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"O Rumor do Tempo" e "Viagem à Armênia" trazem a literatura estranha e desconcertante do russo Óssip Mandelstam
A radicalidade discreta de uma prosa hostil
Bernardo Carvalho
Colunista da Folha
Óssip Mandelstam (1891-1938) foi
um dos maiores poetas russos do
século 20, e um dos mais perseguidos. A
excepcionalidade e a estranheza de "O
Rumor do Tempo" (1925) e "Viagem à
Armênia" (1933), textos em prosa agora
lançados no Brasil, num único volume
traduzido do russo por Paulo Bezerra,
explicam em parte a razão.
Quando publicado pela primeira vez,
"Viagem à Armênia" foi veementemente
atacado pelo "Pravda", jornal oficial do
regime, numa campanha de difamação
que terminaria, cinco anos depois, com a
morte do poeta num campo de trabalhos
forçados na Sibéria. No ano seguinte à
publicação desse texto, Mandelstam foi
preso, acusado de "atividades anti-soviéticas" por ter escrito um poema inédito,
conhecido apenas por um grupo íntimo
do autor, em que se referia a Stálin como
"montanhês do Kremlin".
Em seguida, foi confinado numa cidade do interior, num exílio forçado dentro
da própria União Soviética. Em 38, foi
deportado para um campo de trabalhos
forçados perto de Vladivostok, onde acabou morrendo nas condições mais abjetas. Seus poemas, banidos sob o stalinismo, sobreviveram graças à memória e
aos esforços de sua viúva.
É evidente o incômodo que "Viagem à
Armênia" pode provocar, ainda mais
num mundo cujos parâmetros literários
eram os do realismo socialista. Sem se
submeter à prosa poética no sentido lírico mais evidente que hoje se atribui ao
gênero, Mandelstam escreve prosa, mas
em registro poético, o que torna tudo
ainda mais estranho e original.
Gosto do estranho
Em vez de um
simples relato de viagem, que poderia ter
sido tão bem recebido pelas autoridades
soviéticas, em vez de notas de uma aventura antropológica em que o projeto soviético fosse exaltado como o nascimento do
mundo do futuro, o etnólogo amador diz o que
não deve: "Gostar do estranho não faz parte dos
nossos méritos. Os povos da URSS convivem como escolares. Só se conhecem
pela carteira da sala de aula e ainda assim
durante o recreio, enquanto se quebra o
giz".
Seus comentários são muito literários;
é por referências culturais e artísticas que
Óssip Mandelstam ergue as pontes que
lhe permitem chegar à sua própria Armênia, um território tão real quanto
imaginário. Suas imagens são as mais
pessoais: "A aldeia de Achtarak paira sobre o rumor da água como sobre um esqueleto de arame".
Há alguma coisa nessa prosa que dificulta o entendimento, o encadeamento
tradicional e natural do sentido, como se
tivesse sido escrita para ser poesia sem
sê-lo. O mais desconcertante, o que tira
as coisas do lugar e as torna inesperadas,
é que essa frequência poética está implícita; não são
textos explicitamente
poéticos.
Da mesma forma, "O
Rumor do Tempo" é um
texto memorialista, só
que contra a memória,
um texto de uma nostalgia cifrada, em que as lembranças pessoais são pontuadas pela sua denegação:
"Não quero falar de mim, mas seguir de
perto o século, o rumor e a germinação
do tempo. Minha memória é hostil a tudo o que é pessoal. Se dependesse de
mim, eu me limitaria a franzir o cenho ao
recordar o passado. (...) Repito: minha
memória não é amorosa, mas hostil, e
não trabalha a reprodução, mas o descarte do passado. Um intelectual sem
origem na nobreza não precisa de memória, basta-lhe falar de livros que leu e a
biografia está pronta. (...) Sobre mim e
sobre muitos contemporâneos paira
uma gagueira de nascença".
"Rumor do Tempo" é, assim, paradoxalmente, um texto sobre a infância do
autor, filho de uma família judia de classe
média culta de São Petersburgo, durante os últimos
"anos de letargia" do século 19 e sua juventude de
estudante nas primeiras
décadas do século 20, em
que as lembranças de pessoas próximas, cheiros,
impressões e fatos particulares por ele presenciados enquanto a Rússia caminhava para a
Revolução de 17 são entrecortados por
reflexões sobre a cultura e a história.
Mandelstam é um escritor contraditório, em que a autonegação daquilo que o
texto parece afirmar serve para roubá-lo
ao reconhecimento fácil, ao enquadramento dos gêneros, denota a procura de
uma literatura que só pode existir pelo
inesperado, pelo que ainda não foi nomeado, uma literatura que é análoga à
idéia de uma revolução permanente.
Contra a estagnação
Esse movimento contra a estagnação já estava presente nos seus primeiros poemas da fase
acmeísta (movimento que congregou,
nos anos de 1910, poetas como Gumiliov
e Anna Akhmatova e que repudiava a
mística e as afetações simbolistas em nome de um materialismo da existência).
Sem jamais ser explicitamente político e
apesar de sua simpatia pelas revoluções
de 1905 e 17, Mandelstam acabou pagando caro, assim como os outros representantes do acmeísmo, por uma radicalidade discreta -insuportável para qualquer política.
Nem sempre é fácil entender do que fala Mandelstam, e não apenas pelas inúmeras referências que as notas do tradutor tentam esclarecer, mas porque ele
quer que as palavras digam mais do que
o simples relato.
"Eu quero viver no particípio imperativo do futuro, na voz passiva -no "deve
ser'", diz o escritor para si mesmo ao
atravessar a cavalo os acampamentos
nômades e os pastos da Armênia. "Do
céu caíram três maçãs: a primeira, para
quem contou a história, a segunda, para
quem ouviu, e a terceira, para quem entendeu. Assim termina a maioria dos
contos populares armênios." Assim poderia terminar também este livro de Óssip Mandelstam.
O Rumor do Tempo
e Viagem à Armênia
162 págs., R$ 18,00
de Óssip Mandelstam. Tradução de Paulo Bezerra. Ed. 34 (r.
Hungria, 592, CEP 01455-000,
SP, tel. 0/xx/11/816-6777).
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