São Paulo, Domingo, 28 de Novembro de 1999


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CINEMA
O diretor Eduardo Coutinho fala sobre "Santo Forte", seu mais recente filme
A cultura do transe

INÁCIO ARAUJO
Crítico de cinema

JOSÉ GERALDO COUTO
da Equipe de Articulistas

Um dos mais impressionantes documentários dos últimos tempos, "Santo Forte", de Eduardo Coutinho, que está em cartaz em São Paulo e concorre no Festival de Cinema de Brasília, é uma investigação em profundidade do imaginário popular brasileiro.
Em vez de traçar um painel geográfico das religiões no país, como Ricardo Dias fez em "Fé" (também em cartaz), Coutinho optou por fechar seu foco em uma dúzia de personagens, todos eles moradores da favela Vila Parque da Cidade, no Rio.
No final de 1997, subiu com sua equipe ao morro para filmar os depoimentos desses personagens, que transitam entre o catolicismo, a umbanda, o espiritismo e as igrejas evangélicas. Nas histórias que contam, ao falar de sua relação diária com o sagrado, eles dão a ver também a teia de relações sociais, étnicas, afetivas e morais que constituem seu mundo. Na entrevista a seguir, Coutinho, 66, que é autor também do clássico "Cabra Marcado para Morrer" (1984), fala sobre sua personalíssima visão do documentário e discute as religiões populares.
 

Folha - Além de "Santo Forte", há vários filmes novos brasileiros que tratam da religião, como "Fé", "Milagre em Juazeiro", de Wolney Oliveira, e o documentário que José Joffily está preparando sobre a Igreja Católica. Você tem alguma explicação para essa coincidência?
Eduardo Coutinho -
Talvez tenha a ver com essa coisa de fim de milênio, com a implosão do socialismo, não sei. Talvez as pessoas sintam que o buraco é mais embaixo e tenham vontade de entender melhor essas forças culturais profundas.
Pode ser que exista também um interesse sociológico de procurar entender o avanço dos evangélicos pentecostais e a tentativa dos católicos, por meio dos carismáticos, de entrar no mercado.

Folha - Em que seu filme se diferencia dos outros?
Coutinho -
Estou interessado na religião que está no cotidiano mais popular, que é o negócio da umbanda, um dos candomblés mais impuros que existe. Existe uma aprovação, uma valorização intelectual do candomblé, que é interessante porque exalta a auto-estima da cultura negra. Mas a umbanda ainda é algo reprimido no Brasil.
O próprio Fernando Henrique Cardoso disse que era um cartesiano com uma pitada de candomblé. Ele jamais diria que era um cartesiano com uma pitada de umbanda. A umbanda não tem a dignidade das origens seculares na África, não tem a cosmologia complexa do candomblé. A umbanda é relativamente recente. Foi inventada nos anos 20. Além disso, ela é de um kitsch tremendo, enquanto os símbolos do candomblé já têm toda uma abstração, já não são nem figurativos. Outra coisa: a umbanda assusta, porque o bem e o mal estão misturados. Umbanda sem quimbanda não existe.
Mas a verdadeira religião popular de massa é a católica-umbandista, essa coisa misturada em que o transe está presente, o bem e o mal estão presentes, e na qual o Exu tem um papel essencial.

Folha - A umbanda é a verdadeira religião popular do Brasil?
Coutinho -
Eu diria que a umbanda é a bricolagem mais perfeita para simbolizar o Brasil. No cinema, ela foi pouco tratada. Nos anos 60, havia aquela idéia de que religião era o ópio do povo, e por isso deixamos de fazer filmes sobre o assunto.
Nelson Pereira dos Santos deu uma virada com "O Amuleto de Ogum" (1974), um filme fascinante, que recuperava a umbanda. Só que ele puxava para o outro extremo, vendo-a como algo unicamente positivo, pegando o lado da caridade, da solidariedade. Mas a umbanda não é só isso. É um troço da presença do bem e do mal, da presença do Exu.
De repente, você mata alguém e depois diz: não fui eu, foi o Exu que me tomou. Há uma contradição absoluta nessa crença, porque a pessoa nunca é culpada individualmente, pois é manipulada por entidades.
Mesmo a Igreja Universal, que é contra a umbanda, acredita que o mal é causado por uma entidade maléfica que se apossa dos indivíduos. Nesse sentido, embora sejam opostas, a Universal e a umbanda participam da mesma cultura do transe, da possessão.

