São Paulo, domingo, 28 de maio de 2000


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"O Rumor do Tempo" e "Viagem à Armênia" trazem a literatura estranha e desconcertante do russo Óssip Mandelstam
A radicalidade discreta de uma prosa hostil

Bernardo Carvalho
Colunista da Folha

Óssip Mandelstam (1891-1938) foi um dos maiores poetas russos do século 20, e um dos mais perseguidos. A excepcionalidade e a estranheza de "O Rumor do Tempo" (1925) e "Viagem à Armênia" (1933), textos em prosa agora lançados no Brasil, num único volume traduzido do russo por Paulo Bezerra, explicam em parte a razão. Quando publicado pela primeira vez, "Viagem à Armênia" foi veementemente atacado pelo "Pravda", jornal oficial do regime, numa campanha de difamação que terminaria, cinco anos depois, com a morte do poeta num campo de trabalhos forçados na Sibéria. No ano seguinte à publicação desse texto, Mandelstam foi preso, acusado de "atividades anti-soviéticas" por ter escrito um poema inédito, conhecido apenas por um grupo íntimo do autor, em que se referia a Stálin como "montanhês do Kremlin". Em seguida, foi confinado numa cidade do interior, num exílio forçado dentro da própria União Soviética. Em 38, foi deportado para um campo de trabalhos forçados perto de Vladivostok, onde acabou morrendo nas condições mais abjetas. Seus poemas, banidos sob o stalinismo, sobreviveram graças à memória e aos esforços de sua viúva. É evidente o incômodo que "Viagem à Armênia" pode provocar, ainda mais num mundo cujos parâmetros literários eram os do realismo socialista. Sem se submeter à prosa poética no sentido lírico mais evidente que hoje se atribui ao gênero, Mandelstam escreve prosa, mas em registro poético, o que torna tudo ainda mais estranho e original.

Gosto do estranho
Em vez de um simples relato de viagem, que poderia ter sido tão bem recebido pelas autoridades soviéticas, em vez de notas de uma aventura antropológica em que o projeto soviético fosse exaltado como o nascimento do mundo do futuro, o etnólogo amador diz o que não deve: "Gostar do estranho não faz parte dos nossos méritos. Os povos da URSS convivem como escolares. Só se conhecem pela carteira da sala de aula e ainda assim durante o recreio, enquanto se quebra o giz". Seus comentários são muito literários; é por referências culturais e artísticas que Óssip Mandelstam ergue as pontes que lhe permitem chegar à sua própria Armênia, um território tão real quanto imaginário. Suas imagens são as mais pessoais: "A aldeia de Achtarak paira sobre o rumor da água como sobre um esqueleto de arame". Há alguma coisa nessa prosa que dificulta o entendimento, o encadeamento tradicional e natural do sentido, como se tivesse sido escrita para ser poesia sem sê-lo. O mais desconcertante, o que tira as coisas do lugar e as torna inesperadas, é que essa frequência poética está implícita; não são textos explicitamente poéticos. Da mesma forma, "O Rumor do Tempo" é um texto memorialista, só que contra a memória, um texto de uma nostalgia cifrada, em que as lembranças pessoais são pontuadas pela sua denegação: "Não quero falar de mim, mas seguir de perto o século, o rumor e a germinação do tempo. Minha memória é hostil a tudo o que é pessoal. Se dependesse de mim, eu me limitaria a franzir o cenho ao recordar o passado. (...) Repito: minha memória não é amorosa, mas hostil, e não trabalha a reprodução, mas o descarte do passado. Um intelectual sem origem na nobreza não precisa de memória, basta-lhe falar de livros que leu e a biografia está pronta. (...) Sobre mim e sobre muitos contemporâneos paira uma gagueira de nascença". "Rumor do Tempo" é, assim, paradoxalmente, um texto sobre a infância do autor, filho de uma família judia de classe média culta de São Petersburgo, durante os últimos "anos de letargia" do século 19 e sua juventude de estudante nas primeiras décadas do século 20, em que as lembranças de pessoas próximas, cheiros, impressões e fatos particulares por ele presenciados enquanto a Rússia caminhava para a Revolução de 17 são entrecortados por reflexões sobre a cultura e a história. Mandelstam é um escritor contraditório, em que a autonegação daquilo que o texto parece afirmar serve para roubá-lo ao reconhecimento fácil, ao enquadramento dos gêneros, denota a procura de uma literatura que só pode existir pelo inesperado, pelo que ainda não foi nomeado, uma literatura que é análoga à idéia de uma revolução permanente.

Contra a estagnação
Esse movimento contra a estagnação já estava presente nos seus primeiros poemas da fase acmeísta (movimento que congregou, nos anos de 1910, poetas como Gumiliov e Anna Akhmatova e que repudiava a mística e as afetações simbolistas em nome de um materialismo da existência). Sem jamais ser explicitamente político e apesar de sua simpatia pelas revoluções de 1905 e 17, Mandelstam acabou pagando caro, assim como os outros representantes do acmeísmo, por uma radicalidade discreta -insuportável para qualquer política.
Nem sempre é fácil entender do que fala Mandelstam, e não apenas pelas inúmeras referências que as notas do tradutor tentam esclarecer, mas porque ele quer que as palavras digam mais do que o simples relato.
"Eu quero viver no particípio imperativo do futuro, na voz passiva -no "deve ser'", diz o escritor para si mesmo ao atravessar a cavalo os acampamentos nômades e os pastos da Armênia. "Do céu caíram três maçãs: a primeira, para quem contou a história, a segunda, para quem ouviu, e a terceira, para quem entendeu. Assim termina a maioria dos contos populares armênios." Assim poderia terminar também este livro de Óssip Mandelstam.



O Rumor do Tempo e Viagem à Armênia
162 págs., R$ 18,00 de Óssip Mandelstam. Tradução de Paulo Bezerra. Ed. 34 (r. Hungria, 592, CEP 01455-000, SP, tel. 0/xx/11/816-6777).




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