São Paulo, domingo, 28 de maio de 2006

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+ (c)ultura

Visão de Barthes

Em "O Ofício de Escrever", Eric Marty traça um retrato do crítico francês, autor de "Mitologias", e dos intelectuais na Paris dos anos 70

MICHEL CONTAT

Um livro surpreendente, inesperado, para dizer a verdade. Exceto, talvez, para os que se aproximaram do primeiro círculo ao redor de Roland Barthes e se interrogavam sobre a ligação -misteriosa?- que poderia existir entre ele e o jovem Eric Marty.
Ele participou nos anos 1970 de seu seminário e dirigiu, na editora Seuil, as "Obras Completas" de Barthes (1994, reedição em 2002) e também os quatro volumes dos "Cursos e Seminários no Collège de France" (co-edição Imec, 2002). Daí sua familiaridade com a obra, da qual pode oferecer uma visão de conjunto assim como análises detalhadas.
Mas seu trabalho atual, "Roland Barthes - Le Métier d'Écrire" [O Ofício de Escrever, ed. Seuil, 342 págs., 23, R$ 73], parece mais literário que ensaístico. Ele tem início com "Memória de uma Amizade", tentativa de "retrato autobiográfico" que faz uma descrição quase fenomenológica, pudica e sincera, da relação entre discípulo e mestre.
Em seguida vem uma coletânea dos prefácios que escreveu para os cinco volumes das "Obras Completas". A terceira parte traz uma transcrição do seminário que deu em 2002 na Universidade de Paris 7.
Os prefácios problematizam inteligentemente a obra, pois dialogam com o tempo, o ar do tempo, a moda intelectual, vestimental, cultural, dos costumes, sob as sucessivas tutelas de Gide, Sartre, Marx, a lingüística, a psicanálise, jamais renegadas e também jamais constituídas em dogmas.

Proust e Flaubert
O verdadeiro modelo de Barthes é Proust, pela visão irônica do mundo social, pela finura da análise, pelo humor que deve evitar a efusão sem afastar os sentimentos. Atrás de Proust perfila-se também Flaubert, é claro, pela aversão à besteira, aos discursos estereotipados.
Como se estabelecia, então, na realidade cotidiana, a relação entre um discípulo -cuja própria posição implica submissão deferente ao discurso e às idiossincrasias do mestre- e um mestre que resistia a toda demanda viscosa?
O relato de Marty responde a essas perguntas de maneira cativante e também comovente. Ele tem 20 anos quando o conhece, em 1976. É tímido, chegando à afasia em público.
Barthes o nota, interessa-se por ele, estudante de letras, marcam um encontro em Saint-Germain-des-Prés (Paris). O jovem está petrificado de admiração por esse "príncipe da juventude" cujos livros ele leu, professor no Collège de France e que mantém na Escola de Altos Estudos seu seminário restrito. Barthes o convida.
Ele descobre a rede mais ou menos homossexual que se estende por Paris a partir do salão de um rico tunisiano, um anfitrião perfeito que recebe a intelligentsia, da qual Barthes é o mestre venerado como uma espécie de imperador romano solitário, melancólico. Ele será "meu pequeno Eric", ligado a Barthes pelo amor à ópera e pela delicadeza de sentimentos, pela literatura também, evidentemente.

Intimidade crescente
Roland lhe apresenta sua mãe, que o aprecia, e seu meio-irmão; eles passam férias em Urt [sudoeste da França], o jovem se torna o secretário encarregado da correspondência, numa intimidade crescente que Marty, hoje, brilha ao manter discreta enquanto a expõe.
Essa "Memória de uma Amizade" torna-se, assim, o retrato de um homem e de uma rede de intelectuais, de seus hábitos nos loucos anos 70 e da relação de amor verdadeiro que havia entre Barthes e sua mãe.
Em seu centro, abre-se um ponto focal realmente vertiginoso e literariamente muito forte, porque enigmático: a confissão, nos meandros de uma frase e sem comentários, de que ele destruiu, algum tempo após a morte de Barthes, as cartas que recebeu dele e os exemplares de seus livros com dedicatórias. Por quê? Assassinato postergado? Uma maneira definitiva de virar uma página de sua vida? É bom que os textos, assim como os seres, guardem seu segredo indicando-o em um lampejo.


Este texto saiu no "Le Monde".
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
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