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Antes tratado como indigno, tema é visto hoje como elemento fundamental para compreender as relações sociais
Boato forte
PETER BURKE
ESPECIAL PARA A FOLHA
No passado desdenhado
como assunto indigno
do interesse dos estudiosos, o boato se tornou tema de pesquisa para psicólogos,
sociólogos, antropólogos e historiadores bem como para os especialistas no estudo da comunicação. A abordagem quanto ao estudo do fenômeno, que pode ser definido como "um relato curto,
anônimo e não confirmado quanto a um suposto evento", deixou de
ser negativa e passou a ser positiva.
Originalmente, os boatos eram
transmitidos de pessoa para pessoa, mas hoje em dia se tornou necessário incluir as histórias que circulam nos jornais, na televisão e na
internet bem como na conversa
cotidiana.
No passado descartado como
patológico e como simples exemplo de informação indigna de confiança, o boato começa a ser encarado com seriedade cada vez
maior, na forma de narrativa, produto coletivo para o qual muitas
pessoas contribuem à medida que
a história se difunde.
É tolice acreditar literalmente em
boatos, mas é igualmente tolo descartá-los por inteiro, porque essas
histórias revelam alguma coisa sobre as preocupações, interesses, esperanças e medos dos indivíduos e
grupos que as transmitem. Os estudos sobre o boato chegaram a algumas conclusões fascinantes
quanto às circunstâncias que favorecem sua difusão, as maneiras pelas quais as narrativas são elaboradas e sobre as funções sociais que
elas têm a cumprir.
Comecemos pela questão da circulação. Um dos mais notáveis estudos sobre os boatos foi publicado na França, mais de 30 anos
atrás, pelo sociólogo Edgar Morin
sob o título "O Boato de Orléans".
Rapto de meninas
Em 1969, na cidade de Orléans,
no interior da França, começou a
circular um boato sobre o rapto de
meninas nos provadores de seis lojas de roupas, todas elas propriedade de judeus, e sobre a venda das
cativas como escravas brancas.
Morin e sua equipe de pesquisadores se deslocaram imediatamente
para Orléans a fim de investigar o
boato enquanto a trilha ainda estava quente, e o livro que resultou
desse trabalho de investigação oferece diversas conclusões interessantes. Uma delas é a idéia de que
um boato começa sua carreira como resultado de um incidente dramático que funciona como "gatilho". No caso de Orleans, o gatilho
foi a inauguração de uma nova loja, chamada Aux Oubliettes (Na
Masmorra), porque os provadores
ficavam localizados no subsolo.
Em outras palavras, uma piada
que deu errado.
Uma segunda conclusão interessante do estudo envolve o tipo de
pessoa mais ativa na propagação e
amplificação do boato, os "condutores", como se poderia designá-los. No caso de Orléans, esse papel
foi exercido por meninas, especialmente alunas de colégios internos,
suscetíveis aos boatos (argumenta
Morin) porque estavam isoladas
do resto da comunidade. Estudos
posteriores chegaram a constatações semelhantes com respeito a
outros grupos, que variam do clero
à polícia, em Londres, e também se
aplicam aos britânicos na era da
colonização da Índia.
O boato pode expressar uma esperança, como o retorno do líder
heróico (rei Artur, dom Sebastião,
Emiliano Zapata e assim por diante) para libertar seu povo e fazer
justiça. No entanto temas mais comuns envolvem desastres como
incêndios, fomes, doenças, assassinatos, seqüestros e assim por diante. Eventos que ficam em larga medida excluídos do controle humano, como o grande incêndio de
Londres, em 1666, ou a difusão da
peste negra, em 1348, da cólera, no
século 19, e da Aids, mais recentemente, foram todos atribuídos a
conspirações.
A responsabilidade por essas
conspirações, por sua vez, é atribuída aos "vilões culturais" de
uma determinada era e local, como as feiticeiras, os saqueadores,
os judeus, os católicos, os jesuítas,
os maçons, os comunistas, os muçulmanos fundamentalistas, as
mulheres que querem se vingar
dos homens e assim por diante.