Folha - Você, no filme, parte de algo que é documental e, no decorrer dos depoimentos, começa a penetrar numa camada que é imaginária. Tudo vira uma ficção, em que Exu e os guias têm a mesma densidade dos personagens reais.
Coutinho -
Quando eu filmo uma pessoa, eu a chamo de personagem. A pessoa que fala para a câmera, para mim, passa a ser personagem. Ele não é um professor que está lá para dar uma informação: é um anônimo que está falando da sua vida.
Eu posso me apaixonar por um personagem pelo que ele me deu para o filme. Fico devedor desse cara, eu amo esse cara -no momento da filmagem, claro. Para mim, a filmagem é um acontecimento único: não houve antes, nem há depois. Não me importa que isso pareça metafísico. Tenho que acreditar nisso para ter vontade de filmar. Talvez venha daí esse efeito que você chama de ficcional. Mas não é igual à ficção. Veja, a montagem desse filme é não-ficcionalizante. Eu poderia jogar com a montagem, misturar um personagem com outro, juntar fragmentos, jogar para o fim o que estava no começo e com isso criar uma ficção.
Eu usei o Avid, que é um equipamento de edição não-linear, e fiz uma montagem absolutamente linear, mantendo os depoimentos em sua integridade, respeitando o retrato que cada personagem faz de si mesmo.
Cada personagem deu um depoimento único, de 40, 50 minutos, no máximo uma hora. Todos eles, sem exceção, foram filmados de um ângulo fixo, com uma zoom que permitia apenas uma variação mínima, do close no rosto ao plano médio.
Minha tese era a de que eu podia fazer um filme desprezando inteiramente essa coisa do plano de corte, que torna a montagem mais suave, "invisível". Tenho 50 planos descontínuos no filme, alguns ligados por cortes aparentemente pavorosos. Minha idéia é a seguinte: depois do terceiro ou quarto corte descontínuo o público se esquece disso, por causa do fluxo verbal.

Folha - Você recusou tudo aquilo que é considerado "artístico" ou "poético" no cinema...
Coutinho -
Acho interessante tratar do prosaico poeticamente e do poético prosaicamente. Em "Santo Forte", a fala dos personagens, por ser de um imaginário muito rico, é poética. Por isso, resolvi tratá-la do modo mais prosaico possível. Não teria sentido fazer o poético sobre o poético.
A poesia vem do que dizem os personagens, não da filmagem. Esta tem que ser extremamente bruta. Fiz em vídeo não tanto por economia, mas pela possibilidade de filmar continuamente por meia hora, coisa que em cinema seria impossível. Quando acaba o filme e você tem de interromper o depoimento para trocar de rolo, estraga tudo. Esfria o clima, inibe o personagem.
Resolvi dar prioridade total ao discurso dos personagens. Por uma razão simples: se eu não fizesse isso, ninguém ia fazer. Ninguém está interessado em apostar assim radicalmente na palavra.

Folha - Como você escolheu os personagens?
Coutinho -
Eu me baseei, primeiro, numa pesquisa prévia feita na favela Vila Parque da Cidade por uma antropóloga junto a um certo número de moradores. Ela trabalhou com uma moça da comunidade, a Vera Dutra dos Santos, que acabou funcionando como assistente de produção.
Num segundo momento, escolhi de acordo com o próprio depoimento de cada um. Houve gente que tinha histórias maravilhosas, mas contava mal, e por isso ficou de fora. Essa poética depende de saber contar. Quando a pessoa conta algo bem, aquilo passa a ser verdade, até porque a verdade não é investigável. Se uma mulher fala que viu a Pomba-Gira e conversou com ela, se aquilo é verdade para ela, isso me basta.
Sempre acontecem algumas surpresas. O Braulino, por exemplo, aquele negro de cabelo grisalho, foi descoberto por acaso, não estava na pesquisa prévia.
Havia uma mulher que tinha uma vida extraordinária, que recebia o espírito da sogra, mas ela contou tão mal que não entrou no filme. O marido dela é que entrou. Ele era apenas o marido, o coadjuvante, mas contou de modo fantástico as duas descidas do espírito da mãe na mulher.
Houve um caso de uma mulher que dizia ver o Exu da mãe dela, que era uma caveira, e ter visões do marido traindo-a com outra. A parte que filmamos do seu depoimento, separada do conjunto do discurso, tendia para o pitoresco, para o grotesco e por isso resolvi deixá-la de fora.
Meu problema era não dar a impressão de que aquelas pessoas fossem loucas, nem de que eu estava tentando desvalorizar um cara da Universal, da Igreja Católica, ou o que fosse. Eu não tenho nenhum "parti pris", não estou julgando nada nem ninguém.

