São Paulo, domingo, 28 de novembro de 2004

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Antes tratado como indigno, tema é visto hoje como elemento fundamental para compreender as relações sociais

Boato forte

PETER BURKE
ESPECIAL PARA A FOLHA

No passado desdenhado como assunto indigno do interesse dos estudiosos, o boato se tornou tema de pesquisa para psicólogos, sociólogos, antropólogos e historiadores bem como para os especialistas no estudo da comunicação. A abordagem quanto ao estudo do fenômeno, que pode ser definido como "um relato curto, anônimo e não confirmado quanto a um suposto evento", deixou de ser negativa e passou a ser positiva. Originalmente, os boatos eram transmitidos de pessoa para pessoa, mas hoje em dia se tornou necessário incluir as histórias que circulam nos jornais, na televisão e na internet bem como na conversa cotidiana.
No passado descartado como patológico e como simples exemplo de informação indigna de confiança, o boato começa a ser encarado com seriedade cada vez maior, na forma de narrativa, produto coletivo para o qual muitas pessoas contribuem à medida que a história se difunde.
É tolice acreditar literalmente em boatos, mas é igualmente tolo descartá-los por inteiro, porque essas histórias revelam alguma coisa sobre as preocupações, interesses, esperanças e medos dos indivíduos e grupos que as transmitem. Os estudos sobre o boato chegaram a algumas conclusões fascinantes quanto às circunstâncias que favorecem sua difusão, as maneiras pelas quais as narrativas são elaboradas e sobre as funções sociais que elas têm a cumprir.
Comecemos pela questão da circulação. Um dos mais notáveis estudos sobre os boatos foi publicado na França, mais de 30 anos atrás, pelo sociólogo Edgar Morin sob o título "O Boato de Orléans".