Dois temas recorrentes vêm sobrevivendo por muito tempo, já que
estão em circulação pelo menos
desde a Idade Média (se não muito
antes) e até os nossos dias.
Um é a história de que alguém
está envenenando os suprimentos
de água, originalmente os poços e
mais recentemente a água encanada em Los Angeles, Tel Aviv e outros locais. O segundo é o boato
quanto ao rapto, abuso e assassinato de crianças. Na Inglaterra,
Alemanha e outros locais, na era
medieval, os judeus eram acusados de rapto e assassinato ritual de
crianças cristãs. Na Europa dos séculos 16 e 17, o mesmo crime era
atribuído às bruxas, que agiriam a
comando do diabo. Os intelectuais
do iluminismo zombaram desses
medos e os explicaram como frutos da irracionalidade e das superstições dos séculos precedentes. Mesmo assim, esses boatos
não desapareceram.
De fato, ressurgiram nos anos 80
em diversas partes da Europa e dos
EUA, onde aconteceram diversas
ondas de pânico relacionadas ao
suposto rapto de crianças, especialmente as loiras de olhos azuis,
por membros de um "culto" satânico imaginado como uma organização secreta de alcance nacional.
Em certo sentido, existem apenas
alguns poucos boatos, boatos básicos, que circulam e voltam a circular com ligeiras alterações, adaptados à situação local.
As circunstâncias que favorecem
a difusão de boatos incluem uma
atmosfera de medo e incerteza
provocada por alguma forma de
crise, como guerras, ondas de fome, epidemias e revoluções. De fato, o estudo dos boatos se desenvolveu durante as duas guerras
mundiais do século 20, quando
historiadores como o francês Marc
Bloch e psicólogos como o norte-americano Gordon Allport começaram a analisar as histórias que
circulavam em torno deles.
Quando começam a se espalhar,
as histórias talvez não sejam muito
sensacionais, mas à medida que
circulam são adaptadas, consciente ou inconscientemente, e assimilam formas comuns aos boatos do
passado. Os elementos do boato
que os ouvintes recordam e transmitem aos outros dependem de
seus interesses, preconceitos e ansiedades. Assim, os personagens
da trama se transformam em estereótipos, especialmente vilões estereotipados, e a história se torna
um mito. Os mitos desempenham
funções sociais.
Uma crise cria demanda por notícias, mas, especialmente em tempo de guerra, a livre circulação de
notícias não é permitida, e o lugar
delas é ocupado por boatos. As
pessoas precisam compreender as
crises que estão vivendo, e os boatos oferecem explicações vívidas e
memoráveis e atribuem a responsabilidade pela fome ou pela peste
a indivíduos ou grupos odientos.
A ênfase em conspirações poderia ser descrita como "paranóica",
mas apenas no sentido mais amplo
do termo, que abarca sua presença
entre as pessoas normais. Um boato também poderia ser descrito, de
forma igualmente apropriada, como tentativa de solucionar um
problema.
E um último ponto a salientar
quanto aos boatos envolve suas
conseqüências. Os boatos muitas
vezes fazem com que coisas aconteçam, porque mobilizam o populacho, por exemplo. O curso da Revolução Francesa, por exemplo, foi
afetado pelo "Grande Medo" que
varreu a França em 1789 e encorajou a ação contra a aristocracia. A
grande rebelião contra os britânicos na Índia colonial, em 1857, começou com um boato sobre a distribuição, aos soldados locais, de
cartuchos lubrificados com gordura de vaca ou porco, o que serviu
para alienar tanto hindus quanto
muçulmanos.
Os preços das ações nas Bolsas
de todo o mundo flutuam em resposta a boatos. O exemplo das Bolsas nos lembra que, a despeito de
seus elementos arcaicos, os boatos
continuam a ter papel muito importante na vida cotidiana de pessoas educadas e em sociedades
modernas, quer circulem por telefone, e-mail ou nas páginas do jornal diário.
Peter Burke é historiador inglês, autor de
"Uma História Social do Conhecimento"
(ed. Jorge Zahar) e "O Renascimento Italiano" (ed. Nova Alexandria).
Tradução de Paulo Migiliacci.
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