São Paulo, domingo, 28 de maio de 2006

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Bem me quer, mal me quer

O sociólogo Jorge Castañeda explica sua divisão entre esquerda boa, como Chile e Brasil, e ruim, como Bolívia e Venezuela, e fala das eleições na Colômbia, hoje, e no Peru, no dia 4

JORGE CASTAÑEDA

Com tudo o que se vem falando sobre a virada da América Latina à esquerda, poucos observadores notam que, na verdade, existem duas esquerdas na região. Uma delas tem raízes radicais, mas hoje está moderna e aberta, enquanto a outra é fechada e fortemente populista. Em lugar de se preocupar com a ascensão da esquerda de maneira geral, o resto do mundo deveria pensar em fomentar a primeira esquerda, em vez da segunda -porque é exatamente disso que a América Latina precisa.
Pouco mais de dez anos atrás, sob a égide de um grupo crescente de governos tecnocráticos centristas, a América Latina parecia estar prestes a dar início a um círculo virtuoso de progresso econômico e governança democrática aperfeiçoada. No México, fortalecido pela aprovação do Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta), o presidente Carlos Salinas de Gortari [1988-94] se preparava para ver seu sucessor escolhido a dedo vencer a próxima eleição presidencial.
O ex-ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso estava prestes a derrotar o líder trabalhista radical Luiz Inácio Lula da Silva na disputa pela Presidência do Brasil. O presidente argentino Carlos Menem tinha atrelado o peso ao dólar e deixado para trás o legado populista do peronismo. Que diferença a passagem de dez anos é capaz de fazer! Embora a região tenha acabado de desfrutar dois anos do maior crescimento econômico em muito tempo e embora as ameaças reais ao governo democrático sejam poucas e espaçadas, a paisagem atual está totalmente transformada.
A América Latina está se desviando para a esquerda, e percebem-se reações inconfundíveis contra as tendências predominantes nos últimos 15 anos: reformas de livre mercado, convergência com os EUA em relação a diversas questões e consolidação da democracia representativa.
Começando com a vitória de Hugo Chávez na Venezuela, oito anos atrás, e provavelmente culminando na possível eleição de Andrés Manuel López Obrador no pleito presidencial mexicano marcado para 2/7, uma onda de líderes, partidos e movimentos que se enquadram no rótulo genérico de "esquerdistas" vem chegando ao poder em um país latino-americano depois do outro.
Depois de Chávez, foi a vez de Lula e do PT no Brasil, depois de Néstor Kirchner na Argentina e de Tabaré Vázquez no Uruguai, e, neste ano, de Evo Morales na Bolívia.

Tsunami de esquerda
Se Ollanta Humala vencer o segundo turno [em 4/6] no Peru e López Obrador sair vencedor no México, a impressão que se terá é que a região terá sido atingida por um verdadeiro tsunami de esquerda. A Colômbia e a América Central são as únicas exceções, mas, mesmo na Nicarágua, não se pode excluir a possibilidade de vitória do líder sandinista Daniel Ortega [em novembro].
Para compreender as razões que estão por trás desses fatos, é preciso reconhecer que não existe uma esquerda latino-americana hoje, mas duas.
Uma delas é moderna, de mentalidade aberta, reformista e internacionalista e, paradoxalmente, tem suas raízes na esquerda de linha dura do passado. A outra, nascida da grande tradição do populismo latino-americano, é nacionalista, estridente e de mentalidade fechada. A primeira tem plena consciência de seus erros passados e se modificou em razão dessa consciência. A segunda, infelizmente, não fez o mesmo.
Não é difícil discernir as razões da virada à esquerda na América Latina. Ao lado de muitos outros comentaristas e intelectuais públicos, comecei há quase 15 anos a detectar essas razões, que registrei em meu livro "A Utopia Desarmada", que apresentou vários pontos fundamentais. O primeiro foi que a queda da União Soviética ajudaria a esquerda latino-americana, ao livrá-la de seu estigma geopolítico.

Pobreza abismal
O segundo ponto foi que a desigualdade extrema reinante no subcontinente, a miséria e a concentração de riqueza, renda, poder e oportunidades significavam que a região teria que ser governada por regimes situados à esquerda do centro.
Em terceiro lugar, o advento da democratização ampla e a consolidação de eleições democráticas como único caminho que conduz ao poder iriam, cedo ou tarde, resultar em vitórias da esquerda.
Essa previsão se tornou ainda mais certeira a partir do momento em que ficou claro que as reformas econômicas, sociais e políticas implementadas na América Latina a partir de meados da década de 1980 não haviam cumprido aquilo ao qual se propunham.
Com a exceção do Chile, que desde 1989 é governado por uma coalizão de centro-esquerda, a região vem apresentando índices de crescimento pouco notáveis.
Os baixos índices de crescimento implicam persistência da pobreza abismal, desigualdade, desemprego, falta de competitividade e infra-estrutura deficiente. E, apesar das esperanças de uma melhora nas relações com os EUA, elas hoje estão piores do que em qualquer outro momento da memória recente.

