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CINEMA
O diretor Eduardo Coutinho fala sobre "Santo Forte", seu mais recente filme
A cultura do transe
INÁCIO ARAUJO
Crítico de cinema
JOSÉ GERALDO COUTO
da Equipe de Articulistas
Um dos mais impressionantes
documentários dos últimos tempos, "Santo Forte", de Eduardo
Coutinho, que está em cartaz em
São Paulo e concorre no Festival
de Cinema de Brasília, é uma investigação em profundidade do
imaginário popular brasileiro.
Em vez de traçar um painel geográfico das religiões no país, como
Ricardo Dias fez em "Fé" (também em cartaz), Coutinho optou
por fechar seu foco em uma dúzia
de personagens, todos eles moradores da favela Vila Parque da Cidade, no Rio.
No final de 1997, subiu com sua
equipe ao morro para filmar os
depoimentos desses personagens,
que transitam entre o catolicismo,
a umbanda, o espiritismo e as
igrejas evangélicas. Nas histórias
que contam, ao falar de sua relação diária com o sagrado, eles dão
a ver também a teia de relações
sociais, étnicas, afetivas e morais
que constituem seu mundo. Na
entrevista a seguir, Coutinho, 66,
que é autor também do clássico
"Cabra Marcado para Morrer"
(1984), fala sobre sua personalíssima visão do documentário e discute as religiões populares.
Folha - Além de "Santo Forte",
há vários filmes novos brasileiros que tratam da religião, como "Fé", "Milagre em Juazeiro",
de Wolney Oliveira, e o documentário que José Joffily está
preparando sobre a Igreja Católica. Você tem alguma explicação para essa coincidência?
Eduardo Coutinho - Talvez tenha a ver com essa coisa de fim de
milênio, com a implosão do socialismo, não sei. Talvez as pessoas sintam que o buraco é mais
embaixo e tenham vontade de entender melhor essas forças culturais profundas.
Pode ser que exista também um
interesse sociológico de procurar
entender o avanço dos evangélicos pentecostais e a tentativa dos
católicos, por meio dos carismáticos, de entrar no mercado.
Folha - Em que seu filme se diferencia dos outros?
Coutinho - Estou interessado
na religião que está no cotidiano
mais popular, que é o negócio da
umbanda, um dos candomblés
mais impuros que existe. Existe
uma aprovação, uma valorização
intelectual do candomblé, que é
interessante porque exalta a auto-estima da cultura negra. Mas a
umbanda ainda é algo reprimido
no Brasil.
O próprio Fernando Henrique
Cardoso disse que era um cartesiano com uma pitada de candomblé. Ele jamais diria que era
um cartesiano com uma pitada de
umbanda. A umbanda não tem a
dignidade das origens seculares
na África, não tem a cosmologia
complexa do candomblé. A umbanda é relativamente recente.
Foi inventada nos anos 20. Além
disso, ela é de um kitsch tremendo, enquanto os símbolos do candomblé já têm toda uma abstração, já não são nem figurativos.
Outra coisa: a umbanda assusta,
porque o bem e o mal estão misturados. Umbanda sem quimbanda não existe.
Mas a verdadeira religião popular de massa é a católica-umbandista, essa coisa misturada em que
o transe está presente, o bem e o
mal estão presentes, e na qual o
Exu tem um papel essencial.
Folha - A umbanda é a verdadeira religião popular do Brasil?
Coutinho - Eu diria que a umbanda é a bricolagem mais perfeita para simbolizar o Brasil. No cinema, ela foi pouco tratada. Nos
anos 60, havia aquela idéia de que
religião era o ópio do povo, e por
isso deixamos de fazer filmes sobre o assunto.
Nelson Pereira dos Santos deu
uma virada com "O Amuleto de
Ogum" (1974), um filme fascinante, que recuperava a umbanda. Só que ele puxava para o outro
extremo, vendo-a como algo unicamente positivo, pegando o lado
da caridade, da solidariedade.
Mas a umbanda não é só isso. É
um troço da presença do bem e do
mal, da presença do Exu.
De repente, você mata alguém e
depois diz: não fui eu, foi o Exu
que me tomou. Há uma contradição absoluta nessa crença, porque
a pessoa nunca é culpada individualmente, pois é manipulada
por entidades.
Mesmo a Igreja Universal, que é
contra a umbanda, acredita que o mal é
causado por
uma entidade
maléfica que se
apossa dos indivíduos. Nesse sentido, embora sejam
opostas, a Universal e a umbanda participam da mesma
cultura do
transe, da possessão.
