|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+(a)utores
Sem pipoca e guaraná
Instituição formadora na São Paulo
dos anos 50, Cinemateca Brasileira pôs em confronto
neo-realismo italiano e musicais da Metro
BORIS FAUSTO
COLUNISTA DA FOLHA
Na cidade relativamente provinciana que era a São
Paulo dos anos 50
do século passado,
despontavam algumas atividades culturais significativas. É o
caso do cinema, que tinha como seu pólo mais significativo
a Cinemateca Brasileira, até
hoje em pleno funcionamento.
É justo lembrar que a cinemateca teve um antecedente
ilustre -o "Clube de Cinema",
organizado por nomes da qualidade de Paulo Emílio Salles
Gomes e Décio de Almeida Prado. O grupo acabou sendo perseguido pelo Departamento de
Imprensa e Propaganda (DIP),
órgão do Estado Novo, e teve
de encerrar suas atividades, como menciona matéria da "Ilustrada", em 24/4 (leia em www.folha.com.br/061241),
a propósito dos 60 anos de existência da cinemateca.
Aqui, recordo uma fase da
instituição, quando ela foi sediada numa pequena sala, em
um edifício da rua Sete de Abril,
no centro da cidade, num tempo em que o centro ainda congregava o que havia de vida noturna de São Paulo.
Na salinha da cinemateca,
muito abafada nas noites de verão -ninguém imaginaria colocar ali um barulhento aparelho
de ar condicionado-, um pequeno grupo, composto sobretudo de jovens, pôde assistir a
uma série de filmes que ia das
primeiras experiências de
Georges Méliès (1861-1938) aos
mais recentes daquela época,
geralmente não exibidos no circuito comercial.
Duas tendências
Quase sempre, as exibições
eram precedidas por uma apresentação e discussões acerca do
que se ia ver. Duas tendências
principais se digladiavam, com
uma paixão que se traduzia na
intensidade verbal. Embutida
na disputa, estava a renitente
discussão sobre conteúdo e forma na obra de arte, que se desdobrava em posições de engajamento e purismo.
Os ícones das duas tendências eram o italiano Paulo Giolli
e Rubem Biáfora, ambos acompanhados dos respectivos séquitos, reciprocamente infensos a qualquer compromisso
com a tendência oposta.
Giolli, que promoveu festivais de cinema em São Paulo,
entre outras atividades, era um
defensor irrestrito do neo-realismo italiano posterior à Segunda Guerra.
Figuras do porte de Vittorio
de Sica (1901-74) e Roberto
Rossellini (1906-77) romperam com os cânones de Hollywood, em filmes como "Paisà"
(1946), "Roma, Cidade Aberta"
(1945, ambos de Rossellini) e
"Ladrões de Bicicleta" (1948,
de De Sica), e nos introduziram
num mundo nada glamouroso,
embora às vezes pintado com
cores edificantes.
Ódio aos "Cahiers"
Biáfora, bem mais lembrado,
era um personagem peculiar,
baixinho, magro, de voz rouca,
características físicas que contrastavam com a veemência
com que defendia suas idéias.
Leitor das revistas estrangeiras
sobre cinema, odiava os "Cahiers du Cinéma", publicados
na França, com a mesma pertinácia com que exaltava a inglesa "Sight and Sound".
Apesar de me sentir politicamente mais afinado com Giolli,
pouco aprendi com ele. Seu encantamento com o neo-realismo italiano, execrado por Biáfora, correspondia também ao
que eu sentia, mas pouco acrescentava à compreensão de uma
obra cinematográfica. Já Biáfora abria um caminho novo na
percepção dos filmes, com sua
insistência no ritmo introduzido pela montagem, na qualidade da fotografia, assinada por
nomes que não ficavam no
anonimato, no papel do diretor
na interpretação dos atores.
É certo que ele não era um
um nome isolado da crítica cinematográfica, em que nos
anos 40 e 50 brilharam figuras
como Paulo Emílio, Almeida
Salles, Moniz Vianna, Alex
Vianny, os dois últimos com
fortes diferenças entre si.
Mas as opiniões muitas vezes
insólitas de Biáfora despertavam um interesse especial nos
jovens que não aderiam com o
fervor dos crentes a uma das
duas tendências.
Quantas vezes eu e alguns
amigos fomos a cinemas como
o Sammarone, no bairro do Ipiranga, o Soberano e outros
mais para ver filmes classe B ou
C em que Biáfora enxergava
maravilhas. Quantas vezes saímos do cinema decepcionados,
depois de um longo e inútil esforço para entender as qualidades ocultas de certos filmes que
só Biáfora e sua gente conseguiam enxergar.
Mas quem sabe descobriria
hoje, por exemplo, as virtudes
de um diretor de caubóis modestos como Ray Nazarro,
montado em seu cavalo branco,
cujos méritos, se existentes, na
época nunca pude vislumbrar.
De qualquer forma, foi Biáfora quem abriu meus olhos para
a qualidade dos musicais da
Metro, esse típico produto
hollywoodiano.
Não se tratava de uma generalização, pois os musicais recomendados eram principalmente os produzidos por Arthur Freed e dirigidos por Vincente Minnelli. Mais ainda,
Biáfora ressaltou, na salinha da
cinemateca, uma figura de outro produtor, responsável por
um gênero bem diverso dos
musicais -Val Lewton, nascido na Rússia, cujo quase desconhecido nome verdadeiro era
Vladimir Leventon.
Val Lewton foi contratado
pela RKO, nos anos 40, para
produzir filmes de terror, com
orçamentos bastante restritos.
Ele reuniu a sua volta um diretor já conhecido, Jacques
Tourneur, e outros que se tornariam famosos, a exemplo de
Robert Wise e Mark Robson.
Luzes e sombras
Daí nasceram filmes da qualidade de "Sangue de Pantera"
("Cat People", 1942), interpretado pela sedutora mulher-pantera Simone Simon, "A
Morta-Viva" ("I Walked with a
Zombie", 1943), ou "A Maldição do Sangue de Pantera"
("Curse of the Cat People",
1944). São filmes sem efeitos
especiais, em preto-e-branco,
com um rendimento excepcional de luz e sombra.
Neles, revela-se uma grande
sofisticação, inclusive pelas
alusões literárias, pela atmosfera de uma difusa melancolia,
pelas cenas de terror em que o
sugerido é mais denso do que o
explicitado. Vale a pena, aliás,
ver ou rever essas obras, que estão saindo num pacote em DVD
nos Estados Unidos [Val Lewton Horror Collection, Warner,
US$ 48, R$ 110].
Seria excessivo dizer que hoje já não se fazem bons filmes,
mas não é excessivo dizer que já
não se fazem filmes como antigamente. Além disso, no plano
local, foi-se para sempre o clima cinematográfico de meados
do anos 50, das grandes descobertas, dos debates apaixonados, tão bem expresso na salinha da Cinemateca Brasileira
-salinha que era um templo de
cultura, onde ninguém imaginaria penetrar com latas de Coca-Cola ou sacos barulhentos
de pipoca.
BORIS FAUSTO é historiador e preside o conselho acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura
Internacional), da USP, e autor de "A Revolução de 1930" (Cia. das Letras). Ele escreve
mensalmente na seção "Autores", do Mais!.
Texto Anterior: Biblioteca Básica: Dicionário do Folclore Brasileiro Próximo Texto: + (c)ultura: Visão de Barthes Índice
|