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São Paulo, domingo, 28 de setembro de 2003

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+ cultura

O psicólogo romeno Serge Moscovici, que acaba de lançar "Representações Sociais", diz que os movimentos autoritários europeus foram construídos pelos intelectuais

A máquina conceitual de fazer deuses

Caio Caramico Soares
free-lance para a Folha

Situada nas fronteiras nem sempre pacíficas entre as abordagens sociológicas e psicológicas do comportamento humano, a psicologia social pode ser, mais que uma terra-de-ninguém, um espaço fecundo para o cultivo de sínteses. Uma delas é o conceito de "representação social", que tenta superar dois unilateralismos teóricos: de um lado, o coletivismo por vezes abstrato de sociólogos clássicos como Durkheim e, de outro, o subjetivismo da psicologia tradicional, que, menos como ciência, acaba, como "crença", por ser um afago à auto-imagem individualista da sociedade moderna. Essas são algumas das teses de Serge Moscovici, um dos principais psicólogos sociais da atualidade. Como mostra na entrevista a seguir, ele considera que é como "crença" -essência das representações sociais- que todo conhecimento científico se desfigura, ou melhor, se redefine, logo que se dissemina na cultura. Uma "máquina de fazer deuses" que, assim como nos tempos arcaicos, tem ao menos duas causas básicas de existência, ambas de ordem emocional: o amor pelo conhecimento e "o medo instintivo do homem de poderes que ele não pode controlar e sua tentativa de poder compensar essa impotência imaginativamente". Moscovici, 75, veio ao Brasil em setembro, para o lançamento, pela ed. Vozes, de seu livro "Representações Sociais", coletânea com alguns dos principais ensaios teóricos de sua carreira. Diretor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris, ele se mudou para a França ao final da Segunda Guerra Mundial. Cumpria assim uma trajetória similar a de Émile Cioran e Mircea Eliade, conterrâneos a quem, contudo, não poupa críticas pelo envolvimento na propagação de ideais anti-semitas no país natal. Esse lado obscuro de intelectuais de tal porte, porém, segundo Moscovici argumenta, é útil para desmontar uma das falsas "crenças" mais típicas em vanguardas como o leninismo: a desconfiança em relação ao poder intelectual ou nível moral das massas populares, atitude que tenderia a negligenciar o fato de as ideologias mais bárbaras do passado recente, mais que "grunhidos" emocionais de multidões, terem sido, em boa medida, produtos das pranchetas conceituais (ou peças de crença racionalizadas?) de mentes as mais sofisticadas.

O sr. afirma, em dada passagem do livro, que, ao contrário do estereótipo que liga as massas ao irracionalismo, o século 20 foi farto em exemplos de intelectuais como verdadeira origem desse tipo de pensamento. Gostaria que o sr. detalhasse um pouco essa questão.
Creio que, se observarmos a história da Europa, que é a que conheço, veremos que todo movimento de fundo nacionalista ou que tenha desembocado no fascismo foi construído por cientistas. O mito ariano, por exemplo, é uma concepção intelectual. Claro que, no trabalho de formular tais ideologias, eles sentem dadas correntes e tendências no seio da sociedade, às quais porém são eles que dão forma. Vide o caso do darwinismo social ou a doutrina de raças, que tem nos meios intelectuais um ponto de partida.

A seu ver, a psicologia social deveria lutar pelo posto de "antropologia" da cultura ocidental. Por quê?
A psicologia social, em última instância, diz respeito ao problema de nossa cultura, não apenas aos indivíduos ou pequenos grupos. Da mesma forma que a antropologia foi sempre uma espécie de psicologia social das outras culturas, penso que a psicologia social poderia corresponder a uma antropologia de nossa cultura. A psicologia social teve já um papel importante para a configuração dos estudos sobre psicologia das massas e também sobre o individualismo. Grosso modo, poderíamos dizer que a sociologia em geral tem se ocupado das "racionalidades" da cultura moderna, enquanto que, ao longo de sua evolução, a psicologia social tem se preocupado mais com as "irracionalidades": a psicologia das massas, a psicologia da comunicação, os preconceitos.

