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A voz das esquinas nas revoluções
BORIS FAUSTO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Em artigo publicado no
Mais! (25/1/2004, "As Revoluções da Revolução Russa") lembrei as aproximações da Revolução Russa de 1917
com a Francesa de 1789, tomada
esta como um paradigma ideológico e mesmo em sentido prático.
Trato agora de outra aproximação. A dessacralização das duas
monarquias, que contribuiu para a
queda dos Bourbon na França e
dos Romanov na Rússia, utilizando-se, em ambos os casos, os rumores, o escândalo e as fantasias
pornográficas.
Tomemos, por exemplo, o livro
de Robert Darnton -historiador
de primeira linha do século 18
francês- intitulado "Boemia Literária e Revolução" (Cia. das Letras). Nele, Darnton analisa uma
produção típica do que chama de
submundo das letras -os "libelos", textos clandestinos, muito comuns nas últimas décadas do Antigo Regime e que divulgavam histórias maliciosas sobre a corte.
Alguns motivos centrais desses
textos colocavam em letra impressa a voz das esquinas, pintando e
bordando em torno da decadência
do trono, roído pela concupiscência da rainha, pelo adultério e, pior
de tudo, pela simbólica impotência
de Luis 16.
Os "libelistas" transformaram
em amante de Maria Antonieta, ao
que parece sem fundamento, um
apaixonado cardeal -Edouard,
príncipe de Rohan-, envolvido
numa rumorosa controvérsia, o
"caso do colar da rainha", que se
prolongou entre 1784 e1786.
Mais ainda, apesar de aparentemente o rei ter gerado um filho,
não obstante ter levado anos para
consumar o casamento, levantavam-se muitas dúvidas sobre a
verdadeira paternidade do delfim,
em dezenas de panfletos que desvendavam, a seu gosto, o nome de
algum fecundo amante de Maria
Antonieta.
A julgar pela contínua e quase
sempre ineficaz ação da polícia, revelada pelos arquivos, os "libelos"
preocuparam seguidamente o poder. Embora afirme ser difícil medir o impacto que esses "textos sujos" tiveram na desmoralização da
monarquia e na queda do trono,
Robert Darnton considera as histórias desse tipo mais perigosas do
que obras eruditas, como "O Contrato Social", de Rousseau; afinal
de contas, elas rompiam o senso de
decência que unia o público a seus
governantes.
O dissimulado caráter moralizante dos textos opunha a ética do
povo miúdo à ética dos grandes,
um contraste acentuado em certos
momentos. Darnton lembra, por
exemplo, o ano 2 da Revolução,
quando estava no ar uma espécie
de puritanismo que os "sans-culottes" incorporavam acerca das
tramas e dos expurgos do Terror,
assim como acerca das lendas e
verdades dos "libelos", já assimiladas antes de 1789.
Desmoralização
Mais de cem anos depois, em um
contexto histórico certamente diverso, encontramos grandes semelhanças na desmoralização de uma
instituição monárquica que, tal como a francesa, se autoproclamava
instituída por direito.
Como mostram, escrevendo em
colaboração, dois destacados historiadores -Orlando Figes e Boris
Kolonitskii- em "Interpreting
the Russian Revolution - The Language and Symbols of 1917" (Interpretando a Revolução Russa, Yale
University Press, 1999), nos anos
que antecederam a revolução de
fevereiro de 1917, que destronou a
monarquia, e, entre fevereiro e a
revolução bolchevique de outubro,
circularam histórias antidinásticas, muitas vezes em torno de temas sexuais, sob formas variadas:
cartões-postais pornográficos, versos, panfletos etc.
Por exemplo, algumas das mais
picantes fantasiavam cenas eróticas em que figuravam o czar, o debochado monge Rasputin, a imperatriz e sua dama de companhia
Ana Vyrubova, tida como lésbica.
Segundo voz corrente, quem governava de fato a Rússia não era
Nicolau 2º -o outrora "santo paizinho" dos camponeses-, mas a
"mulher alemã", mais precisamente a imperatriz Alexandra, filha do grão-duque de Hesse-Darmstadt. Nas versões mais radicais, seu casamento com Nicolau
2º teria sido arranjado por Bismarck para introduzir na corte
uma espiã alemã. Quando a Rússia
entrou na Primeira Guerra Mundial contra os impérios -o alemão e o austro-húngaro-, a czarina foi acusada de ser a líder da
facção pró-Alemanha na corte
-facção que de fato existia- e de
transmitir segredos ao inimigo.
Essa versão ganhou mais força
na medida em que o Exército russo
foi acumulando derrotas na frente
de batalha. Note-se que o tema da
colaboração com o inimigo pesou
também literalmente sobre a cabeça de Maria Antonieta, a detestada
rainha austríaca, filha de Francisco
1º e Maria Teresa.
A comparação aqui esboçada
não é apenas curiosa. Vai muito
além disso. Ela constitui um bom
exemplo de uma história que não é
material, mas nem por isso deixa
de ser significativa, na explicação
do processo histórico, ou seja, a
história de símbolos, sentimentos
e sensibilidades.
Não se trata de negar sentido à
discussão sociológica sobre o caráter burguês da Revolução Francesa, por exemplo, ou do terremoto
provocado na hierarquia social pela Revolução Russa, embora a etiqueta "proletária" que lhe foi aplicada hoje não possa ser levada a sério. Trata-se de entender que, ao
lado dessa vertente, se construiu
outra, mais atenta aos homens e
mulheres concretos, aqueles que
fazem sua própria história, embora sujeita aos constrangimentos.
Paixão e intriga
Nos exemplos citados, essas pessoas não são apenas "animais políticos" -os "sans-culottes" imbuídos dos ideais de igualdade e fraternidade ou os proletários socialistas, leitores de Marx, encarnação
individual da "classe para si". É
também gente inspirada pelos rumores, pelas paixões, pela sedução
das intrigas, pela ansiedade e pelo
medo.
Essa história de sensibilidades,
tecida muitas vezes por pequenos
episódios, é uma história de longa
duração, como mostram os paralelismos indicados, com uma distância mais do que secular. Num
registro bem atual, em outras condições, ela está presente no fenômeno da ascensão da direita republicana e da reeleição do presidente George W. Bush, em que o medo
e o correspondente desejo de segurança desempenharam um papel
considerável.
Boris Fausto é historiador e preside o
conselho acadêmico do Gacint (Grupo de
Conjuntura Internacional), da USP. É autor
de "A Revolução de 1930" (Companhia
das Letras). Ele escreve mensalmente na
seção "Autores", do Mais!.
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