Folha - Você,
no filme, parte
de algo que é
documental e,
no decorrer dos depoimentos,
começa a penetrar numa camada que é imaginária. Tudo vira
uma ficção, em que Exu e os
guias têm a mesma densidade
dos personagens reais.
Coutinho - Quando eu filmo
uma pessoa, eu a chamo de personagem. A pessoa que fala para a
câmera, para mim, passa a ser
personagem. Ele não é um professor que está lá para dar uma informação: é um anônimo que está falando da sua vida.
Eu posso me apaixonar por um
personagem pelo que ele me deu
para o filme. Fico devedor desse
cara, eu amo esse cara -no momento da filmagem, claro. Para
mim, a filmagem é um acontecimento único: não houve antes,
nem há depois. Não me importa
que isso pareça metafísico. Tenho
que acreditar nisso para ter vontade de filmar. Talvez venha daí esse
efeito que você chama de ficcional. Mas não é igual à ficção. Veja,
a montagem desse filme é não-ficcionalizante. Eu poderia jogar
com a montagem, misturar um
personagem com outro, juntar
fragmentos, jogar para o fim o
que estava no começo e com isso
criar uma ficção.
Eu usei o Avid, que é um equipamento de edição não-linear, e
fiz uma montagem absolutamente linear, mantendo os depoimentos em sua integridade, respeitando o retrato que cada personagem
faz de si mesmo.
Cada personagem deu um depoimento único, de 40, 50 minutos, no máximo uma hora. Todos
eles, sem exceção, foram filmados
de um ângulo fixo, com uma
zoom que permitia apenas uma
variação mínima, do close no rosto ao plano médio.
Minha tese era a de que eu podia
fazer um filme desprezando inteiramente essa coisa do plano de
corte, que torna a montagem
mais suave, "invisível". Tenho 50
planos descontínuos no filme, alguns ligados por cortes aparentemente pavorosos. Minha idéia é a
seguinte: depois do terceiro ou
quarto corte descontínuo o público se esquece disso, por causa do
fluxo verbal.
Folha - Você recusou tudo
aquilo que é considerado "artístico" ou "poético" no cinema...
Coutinho - Acho interessante
tratar do prosaico poeticamente e
do poético prosaicamente. Em
"Santo Forte", a fala dos personagens, por ser de um imaginário
muito rico, é poética. Por isso, resolvi tratá-la do modo mais prosaico possível. Não teria sentido
fazer o poético sobre o poético.
A poesia vem do que dizem os
personagens, não da filmagem.
Esta tem que ser extremamente
bruta. Fiz em vídeo não tanto por
economia, mas pela possibilidade
de filmar continuamente por
meia hora, coisa que em cinema
seria impossível. Quando acaba o
filme e você tem de interromper o
depoimento para trocar de rolo,
estraga tudo. Esfria o clima, inibe
o personagem.
Resolvi dar prioridade total ao
discurso dos personagens. Por
uma razão simples: se eu não fizesse isso, ninguém ia fazer. Ninguém está interessado em apostar
assim radicalmente na palavra.
Folha - Como você escolheu os
personagens?
Coutinho - Eu me baseei, primeiro, numa pesquisa prévia feita
na favela Vila Parque da Cidade
por uma antropóloga junto a um
certo número de moradores. Ela
trabalhou com uma moça da comunidade, a Vera Dutra dos Santos, que acabou funcionando como assistente de produção.
Num segundo momento, escolhi de acordo com o próprio depoimento de cada um. Houve
gente que tinha histórias maravilhosas, mas contava mal, e por isso ficou de fora. Essa poética depende de saber contar. Quando a
pessoa conta algo bem, aquilo
passa a ser verdade, até porque a
verdade não é investigável. Se
uma mulher fala que viu a Pomba-Gira e conversou com ela, se
aquilo é verdade para ela, isso me
basta.
Sempre acontecem algumas
surpresas. O Braulino, por exemplo, aquele negro de cabelo grisalho, foi descoberto por acaso, não
estava na pesquisa prévia.
Havia uma mulher que tinha
uma vida extraordinária, que recebia o espírito da sogra, mas ela
contou tão mal que não entrou no
filme. O marido dela é que entrou.
Ele era apenas o marido, o coadjuvante, mas contou de modo
fantástico as duas descidas do espírito da mãe na mulher.
Houve um caso de uma mulher
que dizia ver o Exu da mãe dela,
que era uma caveira, e ter visões
do marido traindo-a com outra. A
parte que filmamos do seu depoimento, separada do conjunto do
discurso, tendia para o pitoresco,
para o grotesco e por isso resolvi
deixá-la de fora.
