São Paulo, domingo, 28 de junho de 1998

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Um visionário na intimidade


Cartas reunidas em "A Barca de Gleyre" trazem à tona o lado satírico de Monteiro Lobato


CASSIANO NUNES
especial para a Folha

Foi a leitura de "A Barca de Gleyre", esse livro extraordinário que reúne a correspondência de 40 anos de Monteiro Lobato a Godofredo Rangel, seu amigo da juventude em São Paulo, que passou a vida obscuramente em terras mineiras, a origem do meu interesse especial pelo autor de "Urupês" e, mais do que isto, o estímulo para uma busca intensa do material epistolográfico do criador de Jeca Tatu.
Monteiro Lobato, não obstante a sua fama extraordinária no país, era considerado nos meios literários, até certo ponto, um escritor falhado, pois ocupado, na maturidade, com objetivos extraliterários, não fora além dos contos regionalistas e da literatura infantil. Não escrevera o grande romance de São Paulo, o romance do café ou mesmo do Vale do Paraíba, que toda a gente esperava e que ele mesmo pretendera realizar. Este achado da matéria epistolar, se considerado de muito boa qualidade, virá, de certo modo, compensar esse notável escritor pela incompletude de sua construção literária, abandonada por ele para se entregar a campanhas de objetivos econômicos, bem justificadas pelo seu patriotismo.
Sem dúvida alguma, muito se tem escrito e publicado ultimamente sobre Lobato, o que é muito bom, pois ele merece toda a nossa atenção. No entanto, parece-me que poucos documentos novos têm aparecido: 1º) que contribuam para aumentar o prestígio do escritor; 2º) que também ofereçam uma visão de Lobato diversa da já conhecida, da convencional. A meu ver, o estudo da correspondência inédita ou escassamente conhecida de Lobato oferecerá outra imagem, diversa, muito mais complexa.
Há contradições em Lobato que não têm sido salientadas. Por exemplo, a sua consciência da necessidade de valorizarmos a cultura popular brasileira, oriunda do interior, o seu jecatatuísmo, que mereceu comentário sorridente de Ribeiro Couto, colidia com o seu entusiasmo pelo progresso norte-americano, com suas aspirações capitalistas e tecnológicas. Sua paixão absorvente pela literatura, na juventude, foi cedendo à mentalidade fanática pelos empreendimentos siderúrgicos e petrolíferos. É verdade que, como muito bem disse Nelson Palma Travassos, seu companheiro de interesses gráficos e literários, o que permanecia sempre e atuava em Lobato, profundamente, era o "sonho literário", que se confundia às vezes com atividades ambiciosas, mirabolantes.
Segundo Travassos, o inventor de Narizinho e Emília achava que cada um desses empreendimentos fantásticos "devia dar um bom romance". Creio que não se tem chamado a atenção para um traço psicológico que, a meu ver, acompanhou Lobato em seus negócios, mesmo os mais ambiciosos: a ingenuidade. Fortemente marcado pelo exemplo de Henry Ford, o mecânico de gênio, o taubateano achava-se preparado para liderar as mais arriscadas empresas, os mais específicos organismos. Numa carta a Rangel, num hiperbolismo cômico, proclama que não é literato, mas sim metalurgista! (...)
Essa carta, remetida ao romancista Flávio de Campos, a 7 de agosto de 1939, que oferece dados biográficos do inventor (?) estrangeiro, dá plena razão a Travassos, que garantia que Lobato misturava a tendência à ficção literária com os negócios. Vou transcrever um trecho dessa missiva:
"Esta semana próxima deve tudo chegar ao fim -e vamos ter a prova. A Prova! Sabe o que significa? Interessante, Flávio, mil passos dados em ano e meio, centenas de peças construídas, de ajustamentos, de torneagens, de medições, de corta aqui, aumenta ali, de experiência e erro, de acerto final. E mil passos laterais no financiamento -catequese dos que entram com o dinheiro, debates, redução de ceticismos etc. etc. etc. Tudo isso para quê? Para obter um momentinho a que chamamos Prova Final. Ah, como eu compreendo a Mme. Curie... E quantas vezes, depois da luta ingente e tão demorada, a Prova falha... ou faltou qualquer coisa que é preciso descobrir e corrigir...
Saindo vitoriosa a Prova é provável que eu tenha de ir à América com o inventor. Não te dizia eu que este agosto iria ser caso sério?
Que romance maravilhoso há nisto, duma invenção como esta! Quem sabe se não vai ser o meu romance?". Lobato evoca depois: "A vida desse homem que conheceu todas as terras -até Bornéu e foi multimilionário. E assistiu ao incêndio de S. Francisco e se enriqueceu com os escombros. E que perdeu milhões numa irrigação dum deserto da Califórnia e perdeu no "crack' da Bolsa em 1930 15 milhões -300 mil contos. E que aos 82 estava "méndigo' em Belo Horizonte, como ele diz. E o nosso encontro foi casual". Segundo Lobato, Thomas Edison colaborou com ele, em anos de experiências... Por fim, a conclusão de Lobato: "É ou não é um romance, um Himalaia?".


