São Paulo, domingo, 28 de novembro de 2004

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A voz das esquinas nas revoluções

BORIS FAUSTO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em artigo publicado no Mais! (25/1/2004, "As Revoluções da Revolução Russa") lembrei as aproximações da Revolução Russa de 1917 com a Francesa de 1789, tomada esta como um paradigma ideológico e mesmo em sentido prático.
Trato agora de outra aproximação. A dessacralização das duas monarquias, que contribuiu para a queda dos Bourbon na França e dos Romanov na Rússia, utilizando-se, em ambos os casos, os rumores, o escândalo e as fantasias pornográficas.
Tomemos, por exemplo, o livro de Robert Darnton -historiador de primeira linha do século 18 francês- intitulado "Boemia Literária e Revolução" (Cia. das Letras). Nele, Darnton analisa uma produção típica do que chama de submundo das letras -os "libelos", textos clandestinos, muito comuns nas últimas décadas do Antigo Regime e que divulgavam histórias maliciosas sobre a corte.
Alguns motivos centrais desses textos colocavam em letra impressa a voz das esquinas, pintando e bordando em torno da decadência do trono, roído pela concupiscência da rainha, pelo adultério e, pior de tudo, pela simbólica impotência de Luis 16.
Os "libelistas" transformaram em amante de Maria Antonieta, ao que parece sem fundamento, um apaixonado cardeal -Edouard, príncipe de Rohan-, envolvido numa rumorosa controvérsia, o "caso do colar da rainha", que se prolongou entre 1784 e1786.
Mais ainda, apesar de aparentemente o rei ter gerado um filho, não obstante ter levado anos para consumar o casamento, levantavam-se muitas dúvidas sobre a verdadeira paternidade do delfim, em dezenas de panfletos que desvendavam, a seu gosto, o nome de algum fecundo amante de Maria Antonieta.
A julgar pela contínua e quase sempre ineficaz ação da polícia, revelada pelos arquivos, os "libelos" preocuparam seguidamente o poder. Embora afirme ser difícil medir o impacto que esses "textos sujos" tiveram na desmoralização da monarquia e na queda do trono, Robert Darnton considera as histórias desse tipo mais perigosas do que obras eruditas, como "O Contrato Social", de Rousseau; afinal de contas, elas rompiam o senso de decência que unia o público a seus governantes.
O dissimulado caráter moralizante dos textos opunha a ética do povo miúdo à ética dos grandes, um contraste acentuado em certos momentos. Darnton lembra, por exemplo, o ano 2 da Revolução, quando estava no ar uma espécie de puritanismo que os "sans-culottes" incorporavam acerca das tramas e dos expurgos do Terror, assim como acerca das lendas e verdades dos "libelos", já assimiladas antes de 1789.

Desmoralização
Mais de cem anos depois, em um contexto histórico certamente diverso, encontramos grandes semelhanças na desmoralização de uma instituição monárquica que, tal como a francesa, se autoproclamava instituída por direito.
Como mostram, escrevendo em colaboração, dois destacados historiadores -Orlando Figes e Boris Kolonitskii- em "Interpreting the Russian Revolution - The Language and Symbols of 1917" (Interpretando a Revolução Russa, Yale University Press, 1999), nos anos que antecederam a revolução de fevereiro de 1917, que destronou a monarquia, e, entre fevereiro e a revolução bolchevique de outubro, circularam histórias antidinásticas, muitas vezes em torno de temas sexuais, sob formas variadas: cartões-postais pornográficos, versos, panfletos etc.
Por exemplo, algumas das mais picantes fantasiavam cenas eróticas em que figuravam o czar, o debochado monge Rasputin, a imperatriz e sua dama de companhia Ana Vyrubova, tida como lésbica.
Segundo voz corrente, quem governava de fato a Rússia não era Nicolau 2º -o outrora "santo paizinho" dos camponeses-, mas a "mulher alemã", mais precisamente a imperatriz Alexandra, filha do grão-duque de Hesse-Darmstadt. Nas versões mais radicais, seu casamento com Nicolau 2º teria sido arranjado por Bismarck para introduzir na corte uma espiã alemã. Quando a Rússia entrou na Primeira Guerra Mundial contra os impérios -o alemão e o austro-húngaro-, a czarina foi acusada de ser a líder da facção pró-Alemanha na corte -facção que de fato existia- e de transmitir segredos ao inimigo.
Essa versão ganhou mais força na medida em que o Exército russo foi acumulando derrotas na frente de batalha. Note-se que o tema da colaboração com o inimigo pesou também literalmente sobre a cabeça de Maria Antonieta, a detestada rainha austríaca, filha de Francisco 1º e Maria Teresa.
A comparação aqui esboçada não é apenas curiosa. Vai muito além disso. Ela constitui um bom exemplo de uma história que não é material, mas nem por isso deixa de ser significativa, na explicação do processo histórico, ou seja, a história de símbolos, sentimentos e sensibilidades.
Não se trata de negar sentido à discussão sociológica sobre o caráter burguês da Revolução Francesa, por exemplo, ou do terremoto provocado na hierarquia social pela Revolução Russa, embora a etiqueta "proletária" que lhe foi aplicada hoje não possa ser levada a sério. Trata-se de entender que, ao lado dessa vertente, se construiu outra, mais atenta aos homens e mulheres concretos, aqueles que fazem sua própria história, embora sujeita aos constrangimentos.

Paixão e intriga
Nos exemplos citados, essas pessoas não são apenas "animais políticos" -os "sans-culottes" imbuídos dos ideais de igualdade e fraternidade ou os proletários socialistas, leitores de Marx, encarnação individual da "classe para si". É também gente inspirada pelos rumores, pelas paixões, pela sedução das intrigas, pela ansiedade e pelo medo.
Essa história de sensibilidades, tecida muitas vezes por pequenos episódios, é uma história de longa duração, como mostram os paralelismos indicados, com uma distância mais do que secular. Num registro bem atual, em outras condições, ela está presente no fenômeno da ascensão da direita republicana e da reeleição do presidente George W. Bush, em que o medo e o correspondente desejo de segurança desempenharam um papel considerável.


Boris Fausto é historiador e preside o conselho acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional), da USP. É autor de "A Revolução de 1930" (Companhia das Letras). Ele escreve mensalmente na seção "Autores", do Mais!.


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