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Em "A Ilusão Vital" o filósofo francês Jean Baudrillard
discute a clonagem e a virtualização do real
O reverso da utopia
Baudrillard trabalha com uma dissociação entre fato e informação; esquece que todo fato já vem informado por interpretações
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Evando Nascimento
especial para a Folha
Lendo "A Ilusão Vital", de Jean Baudrillard, somos muitas vezes levados a balançar a cabeça, em sinal de
concordância. São três ensaios escritos no ano passado, em estilo refinado
e claro, e que têm a sagacidade de descrever e mesmo antecipar acontecimentos
da atualidade. No entanto um sentimento diverso também nos assalta diante do
diagnóstico que constrói uma espécie de
utopia negativa. O quadro catastrófico
da realidade contemporânea é tão perfeito que algo ali pode servir como índice
para uma releitura, a contrapelo dos argumentos utilizados.
Num primeiro momento, Baudrillard
alinha uma série de críticas aos procedimentos de clonagem. Clonar seres humanos seria um retrocesso, pois a reprodução sexual teria sido uma conquista
relativamente ao estado de indiferenciação dos protozoários. Reproduzir-se sexualmente significa a garantia da diferença, enquanto a multiplicação do idêntico traria um retorno ao estágio primitivo e poderia levar ao fim da espécie. Baudrillard insiste na "indiferenciação tecnológica" advinda da ênfase na reprodutibilidade técnica (Walter Benjamin)
aplicada ao homem, o que gera a perda
de limites entre o humano e o inumano.
Todavia a causa da indiferenciação não
me parece a reprodutibilidade, já existente na própria natureza humana, uma
vez que as células se autoclonam em permanência. Na verdade o que resulta na
hegemonia do mesmo são as práticas de
mercado que se incluem na atividade capitalista de produção de bens em sua fase
avançada. Em si, a reprodutibilidade não
tem valor, pois o valor é sempre a resultante das forças em contato, e não uma
atribuição prévia em relação às experiências humanas.
No segundo capítulo,
Baudrillard ataca o processo de virtualização do
real. O exemplo é o chamado "tempo real", a
transmissão direta de
acontecimentos que muitas vezes resulta no espetáculo hiper-realista. Ocorre um excesso de informação
sobrepujando o fato, e assim é a própria
dimensão histórica que se perde. Donde
a conclusão: "A modernidade acabou
(sem nunca ter acontecido)". Nesse sentido, mas num outro contexto, ele tinha
proferido a polêmica frase, segundo a
qual a Guerra do Golfo não teve lugar ou
aconteceu. Hoje ele poderia declarar algo
parecido sobre o desabamento das torres
do World Trade Center e o conflito no
Afeganistão...
Baudrillard na verdade trabalha com
uma dissociação entre fato e informação.
Esquece, dessa maneira, que todo fato já
vem informado por interpretações, pois
no momento mesmo em que é vivenciado entra no repertório das leituras de
seus participantes que poderão, a depender do caso, partilhá-lo com outros intérpretes, fazendo a informação circular.
Além disso, o real não se opõe simplesmente ao virtual, eles constituem o duplo
um do outro, assumindo múltiplas combinações, como formas de presença e ausência. Nada mais virtual que o mundo
das partículas subatômicas no entanto,
nada mais determinante de nossa realidade macrofísica. A mercantilização informativa, aliada ao privilégio do espetáculo, é que
merece ser amplamente
criticada, em proveito de
novas políticas da interpretação.
Assim, o combate de
Baudrillard ao "pensamento único" da modernidade se anularia na qualidade de crítica, pelo fato de se deixar reger pela hegemonia e pelo princípio da
identidade absoluta que contraditoriamente procura abalar. Se abandonarmos
o livro sem chegar à última parte, acabaremos sufocados nas malhas de um texto
dogmático, o de Baudrillard, que se identifica ao objeto que em princípio analisa
e denuncia: o "monopensamento" da
mídia. Todavia a conclusão da leitura faz
crer que o objetivo é justamente esse, levar o raciocínio ao absurdo, gerando um
mal-estar em seus leitores.
Para Baudrillard, a "ilusão vital" é a saída para uma reflexão paradoxal que descobre finalmente não existir pensamento
único, pois jamais há coincidência absoluta entre o mesmo e o semelhante. A
afirmação do ilusório resulta num "otimismo radiante" ou ironicamente trágico, que aposta no retorno do hiato, da diferença e da alteridade, ali onde tudo parecia reduzido ao idêntico.
A questão que se pode colocar a Baudrillard é se a carga negativa de seu método e, principalmente, a solução pela
"via ilusória" não correm o risco de diluir sua brilhante análise no campo que
deseja, segundo explicita, desconstruir.
Pois "ilusão", dentro da tradição metafísica e racionalista, é ainda o perfeito contrário da verdade, da certeza, do real concreto como instância única e indubitável.
O credenciar as oposições como tais,
sem propor a genealogia de seus valores
(Nietzsche), retira a força do método naquilo que ele teria de mais consequente.
Pode-se, assim, rasurar a expressão de
Baudrillard e substituí-la por uma "tensão vital". Tensão não no sentido dialético, pois não existe terceiro termo que a
resolva em definitivo. Não há, acima de
tudo, "solução final". Existe um jogo intensivo entre opostos que se chocam, se
revertem, se encontram em mais de um
ponto e lançam o desafio a nós intérpretes (pensadores, a sociedade, a comunidade dos seres vivos, o mundo) de encontrar a saída, em cada situação de aporia e conflito. Conflito vital.
Evando Nascimento é professor adjunto da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de
"Derrida e a Literatura" (Ed. da Universidade Federal Fluminense).
A Ilusão Vital
96 págs., R$ 17,00
de Jean Baudrillard. Trad. de Luciano Trigo. Ed. Civilização Brasileira (r. Argentina, 171, CEP
20921-380, RJ, tel. 0/xx/21/585-2000).
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