São Paulo, domingo, 28 de maio de 2006

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O fim do exotismo americano

Em texto que está saindo no Brasil, o escritor Alejo Carpentier enfoca a assimilação da cultura do continente pelos europeus

ALEJO CARPENTIER

Exótico", diz qualquer dicionário, é "o estrangeiro, o peregrino": "animal exótico, planta exótica". "Exótico" -não dizia qualquer dicionário há 50 anos, porque os dicionários observam certa polidez para com os consulentes- era o latino-americano aos olhos do europeu.
Para ser mais exato, do europeu situado acima desses Pireneus, que, segundo uma frase tão célebre quanto cruel, marcavam o início do continente de baixo -continente de somenos, que, diga-se de passagem, está despertando de forma espantosa depois de oito séculos de modorra, anunciando-se como uma presença que deverá ter grande peso num futuro próximo.
Para a Espanha, por razões que todos conhecemos, amamos e padecemos, nunca fomos exóticos, porque nenhum caminho percorrido pelo nosso próprio sangue pode ser exótico. Mas, para os homens à margem do magno acontecimento da conquista e que só avistaram nosso continente da borda de navios flibusteiros ou sob a aba do chapéu de Pauline Bonaparte, fomos durante muito tempo os grandes exóticos do planeta.
O Segundo Império francês conheceu-nos na pessoa de Solano López, futuro ditador do Paraguai, que andava pelas ruas de Paris todo empenachado e escoltado por uma banda de música. Também havia um milionário brasileiro, celebrizado por uma opereta de Offenbach ["A vida parisiense"]...

Festa Inca
O século 18 nos enxergava por meio da Festa Inca, que constitui uma das passagens capitais de "As Índias Galantes", de Rameau [músico francês, 1683-1764]. Voltaire tratou-nos com ironia; Montaigne, com benevolência e fé em nosso futuro; Goethe, com entusiasmo diante da visão do que tínhamos por fazer. No mais, porém, fomos em geral, e até há bem pouco, a "planta exótica" dos dicionários. E o exótico é o que está fora: fora do que se tem por verdade na cultura de uma época, em sua vida civil, nos usos e costumes que determinam seu estilo.
Mas eis que, num belo dia, a Europa se maravilha com a revelação de "Redes" [1936], o magistral filme [de Emilio Gómez Muriel e Fred Zinnemann] que marcou o início do auge mundial do cinema mexicano (o cinema de um país deve construir seu prestígio com filmes de qualidade; não com as produções ditas "comerciais").
Com "Redes" veio também a magnífica trilha sonora de Silvestre Revueltas. Seguiu-se o compasso de espera da guerra.

O que está fora
Mas, terminado o conflito, vieram as palmas de Cannes para filmes latino-americanos. E os festivais de Heitor Villa-Lobos. E a tradução para o francês do "Canto Geral", de Neruda (em português, pela Bertrand Brasil). E a premiação literária de "O Senhor Presidente", de Miguel Ángel Asturias. E o sucesso de "Montserrat" (peça de Emmanuel Roblès), com sua ação situada na Venezuela.
E uma dezena de romances latino-americanos traduzidos para línguas européias. E a descoberta das nascentes do Orenoco. E a prodigiosa exposição de arte mexicana em Paris.
O exótico, por definição, é aquilo que está fora. Tudo o que os gregos chamam "os bárbaros". Gente do Ponto Euxino, lestrigões, hiperbóreos... Mas, em menos de dez anos, os bárbaros, os paramantes, os lotófagos apresentaram seus cartões de visita.
E esses cartões eram tão bons, com seus caracteres em bom relevo de celulóide, de música, de papel impresso, que hoje, na Alemanha, na França, há gente fazendo -pasmem!- falsa literatura latino-americana. Ou seja, romances que se passam no México, no Brasil, na Venezuela.
E há mais: um curioso autor teve a inacreditável idéia de converter em romance a ação de... "Os Sertões", de Euclydes da Cunha, um clássico da literatura brasileira. E outro imaginou uma ação girando em torno da construção de uma ponte sobre o rio Casiquiare...
Como diziam os índios de uma charge de um admirável humorista -índios que contemplavam com melancolia a chegada das caravelas de Colombo: "Caramba! Já nos descobriram!...".


Este foi texto foi publicado em 2/9/52 e está incluído em "Vozes da América", que está sendo lançado pela editora Martins.


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