São Paulo, domingo, 28 de outubro de 2001

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Um futuro desencantado

"Cultura Infantil" traz análises críticas de desenhos, filmes e brinquedos, como Barbie e "Beavis e Butt-Head"

Cultura Infantil

416 págs., R$ 45,00 Shirley R. Steinberg e Joe L. Kincheloe (orgs.). Trad. de George Eduardo Japiassú Bricio. Ed. Civilização Brasileira (r. Argentina, 171, CEP 20921-380, RJ, tel. 0/xx/21/ 585-2000).

Esther Hamburger
especial para a Folha

Como as crianças, nas quais as sociedades ocidentais depositam suas esperanças de futuro, reagem à ironia cética e escatológica de desenhos animados como "Beavis e Butt-Head", às discriminações raciais e de gênero expressas nos filmes da Disney, à violência desenfreada dos videogames? Quais os significados associados às inúmeras versões da Barbie? De que maneira o McDonald's veio "moldar o cotidiano" representando valores referentes à gloriosa América em relação às crianças dos EUA e do mundo? Seria possível falar de uma "cultura infantil" produzida por corporações e que estaria substituindo as instituições tradicionais na educação das crianças? O tema não é novo. Nos Estados Unidos ele vem à tona cada vez que um jovem "nerd", de classe média, ataca, com bombas de fabricação caseira, seus colegas e professores em alguma escola de subúrbio, perturbando a paz na América profunda e deixando claro que nem todos os perigos vêm do Oriente distante. Mas "Cultura Infantil - A Construção Corporativa da Infância", coletânea de artigos organizada por Shirley R. Steinberg e Joe Kincheloe, originalmente publicada nos Estados Unidos, parte de pressupostos originais para descrever um conjunto de práticas e representações que configuram um panorama sombrio. O livro reúne análises críticas sobre um repertório variado de produtos dirigidos a crianças, que inclui filmes, seriados televisivos, ficção de terror, brinquedos e até a célebre rede de lanchonetes. Esse caleidoscópio de artigos dirigidos às crianças funcionaria como uma espécie de contraponto à desarticulação da infância tal como estamos acostumados a pensar nela. Expressando o ponto de vista de educadores, profissionais especializados no trabalho com a infância, o capítulo introdutório do livro situa o estatuto da infância na história. Embora apareça como natural, os educadores chamam a atenção para o caráter de construção social, associado à Revolução Industrial e à consolidação do capitalismo da forma atual de representação e organização social da infância. Retomando a pesquisa de historiadores das mentalidades e da vida privada, os organizadores do livro lembram que essa infância que conhecemos hoje, como período bem demarcado da vida, definido como inocente e protegido pela sociedade, está em crise.


O livro será ainda mais útil se conseguir inspirar a reflexão sobre possíveis teias de sociabilidade alternativa


Enfrentar o perigo
Os autores do livro questionam o modelo da psicologia infantil clássica, com sua definição abstrata e universal de fases do desenvolvimento cognitivo, independente de contextos históricos específicos. Na Idade Média as crianças participavam do conjunto das atividades da unidade familiar. A infância, entendida como fase do desenvolvimento biológico, legitimada pela psicologia infantil, consolidada no trabalho de clássicos como Jean Piaget, coincide com a afirmação do modelo de família nuclear.
Na sociedade contemporânea, graças à comunicação de massa e à propaganda, as crianças possuem acesso ao mundo dos adultos independentemente da autoridade de instituições como a família, a igreja e a escola.
A fragmentação da família, por exemplo, seria parte de um conjunto de mudanças que inclui o acesso mais amplo das crianças a informações do mundo adulto, por meio da propaganda e dos meios de comunicação de massa. Nos EUA, na segunda metade do século 20, a perda de autoridade da família pode ser medida por números que indicam, por exemplo, que enquanto nos anos de 1950 80% das crianças americanas viviam em lares compostos por famílias nucleares completas, no final dos anos 80 essa porcentagem teria caído para 12%.
Para os organizadores do livro, "a crise da infância contemporânea pode significar, de várias formas, tudo o que envolva, de algum modo, o horror de enfrentar sozinho o perigo". O futuro para as crianças educadas pela propaganda e por artefatos produzidos por corporações orientadas exclusivamente pela busca do lucro é sombrio. Bonecas, cards, Power Rangers, ficção de terror e desenhos animados merecem a crítica aguçada de especialistas, que denunciam as conexões desses ícones da cultura pop com um consumismo despolitizado e desesperançado, expressão de uma falta de perspectiva quase entediante -talvez não muito diferente da lógica que articula artefatos dirigidos aos adultos.
O livro é útil para disseminar a crítica e a atenção geral para produtos que muitas vezes passam despercebidos, justamente porque destinados às crianças.
Para além de cada uma das denúncias e do panorama que as articula, o livro será ainda mais útil se conseguir inspirar a reflexão sobre possíveis teias de sociabilidade alternativa e possíveis maneiras de subverter um imaginário sem graça e desencantado que se esconde por trás de espetáculos de violência estilizada ou de consumo glamouroso. É possível, por exemplo, pensar que, se as crianças não representam mais seres hiperfrágeis e desprotegidos, os adultos podem se permitir a encarar meninos e meninas como interlocutores válidos que são.


Esther Hamburger é antropóloga e professora na Escola de Comunicações e Artes da USP.



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