Bom e velho populismo
Entretanto muitos de nós que traçamos previsões acertadas sobre a volta da esquerda nos equivocamos, pelo menos em parte, em relação ao tipo de esquerda que iria emergir. Uma razão de nosso equívoco foi que a queda da União Soviética não provocou o desabamento de sua equivalente latino-americana, Cuba, como muitos esperavam que acontecesse. Mas uma explicação mais fundamental está relacionada às origens de muitos dos movimentos que hoje estão no poder.
Uma esquerda nasceu da Internacional Comunista e da revolução bolchevique e seguiu um caminho semelhante ao da esquerda no resto do mundo.
Os partidos comunistas chileno, uruguaio, brasileiro, salvadorenho e -antes da revolução de Fidel Castro- cubano conquistaram parcelas significativas do voto popular em um momento ou outro, participaram de governos de "frente popular" ou "união nacional" nas décadas de 1930 e 40, criaram uma presença sólida no movimento sindical organizado e exerceram influência importante nos meios acadêmicos e intelectuais.
A outra esquerda é peculiar à América Latina. Ela nasceu da estranha contribuição feita pela região à ciência política: o bom e velho populismo.
Ele reivindica como seus fundadores ícones históricos de grande estatura mítica, desde o peruano Victor Raúl Haya de La Torre e o colombiano Jorge Gaitán (nenhum dos quais chegou a ocupar o poder) até o mexicano Lázaro Cárdenas e o brasileiro Getúlio Vargas, ambos figuras de alicerce da história de seus países no século 20, além de Juan Perón, na Argentina, e José Maria Velasco Ibarra no Equador.
Esses populistas são representativos de uma esquerda muito diferente da primeira -com freqüência virulentamente anticomunista, sempre autoritária de uma maneira ou outra e muito mais interessada nos programas políticos como instrumento para alcançar e conservar o poder do que como ferramenta para forjar programas de governo.
Eles fizeram coisas pelos pobres mas também criaram as estruturas corporativistas que desde então se tornaram os flagelos dos sistemas políticos de seus países e também de seus movimentos sindicais e camponeses. O corolário ideológico desse misto bizarro de inclusão dos excluídos, desvario macroeconômico e poder de permanência política foi o nacionalismo estridente e virulento.
Nos casos em que a esquerda comunista reformada chegou ao poder nos últimos anos, suas políticas econômicas têm sido notavelmente semelhantes às de seus predecessores imediatos, e o respeito que ela manifesta pela democracia tem se mostrado sincero e total. O antiamericanismo da velha escola é abrandado por anos de exílio, realismo e resignação.
Os melhores exemplos da esquerda reconstruída, ex-radical, podem ser vistos no Chile, no Uruguai e, em grau um pouco menor, no Brasil. Essa esquerda enfatiza as políticas sociais -educação, programas de combate à pobreza, saúde e habitação-, mas dentro de uma estrutura de mercado mais ou menos ortodoxa.

Populismo
Já os líderes esquerdistas nascidos do passado populista e nacionalista e dotados de poucas bases ideológicas -Chávez, com seu pano de fundo militar, Kirchner, com suas raízes peronistas, Morales, com sua militância e propaganda política cocaleira, López Obrador, com suas origens no PRI- vêm se mostrando muito menos abertos às influências modernizadoras. Para eles, a retórica é mais importante do que o conteúdo, e o fato do poder vale mais do que seu emprego responsável.
Lançar desafios aos EUA vale mais do que promover os interesses reais de seus países no mundo.
Os líderes populistas de esquerda que aguardam no segundo plano dão a impressão de se preparar para seguir o mesmo modelo. Na Bolívia, Evo Morales já chegou ao poder. No México, López Obrador está perto disso. Embora Ollanta Humala, no Peru, ainda seja uma aposta cujas chances são pequenas, ele com certeza não pode ser menosprezado.

O que fazer?
A administração Bush poderia fazer alguma diferença nesse estado de coisas se cumprisse as promessas (sobre questões como imigração e comércio) feitas aos governantes que ocupam o poder atualmente na região, com isso apoiando a continuidade sem interferir no processo eleitoral.
Mas existe uma possibilidade de ação muito mais ousada, uma abordagem mais estadista, que fomentaria a "esquerda certa" em lugar de trabalhar no sentido de subverter o ressurgimento de qualquer esquerda.
Essa estratégia envolveria o apoio ativo e substantivo à esquerda certa quando ela se encontra no poder: assinando acordos de livre comércio com o Chile, levando o Brasil a sério como interlocutor comercial, engajando-se com esses países em questões que envolvem países terceiros (tais como Colômbia, Cuba e Venezuela) e admitindo seus líderes e intelectuais públicos.
A comunidade internacional também deveria deixar claro o que espera da "esquerda errada", visto que esta existe. O primeiro ponto a enfatizar é que os governos latino-americanos de qualquer tendência precisam cumprir os compromissos assumidos por seus países com relação aos direitos humanos e à democracia. O segundo é que todos os governos precisam continuar a contribuir para o esforço multilateral para a construção de uma nova ordem legal internacional.
Para concluir, Washington e outros governos devem evitar os erros do passado e sob circunstância nenhuma os EUA devem aceitar a divisão do hemisfério em dois campos -pró e contra os EUA.
Então, em lugar de discutir sobre se devemos saudar ou lamentar o advento da esquerda na América Latina, seria mais sábio distinguir entre a esquerda mais sensata e a irresponsável, apoiar a primeira e conter a segunda.
Se isso for feito corretamente, ajudará em muito a região a finalmente encontrar seu norte e, como Gabriel García Márquez talvez dissesse, pôr fim a seus cem anos de solidão.


JORGE G. CASTAÑEDA é professor de política e estudos latino-americanos na Universidade de Nova York e autor de "A Utopia Desarmada" (Cia. das Letras). Foi ministro das Relações Exteriores do México (2000-2003). A íntegra deste texto foi publicada na revista "Foreign Affairs".
Tradução de Clara Allain.


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