O conceito de "representações coletivas" é clássico na sociologia desde Durkheim. Por que o sr. prefere falar em "representações sociais"?
De maneira simplificada, poderíamos dizer que, embora Durkheim vez por outra usasse a noção de representações sociais, para ele as representações coletivas eram algo de institucional -como o sistema religioso ou mesmo o científico- e se referiam a um problema da estabilidade social. O problema da sociologia durkheimiana era o problema da integração e da estabilidade. Já a noção de representação social, que associei ao mundo moderno, tem mais relação com a prática cotidiana, a linguagem cotidiana e a algo que se costuma chamar de "senso comum", uma forma de conhecimento e de organização do conhecimento que é independente da forma científica, e que aprendemos desde que somos muito jovens, de maneira imediata, enquanto as formas de conhecimento científico são mais formalizadas, especializadas. As representações sociais dificilmente são criação de um indivíduo isolado, mas podem ser elaboradas por pequenos grupos ou movimentos de opinião e depois se irradiar para a cultura mais ampla, como no caso dos surrealistas.

Qual papel o sr. atribuiria à mídia na produção das representações sociais na modernidade?
As representações sociais são sempre ligadas à comunicação, mas não creio que os "mass media" as produzam. O que fazem é antes acelerar ou afrouxar, talvez dirigir o fluxo das representações num sentido ou noutro, mas não têm aí um papel criador.

Um dos grandes exemplos de representação social -de origem intelectual, e depois tornada "crença" e parte do senso comum- que o sr. dá é a psicanálise, cuja penetração e "familiarização" na cultura francesa o senhor estudou em trabalho anterior. A doutrina de Freud, pelo fato de ter se tornado um "credo oficial", não corre o perigo de uma trivialização? Não estaria em risco a própria noção de "inconsciente", pelo grau de "informação" psicanalítica que o paciente tem antes mesmo de ir ao divã?
É difícil falar em uma trivialização da psicanálise. O que se pode dizer é que a psicanálise de fato foi submetida a um processo de familiarização e hoje já é parte integrante de nossa cultura, de nossa linguagem, das imagens, como já aconteceu com a teoria da relatividade, com o darwinismo, coisas que são produzidas no domínio intelectual e que acabam por se disseminar para a cultura. É verdade que um paciente vem ao consultório sabendo de antemão boa parte das coisas que o psicanalista vai lhe dizer, tem representações sociais prontas a respeito, mas isso não leva necessariamente a um enfraquecimento da psicanálise -é melhor falar em uma mudança de relação entre a psicanálise e a cultura, na medida em que esta foi transformada por aquela. Por outro lado, além de perguntarmos sobre a penetração da psicanálise na cultura, poderíamos indagar o oposto: em que medida a psicanálise como ciência não sofre a pressão da cultura ao seu redor? Ainda mais porque, em sociedades individualistas, esse tipo de conceitos e escritos que se endereçam aos indivíduos tem um pouco mais de poder do que outros.

O senhor afirma que a sociedade moderna é uma "máquina de fazer deuses"...
O que quero dizer é que todo sistema de saber, em uma cultura, se torna um sistema de crença. E a crença pode tomar a forma de mito. Nós temos os mitos científicos e técnicos, que fazem parte de nossa cultura. Nesse ponto a ciência e o senso comum se misturam. Se não temos o mito propriamente dito, temos desde o século 16 a emergência de mitos científicos. É o caso dos mitos darwinistas, genéticos, como, ultimamente, o da clonagem.

Se o papel da "crença" é tão crucial para as verdades, como pensar o inverso disso? Como averiguar, no domínio da vida comum, se há "verdade" em nossas crenças?
O indivíduo não pode descobrir isso solitariamente. Somos animais conversacionais, é só na conversação permanente, seja o diálogo interior, seja o diálogo exterior, que podemos decidir quanto a isso.

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