que são anarquistas aos 18 e "zangões" da Bolsa aos 20. Acha, ainda, que "ele parou de escrever porque não pôde tornar-se o filho de suas obras, ou seja, aceitar a paternidade delas". Hipótese que revela o terreno imponderável por onde não raro caminha a narrativa.
Contudo, o autor elabora em torno desse e de outros pontos-chave da biografia rimbaldiana com um impulso jubilatório que consegue provocar no leitor uma cumplicidade de pensamento e de visão, fazendo deste uma espécie de comparsa ou testemunha de suas fantasias. Um livro de impressões, é certo, mas escrito com aquela "devoção" que é quase impossível de ser reprimida por todos os que mergulham nesse assunto.
Se ainda não é o livro que o leitor mais exigente espera, capaz de superar toda a vulgata e soar com a força daquela "linguagem universal" com que sonhava o poeta, é pelo menos um livro que se coloca à margem dos estudos universitários ou mesmo das análises pseudopsicológicas, no qual podemos distinguir um Rimbaud realmente dotado de neurônios.



Rimbaud, o Filho
112 págs., R$ 18,00 de Pierre Michon. Tradução de Juremir Machado da Silva. Ed. Sulina (r. Cel. Genuíno, 290, CEP 90010-350, Porto Alegre, RS, tel. 0/xx/51/228-1966).



Ivo Barroso é poeta e tradutor, entre outros, de "Arthur Rimbaud - Poesia Completa".

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