"Comparo os homens a bichos de goiaba; a pátria é a goiaba e quanto mais podre melhor"


Em carta a Gastão Cruls, Lobato também confidenciou que pretendia escrever um maravilhoso romance-poema sobre as usinas Ford, no qual tencionava transmitir "uma visão deste país (os Estados Unidos) por meio das notáveis fábricas".
O que devemos destacar, em primeiro lugar, ao fazermos a análise literária das epístolas de Lobato é a pródiga, profusa, pululante criatividade do muito especial missivista.
Na primeira vez em que escrevi sobre "A Barca de Gleyre", destaquei "a criação espontânea, orgânica, de um estilo arraigado no terrunho, no ambiente" -decerto o estilo almejado por Lobato. Cheguei a chamá-lo de estilo Jeca Tatu, do mesmo modo que ele denominou um livro de exposição de idéias "Idéias de Jeca Tatu". Contra as idéias alienígenas que influenciavam a mente brasileira, o estudioso do Saci defendia uma arte de profunda autenticidade. Ninguém como ele denunciou o caipirismo falso, artificial, do teatro de entretenimento e do regionalismo limitado ao anedotário.
Um dos processos principais para a criação desse estilo consiste no emprego de metáforas ou comparações extraídas da existência quotidiana no interior. Plantas, animais, utensílios, ferramentas, comidas ou costumes da rotina provinciana são expedita, naturalmente fisgados pela pena-anzol do escritor piraquara. Exemplifico: "Neto (Coelho) é aquela jaboticabeira que vejo daqui. A folhagem excessiva não me deixa ver o desenho nervoso e bonito do tronco e dos galhos". O escritor ilustre é explicado pela semelhança com uma árvore frutífera. (...)
Em suma, o que me parece necessidade de uma certa urgência é o levantamento de toda a correspondência existente, sobretudo a que ainda não é bem conhecida. Se uma pesquisa rigorosa for feita, tenho fé de que muito material epistolográfico desconhecido aparecerá. A correspondência de Lobato é primeiramente importante porque é literatura saborosa, de alto nível. Antes das qualidades extraliterárias -biográficas, históricas e de crítica social-, coloco o seu valor literário, mas é evidente que o seu aspecto documental, relativo à história da sociedade brasileira, também é muito significativo.
Após a leitura de "A Barca de Gleyre", não tive nenhum receio ao afirmar que o excepcional volume epistolográfico era a história de uma geração e valia por um "Bildungsroman", um romance de formação, livro de sensibilidade e agudeza que nos conduzia a uma reflexão profunda sobre o Brasil. (...)
Sabemos que o Instituto de Estudos Brasileiros da USP está fazendo um levantamento da correspondência de Mário de Andrade, do qual já contam 10 mil itens.
Embora parecendo a muitos um homem alheado, de pouca afetividade, a verdade é que Monteiro Lobato foi um amigo devotado e acompanhou, com solicitude, até o fim de suas existências, os companheiros de sua juventude, alguns problemáticos, infortunados, como Raul de Freitas. E não se pode olvidar que, na vida madura, os interesses patrióticos ou simplesmente a nobre admiração que tinha por todas as pessoas criadoras levaram-no a entrar em contato com muitas das principais figuras brasileiras do seu tempo. (...)
O panfletário de "O Escândalo do Petróleo" escreveu cartas a Getúlio Vargas, que era seu admirador e desejou tê-lo como ministro da Propaganda. Uma dessas cartas levou o beletrista irascível para a prisão, mas a origem desse castigo se achava longe do ditador duro, mas inteligente. Na penitenciária de São Paulo, o defensor do petróleo brasileiro escreveu ao governador Fernando Costa, denunciando torturas policiais em infelizes prisioneiros. Lobato escrevia cartas com a maior facilidade e se dirigia a todos os tipos de pessoas. Respondia sempre às cartas de seus pequenos leitores. Seu público ledor era numeroso no Brasil e alguns dos seus leitores animavam-se a escrever-lhe e a esperar resposta.
