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+ livros
Centro e margem da cidade são temas de Guilherme de Almeida e João Antonio
São Paulo frente e verso
ANTONIO ARNONI PRADO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Uma edição de crônicas,
inéditas em livro, publicadas por Guilherme de
Almeida no "Diário Nacional" entre junho de 1927 e novembro de 1928, seguidas de um
roteiro sentimental dedicado pelo
autor à cidade de São Paulo ("Pela
Cidade", organizado por Frederico
Ozanam Pessoa de Barros), além
de nos oferecer uma visão singular
da cidade que aos poucos deixava
os ares de província para se transformar num grande centro industrial, amplia o interesse do assunto
-ao cruzar com a mais recente
edição de "Malagueta, Perus e Bacanaço", de João Antonio, com
prefácio de Antonio Candido.
Trata-se de dois livros importantes para a vida e as representações
da cidade, sua história e a de seus
habitantes, além da notação precisa e mesmo documental, às vezes,
da fisionomia de suas regiões e
bairros, vistos na precariedade de
dois tempos distintos através de
olhares opostos que vêem a metrópole e com ela convivem, de perspectivas inteiramente diversas.
Guilherme de Almeida [1890-1969], que participara da Semana
de Arte Moderna e, a convite de Júlio de Mesquita, já integrava o corpo de redatores de "O Estado de S.
Paulo", onde mantinha uma crônica sobre cinema, era então o poeta
conhecido da "Frauta Que Eu Perdi", de "Meu" e de "Raça".
Nome de prestígio e cercado de
admiradores, atendeu ao pedido
do Partido Democrático para assinar, em 1927, uma seção no "Diário Nacional", recém-fundado pelo
partido (na verdade uma dissidência do Partido Republicano Paulista), onde teria toda a liberdade, segundo escreve o organizador, para
compor artigos que tratassem de
tudo o que pudesse interessar aos
leitores paulistanos -sobretudo
"política nacional, internacional,
política estadual, modas, crônica
policial, religião, ciência, artes, medicina etc."- , além de responder
também pela página de queixas e
reclamações.
Nada disso, contudo, é suficiente
para tirar do leitor de hoje a sensação de estar diante de um cronista
à antiga, cheio de citações latinas e
muitas vezes irônico, engraçado
por vezes, mas repassado de visão
de classe, sem nenhuma abertura
propriamente moderna para as
coisas novas que a cidade incorporava e que ele habilmente registra
como sintomas de um fluxo lírico
incontido que se recusa a ir além
da convenção literária, recheando-se de citações, de alusões mitológicas e retóricas, formulações e imagens que perdem, a rigor, o sentido
da vida para se transformar num
exercício quase diletante.
Modernidade própria
Grande decepção, pensará o leitor atento, para quem esperava encontrar o modernista Guilherme
de Almeida nestas páginas de "Pela
Cidade". Mas não foi mesmo Sérgio Buarque de Holanda quem decidiu estrilar e romper com o movimento, por julgar que o grupo de
Guilherme, de Menotti, de Graça
Aranha e de Ronald de Carvalho
destoava da vocação revolucionária de 22?
Razão talvez coubesse a João Ribeiro, um crítico acadêmico que só
depois resolveu refletir sobre os
modernistas, quando afirmou,
num artigo de 1929 estampado pelo "Jornal do Brasil", que Guilherme de Almeida não conversou
muito com a modernidade (o grifo
é dele) da sua terra por achá-la exagerada e inadaptável à música dos
seus versos. Ao contrário, nos diz o
crítico: o que ele fez de melhor foi
ajeitar o moderno à sua própria
inspiração, "criando a modernidade que lhe parecia estar no máximo limite das concessões revolucionárias".
Isso parece explicar a vocação do
cronista, nestas páginas do "Diário
Nacional", bem como a distância
que impede o seu ponto de fusão
com a variedade riquíssima dos aspectos que vai comentando e que
traçam um roteiro singular da vida
paulistana do começo do século.
Entre eles, o cotidiano agitado a
bordo dos bondes camarões, de
que o cronista não se separa, a singularidade dos tipos que o freqüentam, os inconvenientes da cidade que crescia, os males de seu
progresso, as alusões às máquinas
caça-níqueis e ao telefone automático, o impacto dos arranha-céus e
do edifício Martinelli, os transtornos causados pela velha porteira
do Brás, os perigos do trânsito e a
febre dos bilhetes de loteria, sem
esquecer a garoa, o registro das enchentes e dos ciclos de falta d'água,
sempre compensados pelas constantes alusões nacionalistas que celebram o júbilo dos heróis do Jaú,
nesse momento em que se quer
abrasileirar tudo -usos, costumes
e língua, nos diz o cronista, que assinava sob o pseudônimo de "Urbano". Um rico estrato documental, que, afinal, contrasta com a linguagem, a atitude perante o novo
e, em especial, o modo de não sair
da literatura, quando sabemos que
o cronista, como aliás o repórter e
mesmo o poeta do novo século, necessitava de lances mais arrojados.
