São Paulo, domingo, 28 de outubro de 2001

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Ponto de fuga

Peixe solúvel

"O subterrâneo em cuja entrada fica uma pedra tumular com meu nome inscrito é o subterrâneo onde melhor chove." O humor foi celebrado pelos surrealistas, mas o humor surrealista é antes máscara da melancolia. Bem triste, um peixe solúvel: seu destino é dissolver-se na água. Em 1924 André Breton publicou um livro de poemas "automáticos" com esse estranho título. A citação acima vem de um deles: "Só a chuva é divina". O ano de 1922 havia sido o "Ano dos Sonos": os surrealistas voltaram-se para a hipnose e procuraram também se manter o mais tempo possível acordados, para capturar sonhos.
Há um certo clima de transe na exposição "Surrealismo", que termina hoje no Rio de Janeiro. Articulando os espaços muito compartimentados do Centro Cultural Banco do Brasil, a cenografia integra e conduz o público. Ela transformou as janelas, na fachada do edifício, em fragmentos de céus como os pintava Magritte. O peixe surreal serve de indicador, repetindo-se, às vezes imensos, às vezes penetrando nas paredes ou reduzindo-se em crachá no peito dos visitantes. Nessa fluência mostram-se as obras, postas em valor e dialogando entre si. Formam um número muito grande. Não se limitam aos nomes celebrados e favoritos do público: Miró, Dalí, Picasso, Magritte, Ernst. A eles acrescentam-se também artistas confidenciais e raros: quando se viram tantos Brauner, e de tal qualidade, no Brasil? Masson escolhidos a dedo, deliciosos Penrose, entre as surpresas. Poucas lacunas sérias: Delvaux, apenas, talvez.
"Vis-à-vis" - Um dos méritos da mostra "Surrealismo" foi o de mesclar latino-americanos com a produção européia. Não se pinçaram, apenas, aqui e ali, artistas conhecidos. Wilfredo Lam, Matta, Frida Kahlo e outros, do mesmo calibre, estão presentes. Mas, para além deles, o conjunto é denso, completo, incluindo brasileiros, em obras de grande qualidade. A trança formada com os parceiros europeus mostra-se cerrada. Ocasião muito rara para apreender afinidades e meandros.
Identificação - Diante da dificuldade em definir a arte surrealista, Breton sugeria que, do mesmo modo como se via no cinema: "Este é um filme da Paramount", poderia se encontrar, autenticando uma tela: "Este é um quadro surrealista". Há o sentido estrito, histórico, da arte surrealista, tendendo a concentrar um núcleo menor que o próprio surrealismo. Há a concepção larga, inspirada na banalização da palavra surrealismo, capaz de levar a tudo e a qualquer coisa. A mostra intuiu melhor. Ela traz escolhas inspiradas por um espírito surrealista que, apoiado na história, soube espraiar-se.
Objetiva - É difícil imaginar um movimento artístico que tenha conferido tanta importância ao cinema e à fotografia quanto o surrealismo. Com ele, a câmara se tornou capaz de arrestar o invisível, máquina de revelar a estranheza do mundo. Os olhos seriam presas fáceis de ilusões; as lentes captariam um real verdadeiro, mágico e forte, disfarçado por trás das aparências anódinas do cotidiano e do bom senso. A fotografia surrealista é um dos capítulos maiores da arte do século 20. Na mostra "Surrealismo", no Rio, encontra-se Man Ray em sublimes tiragens, inserido num espectro largo de fotógrafos. Dentre eles, Jorge de Lima, que praticou, no Brasil, a fotomontagem, publicada num volume, "A Pintura em Pânico" (1943).
Solto - Murilo Mendes inventou títulos para quadros de Max Ernst que não existem: "Os Labirintos Voam de Noite e Repousam de Dia". "O Imperador Decapitado Aguarda no Vestíbulo a Audiência do Serrote." "Freud Persegue-Me Vestido de Fedra, com um Grande Decote e Segurando Tenazes em Forma de Luvas." "As Espiãs durante o Dia Permutam Seus Sonhos". Enfim: "A Cabeça de Salvador Dalí Serve-se Bem Fria, Bigodes Inclusive, com Vinagre e Conhaque, numa Bandeja Guarnecida de Dólares".


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br




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