São Paulo, domingo, 28 de junho de 2009

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Jogos encantados

Em incursões na literatura infantil, William Faulkner e Julio Cortázar mergulham os leitores na intriga e na fantasia

TATIANA BELINKY
ESPECIAL PARA A FOLHA

F aulkner, baixinho e franzino filho de família rica, gostava de ouvir histórias populares, de viver aventuras, da caça e da pesca e, claro, de ler muito. Tanto que acabou perdendo um bom emprego, despedido "por ler demais". Coisa que jamais acontecerá com os leitores, jovens ou adultos, dos seus livros empolgantes, mas por vezes sombrios e difíceis de ler.
Quando escreveu "A Árvore dos Desejos" para uma menina, Victoria, que fazia nove anos, ele, William Faulkner [1897-1962], um dos maiores autores norte-americanos do século 20, ainda era jovem, mas já prometia o que, mais tarde, lhe daria o Nobel de Literatura.
Em boa hora, a sempre criteriosa editora Cosac Naify apresenta-o ao jovem leitor brasileiro, na agradável e fluente tradução de Leonardo Fróes, com as ilustrações "diferentes" em preto e branco, que fazem justiça ao texto. Ele se presta mais ao público pré-adolescente já afeito à leitura de textos também fluentes, mas interessa com certeza aos leitores menores, que já "sabem ler".
O livro é uma verdadeira explosão de fantasia, criatividade, à procura da -claro!- realização dos mais variados e mesmo absurdos desejos, dos seus vários e bem diversos personagens, que o leitor curioso vai conhecendo ao longo das aventuras, surpresas, sustos, trancos e barrancos, e toda sorte de curiosas e mirabolantes acontecências. São muitas aventuras com a variada "turma" dessa história.
Só pra mencionar alguns personagens: Dulcie, a menina que acorda, na manhã do seu aniversário, e dá com um misterioso -e mágico- menino ruivo, que, como ele mesmo explicou, apareceu porque ela, Dulcie, a protagonista, provocou tudo, porque, na véspera, subiu na cama do lado esquerdo e, antes de adormecer, virou o travesseiro de lado, que é, quando em dia de aniversário, "tudo pode acontecer".
Como de fato aconteceu, a começar pelo aparecimento dele próprio, o garoto ruivo de olhos faiscantes.
Para o jovem leitor brasileiro, algumas coisas podem até lembrar momentos do Sítio do Pica-Pau Amarelo, com o poder mágico do faz de conta da Emília e do pó de pirlimpimpim... Mas não é bem por aí.
De qualquer forma, no grupo multicor que vai crescendo ao longo da história, têm lugar coisas incríveis, umas boas, outras nem tanto, que mexem com as cabeças e os sentimentos dos personagens. Mas as coisas, neste livro em geral alegre, divertido e emocionante, passam "de raspão" em assuntos sérios, que dão que pensar, momentos mais tristes, reflexões sobre a guerra. E, quem diria, até são Francisco passa pela história, com ideias franciscanamente sensatas e construtivas, porque nem todos os desejos são "bons"...
Em suma, como já disse no começo, essa "explosão" de fantasia não abre mão de "insuflar" alguns pensamentos interessantes. E de oferecer muita diversão...
Urso amigo
No caso de Julio Cortázar [1914-84], o título brasileiro deste seu "monólogo" do urso soa até melhor do que o original espanhol -porque, sendo rimado, fica ainda mais engraçado e convidativo. Qualquer criança ficará encantada com este urso vermelho (que, na minha infância europeia, era o "limpa-chaminés humano", "preto" de fuligem e sempre simpático. E hoje, aqui, existe um tal de "roto-rooter" mecânico e sem nenhum carisma).
Mas o urso deste "discurso" é um grande amigo dos moradores do prédio; que passa os dias trabalhando, sempre bem humorado, penetrando de todos os jeitos, até de cambalhota, pelos encanamentos, prestando importantes serviços aos moradores -que às vezes até reclamam, porque não entenderam nada. Para descansar, o urso sai pela chaminé e respira o ar fresco enquanto aprecia a paisagem noturna.
E até nada na caixa d'água, como o jovem leitor se divertirá lendo ou ouvindo o delicioso texto, na impecável tradução do poeta e escritor Leo Cunha, enriquecido pelas grandes, alegres e atraentes ilustrações de Emilio Urberuaga.
Este "depoimento" do urso -"Discurso del Oso"- faz parte do famoso livro "Histórias de Cronópios e de Famas", do seu ainda mais famoso autor, que tem uma história pessoal complicada. Nascido na Embaixada Argentina na Bélgica, de pais argentinos, "voltou" à Argentina aos quatro anos de idade e, sem os pais, separados, foi criado por três mulheres: a mãe, uma tia e uma avó.
Chegou a dizer, certa vez: "Passei minha infância em uma bruma de duendes, de elfos, com um sentido de tempo e espaço diferentes dos outros". De saúde frágil, ficava muitas vezes na cama, lendo os livros que sua mãe lhe trazia.
Cortázar, parece, nasceu escritor. Mas não sem passar por muitas experiências na vida: foi professor universitário de literatura, poeta, contista, novelista, tradutor da Unesco e de grandes escritores e passou por postos e cargos oficiais importantes, aos quais, por sinal, renunciou [após as eleições de 1945] quando Perón virou presidente da Argentina. Isso, claro, porque Cortázar, como intelectual que era, sempre se interessou pela política, especialmente no seu país, sob a ditadura peronista.
Participou de diversos projetos e movimentos internacionais, esteve em muitos países da América Latina. E ganhou vários prêmios internacionais dos mais importantes.
Nos últimos anos, estabeleceu-se em Paris, já naturalizado francês, onde morreu e foi enterrado no cemitério de Montparnasse -com a imagem na sua tumba de um "cronópio". E mesmo a Argentina, a pátria à qual ele renunciara por idealismo, tem uma praça com seu nome em Buenos Aires.
Cortázar deixou uma obra vasta e variada, com alguns livros que se tornaram clássicos, como "O Jogo da Amarelinha", novela originalíssima que o tornou instantaneamente famoso. Eu nem sabia que ele escrevia para crianças... Quem já conhece alguma parte da sua rica obra "adulta" ficará surpreso (e as crianças ficarão encantadas), desde a capa do livro, com o humor e a graça deste "Discurso do Urso", tão simpático e, por que não, poético e até, quem diria, um tanto "instrutivo"... Porque tudo "educa", não é mesmo?

TATIANA BELINKY, 90, é escritora e autora de livros infanto-juvenis.


A ÁRVORE DOS DESEJOS
Autor:
William Faulkner
Tradução: Leonardo Fróes
Ilustrações: Guazzelli
Editora: Cosac Naify (tel. 0/xx/11/ 3218-1444)
Quanto: R$ 42 (56 págs.)

DISCURSO DO URSO
Autor:
Julio Cortázar
Tradução: Leo Cunha
Ilustrações: Emilio Urberuaga
Editora: Record (tel. 0/xx/ 21/2585-2000)
Quanto: R$ 30 ( 28 págs.)

Leia também texto de Tatiana Belinky sobre "Meus Contos Africanos", livro organizado por Nelson Mandela, em www.folha.com.br/091751



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