Rapto de meninas
Em 1969, na cidade de Orléans, no interior da França, começou a circular um boato sobre o rapto de meninas nos provadores de seis lojas de roupas, todas elas propriedade de judeus, e sobre a venda das cativas como escravas brancas. Morin e sua equipe de pesquisadores se deslocaram imediatamente para Orléans a fim de investigar o boato enquanto a trilha ainda estava quente, e o livro que resultou desse trabalho de investigação oferece diversas conclusões interessantes. Uma delas é a idéia de que um boato começa sua carreira como resultado de um incidente dramático que funciona como "gatilho". No caso de Orleans, o gatilho foi a inauguração de uma nova loja, chamada Aux Oubliettes (Na Masmorra), porque os provadores ficavam localizados no subsolo. Em outras palavras, uma piada que deu errado.
Uma segunda conclusão interessante do estudo envolve o tipo de pessoa mais ativa na propagação e amplificação do boato, os "condutores", como se poderia designá-los. No caso de Orléans, esse papel foi exercido por meninas, especialmente alunas de colégios internos, suscetíveis aos boatos (argumenta Morin) porque estavam isoladas do resto da comunidade. Estudos posteriores chegaram a constatações semelhantes com respeito a outros grupos, que variam do clero à polícia, em Londres, e também se aplicam aos britânicos na era da colonização da Índia.
O boato pode expressar uma esperança, como o retorno do líder heróico (rei Artur, dom Sebastião, Emiliano Zapata e assim por diante) para libertar seu povo e fazer justiça. No entanto temas mais comuns envolvem desastres como incêndios, fomes, doenças, assassinatos, seqüestros e assim por diante. Eventos que ficam em larga medida excluídos do controle humano, como o grande incêndio de Londres, em 1666, ou a difusão da peste negra, em 1348, da cólera, no século 19, e da Aids, mais recentemente, foram todos atribuídos a conspirações.
A responsabilidade por essas conspirações, por sua vez, é atribuída aos "vilões culturais" de uma determinada era e local, como as feiticeiras, os saqueadores, os judeus, os católicos, os jesuítas, os maçons, os comunistas, os muçulmanos fundamentalistas, as mulheres que querem se vingar dos homens e assim por diante. Dois temas recorrentes vêm sobrevivendo por muito tempo, já que estão em circulação pelo menos desde a Idade Média (se não muito antes) e até os nossos dias.
Um é a história de que alguém está envenenando os suprimentos de água, originalmente os poços e mais recentemente a água encanada em Los Angeles, Tel Aviv e outros locais. O segundo é o boato quanto ao rapto, abuso e assassinato de crianças. Na Inglaterra, Alemanha e outros locais, na era medieval, os judeus eram acusados de rapto e assassinato ritual de crianças cristãs. Na Europa dos séculos 16 e 17, o mesmo crime era atribuído às bruxas, que agiriam a comando do diabo. Os intelectuais do iluminismo zombaram desses medos e os explicaram como frutos da irracionalidade e das superstições dos séculos precedentes. Mesmo assim, esses boatos não desapareceram.
De fato, ressurgiram nos anos 80 em diversas partes da Europa e dos EUA, onde aconteceram diversas ondas de pânico relacionadas ao suposto rapto de crianças, especialmente as loiras de olhos azuis, por membros de um "culto" satânico imaginado como uma organização secreta de alcance nacional. Em certo sentido, existem apenas alguns poucos boatos, boatos básicos, que circulam e voltam a circular com ligeiras alterações, adaptados à situação local.
As circunstâncias que favorecem a difusão de boatos incluem uma atmosfera de medo e incerteza provocada por alguma forma de crise, como guerras, ondas de fome, epidemias e revoluções. De fato, o estudo dos boatos se desenvolveu durante as duas guerras mundiais do século 20, quando historiadores como o francês Marc Bloch e psicólogos como o norte-americano Gordon Allport começaram a analisar as histórias que circulavam em torno deles.
Quando começam a se espalhar, as histórias talvez não sejam muito sensacionais, mas à medida que circulam são adaptadas, consciente ou inconscientemente, e assimilam formas comuns aos boatos do passado. Os elementos do boato que os ouvintes recordam e transmitem aos outros dependem de seus interesses, preconceitos e ansiedades. Assim, os personagens da trama se transformam em estereótipos, especialmente vilões estereotipados, e a história se torna um mito. Os mitos desempenham funções sociais.
Uma crise cria demanda por notícias, mas, especialmente em tempo de guerra, a livre circulação de notícias não é permitida, e o lugar delas é ocupado por boatos. As pessoas precisam compreender as crises que estão vivendo, e os boatos oferecem explicações vívidas e memoráveis e atribuem a responsabilidade pela fome ou pela peste a indivíduos ou grupos odientos.
A ênfase em conspirações poderia ser descrita como "paranóica", mas apenas no sentido mais amplo do termo, que abarca sua presença entre as pessoas normais. Um boato também poderia ser descrito, de forma igualmente apropriada, como tentativa de solucionar um problema.
E um último ponto a salientar quanto aos boatos envolve suas conseqüências. Os boatos muitas vezes fazem com que coisas aconteçam, porque mobilizam o populacho, por exemplo. O curso da Revolução Francesa, por exemplo, foi afetado pelo "Grande Medo" que varreu a França em 1789 e encorajou a ação contra a aristocracia. A grande rebelião contra os britânicos na Índia colonial, em 1857, começou com um boato sobre a distribuição, aos soldados locais, de cartuchos lubrificados com gordura de vaca ou porco, o que serviu para alienar tanto hindus quanto muçulmanos.
Os preços das ações nas Bolsas de todo o mundo flutuam em resposta a boatos. O exemplo das Bolsas nos lembra que, a despeito de seus elementos arcaicos, os boatos continuam a ter papel muito importante na vida cotidiana de pessoas educadas e em sociedades modernas, quer circulem por telefone, e-mail ou nas páginas do jornal diário.


Peter Burke é historiador inglês, autor de "Uma História Social do Conhecimento" (ed. Jorge Zahar) e "O Renascimento Italiano" (ed. Nova Alexandria).
Tradução de Paulo Migiliacci.


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