Folha - A ausência de rituais no filme foi uma decisão tomada desde o início?
Coutinho -
A ausência total, não. Meu problema era: como filmar uma cerimônia de umbanda de maneira diferente da que a TV mostra? Como fugir do clichê? Para mim, era preferível não ter isso do que ter de uma forma tradicional, totalmente impessoal.
Também tem outra vantagem em dar prioridade à palavra falada, em vez da imagem: a palavra permite a cada um imaginar o que a coisa pode ser. Quando a mulher fala: "O pastor faz isso e aquilo", mesmo que você não conheça o culto, pode imaginar.
A única imagem ilustrativa tradicional que tem no filme é a cena da dança de cabaré, da personagem Carla, que dura uns 30 segundos. Deixei, porque era o único caso em que o trabalho da personagem estava ligado àquela coisa da Pomba-Gira, da meia-noite etc. Mas, se eu fosse rigoroso até o fim, essa cena não teria entrado.

Folha - Você já declarou que não gosta do modo como certos intelectuais encaram a religiosidade popular, rotulando-a como magia ou superstição.
Coutinho -
É, pois essa relação entre magia e religião é complicada. Na verdade, é difícil imaginar uma religião sem algum grau de crença mágica. E mesmo fora das religiões. O próprio pensamento socialista teve muito de mágico. Quer coisa mais mágica do que julgar que a Albânia é o paraíso terrestre, como muita gente séria acreditou?
O comportamento mágico está presente toda hora. Eu uso um amuleto para andar de avião, mas nem precisa ser uma coisa tão direta. O que é a neurose, senão uma forma de magia? A repetição de rituais, coisas que fazemos sem perceber. É tudo magia. Não dá para distinguir, na essência, uma religião "elevada" da crendice. Lourdes, Fátima, Aparecida -isso não é crendice?
A Carla disse uma coisa que ficou fora do filme por um problema de montagem: "A Universal é uma umbanda disfarçada". O marido vai embora, a mulher vai lá na igreja e leva a cueca dele para ser ungida. É um exemplo pleno de magia. O adepto da Universal acredita piamente nessa coisa de que existe transe, de que existe alguém que vem de fora -só que, para eles, é o diabo. E para a umbanda não é exatamente o diabo.
Os católicos também acreditam na possessão, no exorcismo.

Folha - Quase todos, no filme, se dizem católicos, mesmo que pratiquem outras religiões. Você descobriu por quê?
Coutinho -
De um lado, tem um problema claro de dominação simbólica e cultural, não é? Porque a Igreja Católica é o Brasil desde o começo, e essa coisa continua forte. Tem um pouco de fator inercial nisso e também uma preocupação em se resguardar. Porque, se o sujeito já é negro e pobre, dizer que é umbandista é muito mais complicado.
Agora há gente no candomblé que quer reagir contra séculos de sincretismo, tirar os santos de altar, restaurar a pureza dos orixás etc. Não vai ser fácil. Até porque, se os orixás têm muita força, têm "axé", como eles dizem, os santos católicos têm um "axé" imenso, não é? Porque eles estão aí há séculos e séculos.

Folha - Existe uma hierarquia social das religiões, não?
Coutinho -
Existe. Um personagem do filme, o Dejair, diz uma coisa perfeita, que é o seguinte: "É tudo África, mas a umbanda é o curso primário; o candomblé angola (que é impuro, que tem caboclo e índio) é o curso secundário; e a faculdade são os mais cultos, da nação ketu, Mãe Menininha, essas coisas".
Por isso, é difícil alguém dizer: "Sou da umbanda". O termo que eles preferem é "espírita", que é mais respeitável. Há uma personagem que começou no catolicismo, como quase todos, passou para a umbanda e depois foi para o "centro dos patrões", que é o kardecismo, ou "espiritismo de mesa". Ela diz: "Fui para o espiritismo de mesa porque achei que era mais decente". Existe aí um componente óbvio de estratificação social.


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