São Paulo, domingo, 28 de maio de 2006

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Uma trama delicada

O historiador Herbert Klein diz que Evo Morales é um político articulado e que o Brasil nunca teve muito impacto na América Latina

LEILA SUWWAN
DE NOVA YORK

O historiador Herbert Klein, diretor de estudos latino-americanos na Universidade Stanford (Califórnia), rejeita a noção corrente que reduz o presidente da Bolívia, Evo Morales, a um líder populista, indígena e cocaleiro. Ou que, a reboque do colega Hugo Chávez, da Venezuela, esteja protagonizando uma guinada esquerdista e autoritária na América Latina. Para ele, o boliviano é um político articulado e experiente, que conduz de forma sofisticada mudanças estruturais.
Autor de 15 livros sobre a América Latina, quatro sobre a Bolívia, o professor avalia que foi feito muito alarde em torno do decreto de nacionalização de gás e petróleo. Diz também que o verdadeiro desafio boliviano é interno e independe dos presentes milionários de Chávez ou das negociações sobre o preço do gás com o Brasil.
Trata-se da Assembléia Constituinte e da reforma agrária, na qual terá que equilibrar pressões quase separatistas de grupos indígenas e da elite de Santa Cruz -onde se concentram os sojicultores brasileiros, responsáveis por cerca de 35% da produção do país-, além de mediar demandas por confisco de terras e pela redistribuição de recursos tributários e royalties.
Klein, 70, já lecionou na USP, na Universidade Federal de Minas Gerais e na Universidade Federal do Paraná e é rápido ao comparar a situação de Morales ao início do mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva -com a diferença de que o boliviano está de fato executando a plataforma que o elegeu. A seguir, trechos da entrevista à Folha.  

FOLHA - O sr. avalia que há mais fumaça que fogo na relação entre Brasil e Bolívia? HERBERT KLEIN - O que há são negociações, tudo depende do que o Brasil vai aceitar. Todo mundo ficou chateado com o uso das tropas. Mas os soldados chegaram, as fotos foram feitas e depois eles voltaram para casa. Há duas coisas talvez mais importantes, que atraem menos atenção: a reforma agrária em Santa Cruz e as convenções constitucionais, em julho.

FOLHA - A colaboração de Chávez também preocupa? KLEIN - O governo americano está surpreendentemente silencioso. Os EUA, que defendem a erradicação da coca, estão quietos, não fizeram ameaças. Parece que todos querem dar algum espaço para Evo Morales. Com Lula foi rompido um acordo de cavalheiros, e Chávez se intrometeu.

FOLHA - Os outros países avaliam que escantear Morales pode levar a uma radicalização? KLEIN - Acham que é melhor seguir a maré por enquanto. O ponto mais explosivo é interno, a questão com Santa Cruz.

FOLHA - Mexe com a elite? KLEIN - A elite de Santa Cruz são os grandes fazendeiros comerciais. Santa Cruz quer "autonomia", Assembléia Legislativa e governo estadual. Quer mais controle sobre as finanças públicas, sobre impostos e sobre a renda do gás e do petróleo. É uma situação muito delicada. Morales tem um tremendo apoio popular e um apoio passivo da elite, que aguarda para ver até onde ele vai chegar. Se tomar propriedades, haverá hostilidades.

FOLHA - Lula foi criticado pela postura mansa. A diplomacia brasileira foi humilhada? KLEIN - Ninguém esperava que Chávez tivesse tanta participação. Ele está muito ativo, em plena campanha latino-americana, e Lula ficou de fora. Mas não havia muito o que fazer. O governo boliviano tinha um compromisso com essa ação. O Brasil nunca teve muito impacto no resto da América Latina, essa é a verdade. Os brasileiros nem sequer sabem muito sobre a Bolívia. O Lula faz parte da esquerda emergente, mas seu impacto foi na disputa com os EUA e a União Européia sobre tarifas agrícolas.

FOLHA - A aliança Morales-Chávez respingou nas eleições vizinhas, no Peru e no México? KLEIN - Eu acho que estão fazendo uma leitura incorreta, negativa, de contrabalanceamento ativo da força dos EUA. Mas é mais complexo que isso. O que o Chávez fez de concreto no México? No Peru, a questão política é difícil, fraturada. Temos um candidato que inventou um partido na semana passada [Ollanta Humala] e um ex-presidente que talvez tenha tido a gestão mais desastrosa da história [Alan García].

FOLHA - O sr. concorda que há duas esquerdas na América Latina, uma de Chávez-Fidel-Morales, mais autoritária e menos ortodoxa, e outra de Lula-Bachelet-Kirchner? KLEIN - Com relação à Bolívia, estamos vendo um movimento de descentralização do governo a favor da federalização. Os partidos estão sendo reorganizados, até comunidades de camponeses podem ter participação política. Então há uma reforma na democracia representativa. Estão revendo como serão eleitos os representantes -só por partidos políticos ou também por meio de grupos da sociedade civil? Estão dispostos a fazer experimentos.

FOLHA - Isso justifica o temor de redução da democracia, conforme alardeiam os EUA? KLEIN - Isso é um assunto interno boliviano. Há um elemento forte, a questão étnica. Os indígenas querem representação, aceitação cultural. Mas não há clima revolucionário.


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