Meu problema era não dar a impressão de que aquelas pessoas
fossem loucas, nem de que eu estava tentando desvalorizar um cara da Universal, da Igreja Católica,
ou o que fosse. Eu não tenho nenhum "parti pris", não estou julgando nada nem ninguém.
Folha - A ausência de rituais
no filme foi uma decisão tomada desde o início?
Coutinho - A ausência total,
não. Meu problema era: como filmar uma cerimônia de umbanda
de maneira diferente da que a TV
mostra? Como fugir do clichê? Para mim, era preferível não ter isso
do que ter de uma forma tradicional, totalmente impessoal.
Também tem outra vantagem
em dar prioridade à palavra falada, em vez da imagem: a palavra
permite a cada um imaginar o que
a coisa pode ser. Quando a mulher fala: "O pastor faz isso e aquilo", mesmo que você não conheça
o culto, pode imaginar.
A única imagem ilustrativa tradicional que tem no filme é a cena
da dança de cabaré, da personagem Carla, que dura uns 30 segundos. Deixei, porque era o único caso em que o trabalho da personagem estava ligado àquela coisa da Pomba-Gira, da meia-noite
etc. Mas, se eu fosse rigoroso até o
fim, essa cena não teria entrado.
Folha - Você já declarou que
não gosta do modo como certos
intelectuais encaram a religiosidade popular, rotulando-a como magia ou superstição.
Coutinho - É, pois essa relação
entre magia e religião é complicada. Na verdade, é difícil imaginar
uma religião sem algum grau de
crença mágica. E mesmo fora das
religiões. O próprio pensamento
socialista teve muito de mágico.
Quer coisa mais mágica do que
julgar que a Albânia é o paraíso
terrestre, como muita gente séria
acreditou?
O comportamento mágico está
presente toda hora. Eu uso um
amuleto para andar de avião, mas
nem precisa ser uma coisa tão direta. O que é a neurose, senão
uma forma de magia? A repetição
de rituais, coisas que fazemos sem
perceber. É tudo magia. Não dá
para distinguir, na essência, uma
religião "elevada" da crendice.
Lourdes, Fátima, Aparecida -isso não é crendice?
A Carla disse uma coisa que ficou fora do filme por um problema de montagem: "A Universal é
uma umbanda disfarçada". O
marido vai embora, a mulher vai
lá na igreja e leva a cueca dele para
ser ungida. É um exemplo pleno
de magia. O adepto da Universal
acredita piamente nessa coisa de
que existe transe, de que existe alguém que vem de fora -só que,
para eles, é o diabo. E para a umbanda não é exatamente o diabo.
Os católicos também acreditam
na possessão, no exorcismo.
Folha - Quase todos, no filme,
se dizem católicos, mesmo que
pratiquem outras religiões. Você descobriu por quê?
Coutinho - De um lado, tem um
problema claro de dominação
simbólica e cultural, não é? Porque a Igreja Católica é o Brasil
desde o começo, e essa coisa continua forte. Tem um pouco de fator inercial nisso e também uma
preocupação em se resguardar.
Porque, se o sujeito já é negro e
pobre, dizer que é umbandista é
muito mais complicado.
Agora há gente no candomblé
que quer reagir contra séculos de
sincretismo, tirar os santos de altar, restaurar a pureza dos orixás
etc. Não vai ser fácil. Até porque,
se os orixás têm muita força, têm
"axé", como eles dizem, os santos
católicos têm um "axé" imenso,
não é? Porque eles estão aí há séculos e séculos.
Folha - Existe uma hierarquia
social das religiões, não?
Coutinho - Existe. Um personagem do filme, o Dejair, diz uma
coisa perfeita, que é o seguinte: "É
tudo África, mas a umbanda é o
curso primário; o candomblé angola (que é impuro, que tem caboclo e índio) é o curso secundário; e a faculdade são os mais cultos, da nação ketu, Mãe Menininha, essas coisas".
Por isso, é difícil alguém dizer:
"Sou da umbanda". O termo que
eles preferem é "espírita", que é
mais respeitável. Há uma personagem que começou no catolicismo, como quase todos, passou
para a umbanda e depois foi para
o "centro dos patrões", que é o
kardecismo, ou "espiritismo de
mesa". Ela diz: "Fui para o espiritismo de mesa porque achei que
era mais decente". Existe aí um
componente óbvio de estratificação social.
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