Hernani Ferreira, Rodrigues Crespo, homens simples, e o padeiro português Antonio Pousada, que publicou vários livros, receberam suas opiniões literárias, que eram sempre generosas demais. Homem de vida simples, o autor célebre gostava de escrever aos simples, sobretudo quando reconhecia neles fibra, caráter, ideal. Deste modo, teve correspondência com Idalina, dona de hotel ou pensão em Ubatuba, e com uma jovem professorinha de Campinas, Eoys Black, idealista e moça de cor, se bem me lembro.
Ao general Horta Barbosa, presidente do Conselho Nacional do Petróleo, travesso como um garoto, ao deixar a prisão, Lobato enviou uma carta irônica, oferecendo bombons a fim de agradecer-lhe a repousante estada no cárcere -o que lhe valeu nova prisão, novo processo.
O humor satírico do contista de "O Engraçado Arrependido" estava presente sempre. Desta tendência, oferece perfeita amostra, na carta que enviou a uma empresa editorial que queria incluir a sua pessoa num "Dicionário de Grandes Vultos do Brasil". Vale a pena transcrever essa deliciosa missiva:
"S. Paulo, 10/5/1947. Prezado sr. J. Henriques. Recebi a sua carta de 2 deste, na qual me pede um verdadeiro "compte-rendu' da minha vida em benefício da obra a publicar-se "Os Grandes Vultos do Brasil'. Respondo declarando que, em sã consciência, não posso atendê-lo: mas se por acaso a Empresa Histórica Nacional houver, por bem, um dia, dar a público uma obra que muitíssima falta nos faz, "Os Grandes Idiotas do Brasil', terei o máximo gosto em responder a todas as perguntas e até tomarei a liberdade de insistir para que me coloque num dos primeiros lugares. Com a maior estima e sensibilizadíssimo pela honra que me fez considerando-me "vulto', assino-me cordialmente Monteiro Lobato". (...)
Duas notícias venturosas tenho para dar um final feliz a este artigo. Deve sair, ainda neste ano, pela Fundação Getúlio Vargas, um livro com a correspondência entre Monteiro Lobato e Artur Neiva, organizado por Priscila Fraiz. Sobre essa correspondência, publiquei, em 1981, um opúsculo intitulado "O Patriotismo Difícil - A Correspondência entre Monteiro Lobato e Artur Neiva". A segunda notícia agradável me foi dada por João Batista Cascudo, da família de Luis da Câmara Cascudo. Garantiu-me esse senhor que a família do ilustre erudito de Natal guarda cuidadosamente cerca de 200 cartas de Monteiro Lobato dirigidas ao autor de tantas obras folclóricas e antropológicas. Por sinal, pouco antes de morrer, Cascudo prometera-me cópia dessa correspondência.
Esperamos que toda essa correspondência aqui citada seja oferecida ao conhecimento do público brasileiro, e não só essa. A sociedade brasileira, os meios cultos do Brasil estão em dívida para com Lobato. É preciso que se faça uma pesquisa exaustiva, um levantamento de toda a sua correspondência que subsiste, que sobreviveu à nossa terrível capacidade de destruição.
Precisamos dar uma prova de amor a Lobato que, embora muitas vezes fustigando a sua terra com a sua crítica, foi um grande patriota e amoroso do Brasil. E, justamente, numa das suas cartas escritas na Argentina e dirigida a Artur Neiva, à sua maneira bem pessoal, ele descreveu a sua saudade da pátria: "Comparo os homens a bichos de goiaba; a pátria é a goiaba e quanto mais podre melhor. Quem sai da sua terra é bicho que sai da goiaba; pode ir a um lugar lindo, mas, passado certo tempo, começa a debater-se de saudades daquele caldo goiaba cor de rosa, em que nasceu, em que se desenvolveu e, biologicamente, é o seu habitat ou borralho".
As cartas de Monteiro Lobato pertencem ao patrimônio cultural e espiritual do Brasil.

Este texto é parte de artigo escrito pelo autor para a Folha.


Cassiano Nunes é escritor e professor aposentado de literatura brasileira da Universidade de Brasília (UnB).



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