São Paulo, domingo, 28 de outubro de 2001

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Em "A Ilusão Vital" o filósofo francês Jean Baudrillard discute a clonagem e a virtualização do real

O reverso da utopia


Baudrillard trabalha com uma dissociação entre fato e informação; esquece que todo fato já vem informado por interpretações


Evando Nascimento
especial para a Folha

Lendo "A Ilusão Vital", de Jean Baudrillard, somos muitas vezes levados a balançar a cabeça, em sinal de concordância. São três ensaios escritos no ano passado, em estilo refinado e claro, e que têm a sagacidade de descrever e mesmo antecipar acontecimentos da atualidade. No entanto um sentimento diverso também nos assalta diante do diagnóstico que constrói uma espécie de utopia negativa. O quadro catastrófico da realidade contemporânea é tão perfeito que algo ali pode servir como índice para uma releitura, a contrapelo dos argumentos utilizados.
Num primeiro momento, Baudrillard alinha uma série de críticas aos procedimentos de clonagem. Clonar seres humanos seria um retrocesso, pois a reprodução sexual teria sido uma conquista relativamente ao estado de indiferenciação dos protozoários. Reproduzir-se sexualmente significa a garantia da diferença, enquanto a multiplicação do idêntico traria um retorno ao estágio primitivo e poderia levar ao fim da espécie. Baudrillard insiste na "indiferenciação tecnológica" advinda da ênfase na reprodutibilidade técnica (Walter Benjamin) aplicada ao homem, o que gera a perda de limites entre o humano e o inumano.
Todavia a causa da indiferenciação não me parece a reprodutibilidade, já existente na própria natureza humana, uma vez que as células se autoclonam em permanência. Na verdade o que resulta na hegemonia do mesmo são as práticas de mercado que se incluem na atividade capitalista de produção de bens em sua fase avançada. Em si, a reprodutibilidade não tem valor, pois o valor é sempre a resultante das forças em contato, e não uma atribuição prévia em relação às experiências humanas.
No segundo capítulo, Baudrillard ataca o processo de virtualização do real. O exemplo é o chamado "tempo real", a transmissão direta de acontecimentos que muitas vezes resulta no espetáculo hiper-realista. Ocorre um excesso de informação sobrepujando o fato, e assim é a própria dimensão histórica que se perde. Donde a conclusão: "A modernidade acabou (sem nunca ter acontecido)". Nesse sentido, mas num outro contexto, ele tinha proferido a polêmica frase, segundo a qual a Guerra do Golfo não teve lugar ou aconteceu. Hoje ele poderia declarar algo parecido sobre o desabamento das torres do World Trade Center e o conflito no Afeganistão...
Baudrillard na verdade trabalha com uma dissociação entre fato e informação. Esquece, dessa maneira, que todo fato já vem informado por interpretações, pois no momento mesmo em que é vivenciado entra no repertório das leituras de seus participantes que poderão, a depender do caso, partilhá-lo com outros intérpretes, fazendo a informação circular.
Além disso, o real não se opõe simplesmente ao virtual, eles constituem o duplo um do outro, assumindo múltiplas combinações, como formas de presença e ausência. Nada mais virtual que o mundo das partículas subatômicas no entanto, nada mais determinante de nossa realidade macrofísica. A mercantilização informativa, aliada ao privilégio do espetáculo, é que merece ser amplamente criticada, em proveito de novas políticas da interpretação.
Assim, o combate de Baudrillard ao "pensamento único" da modernidade se anularia na qualidade de crítica, pelo fato de se deixar reger pela hegemonia e pelo princípio da identidade absoluta que contraditoriamente procura abalar. Se abandonarmos o livro sem chegar à última parte, acabaremos sufocados nas malhas de um texto dogmático, o de Baudrillard, que se identifica ao objeto que em princípio analisa e denuncia: o "monopensamento" da mídia. Todavia a conclusão da leitura faz crer que o objetivo é justamente esse, levar o raciocínio ao absurdo, gerando um mal-estar em seus leitores.
Para Baudrillard, a "ilusão vital" é a saída para uma reflexão paradoxal que descobre finalmente não existir pensamento único, pois jamais há coincidência absoluta entre o mesmo e o semelhante. A afirmação do ilusório resulta num "otimismo radiante" ou ironicamente trágico, que aposta no retorno do hiato, da diferença e da alteridade, ali onde tudo parecia reduzido ao idêntico.
A questão que se pode colocar a Baudrillard é se a carga negativa de seu método e, principalmente, a solução pela "via ilusória" não correm o risco de diluir sua brilhante análise no campo que deseja, segundo explicita, desconstruir. Pois "ilusão", dentro da tradição metafísica e racionalista, é ainda o perfeito contrário da verdade, da certeza, do real concreto como instância única e indubitável. O credenciar as oposições como tais, sem propor a genealogia de seus valores (Nietzsche), retira a força do método naquilo que ele teria de mais consequente.
Pode-se, assim, rasurar a expressão de Baudrillard e substituí-la por uma "tensão vital". Tensão não no sentido dialético, pois não existe terceiro termo que a resolva em definitivo. Não há, acima de tudo, "solução final". Existe um jogo intensivo entre opostos que se chocam, se revertem, se encontram em mais de um ponto e lançam o desafio a nós intérpretes (pensadores, a sociedade, a comunidade dos seres vivos, o mundo) de encontrar a saída, em cada situação de aporia e conflito. Conflito vital.


Evando Nascimento é professor adjunto da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de "Derrida e a Literatura" (Ed. da Universidade Federal Fluminense).



A Ilusão Vital
96 págs., R$ 17,00
de Jean Baudrillard. Trad. de Luciano Trigo. Ed. Civilização Brasileira (r. Argentina, 171, CEP 20921-380, RJ, tel. 0/xx/21/585-2000).



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