No caso de João Antonio [1937-1996], a situação é inversa: mesmo
hoje, 40 anos depois de seu aparecimento para as letras, embora a
visão documental se dilua numa
São Paulo romântica e quase mesmo estilizada, os silêncios do vale
do Anhangabaú, os espaços vazios
da praça Júlio Mesquita, do Paissandu e do Correio, tão caros à
ação noturna dos malandros e deserdados que povoam os seus relatos soam como molduras quase inverossímeis de um mundo perdido
que mal se articula com a realidade
semi-rural de alguns pontos naquele tempo longínquos e quase
remotos -como eram o Moinho
Velho, Presidente Altino, Vila
Anastácio, o Piqueri, para não falar
de Osasco, de Perus e de Cruz das
Almas.
Linguagem inovadora
E, no entanto, ao contrário das
crônicas de Guilherme de Almeida, a inovação da linguagem e os
arranjos temáticos dão ao leitor
atual de "Malagueta, Perus e Bacanaço" a mesma impressão de novidade que sustenta o encanto do livro enquanto nos revelam a autenticidade de um mundo que poucos
souberam transfigurar em palavras. A novidade maior, como assinala Antonio Candido, é a capacidade de João Antonio "de criar linguagem a partir do que se fala no
dia-a-dia", recurso que ele adensa
em seus relatos por meio de uma
espécie de "neutralidade estratégica" que, segundo o crítico, dá objetividade ao cotidiano da malandragem, a coberto de qualquer
sentimentalismo.
E o leitor verá então que, longe de
escrever "literalmente como se fala", o narrador João Antonio se impõe é pelo inesperado dos ritmos
que só ele é capaz de conceber na
figuração literária do universo à
margem, sobre o qual se debruça e
no qual transcorre o jogo duro da
vida. Distribuído em três blocos
distintos, "Contos Gerais", "Caserna" e "Sinuca", o livro expande
uma temática que mistura violência e biografismo ("Busca"), vadiagem e reflexão sobre o abandono
("Afinação na Arte de Chutar
Tampinhas"), transgressão no
amor impossível ("Fugie"), desesperança e sentimento oprimido
sob a vida na caserna ("Retalhos de
Fome numa Tarde de G.C." e "Natal na Cafua"), brutalidade e sobrevivência no cotidiano da miséria
("Frio" e "Visita").
Nos dois últimos relatos do terceiro bloco, "Meninão do Caixote"
e "Malagueta, Perus e Bacanaço",
já se articula o núcleo forte do livro,
que atinge a sua plenitude no arranjo e na distribuição da estrutura
do último conto, que dá título ao
volume. Nele se encontram, já nitidamente elaboradas, as virtudes
que valeram a João Antonio o reconhecimento de três prêmios literários e a sua inclusão numa linhagem de narradores urbanos que vinha de Alcântara Machado e Mário de Andrade. O ritmo ajustado à
fala, a frase arredondando os tipos,
a expressão definindo o único jeito
de ser da existência possível.
No estilo de João Antonio valem
os excluídos, e impõe-se como força positiva a moral sem entraves
dos miseráveis, que fazem do jogo,
do vício e da "catimba" uma realidade em movimento. "Vai pras cabeças! Belisca esse homem, Meninão!", grita o malandro Vitorino
para o Meninão do Caixote, que
beliscava mesmo, "mordia, furtava, tomava, entortava, quebrava" o
adversário, antecipando no tempo
-e quem sabe na própria vivência- as estripulias das parceiradas
e "marmelos" com que o menino
Perus, o velho Malagueta e o cafajeste Bacanaço depenavam os seus
adversários.
A vida e o texto se harmonizam
no estilo de João Antonio: "Cada
um tem a sua bola numerada e que
não pode ser embocada. Cada um
defende a sua e atira na do outro.
Aquele se defende e atira na do outro. Assim, assim, vão os homens
nas bolas [...]. Cada homem tem
uma bola que tem duas vidas. Se a
bola cai o homem perde uma vida.
Se perder duas vidas poderá recomeçar com o dobro da casada. Mas
ganha uma vida só...".
Acompanha o volume um precioso encarte, assinado pelo escritor Rodrigo Lacerda, que também
assina a orelha, e reproduz o conto
"Cinzentos Vagabundos por Aí",
que consta como uma das versões
preliminares de "Malagueta, Perus
e Bacanaço" e teve algumas passagens reelaboradas de modo a integrar o conto que dá título ao livro.
Numa breve introdução, Lacerda
conta a história do livro, o modo
como foi escrito, as circunstâncias
que o acompanharam, incluindo a
destruição dos originais, engolidos
pelo fogo que consumiu a casa do
autor em Presidente Altino.
Há ainda uma foto do lançamento do livro em 1963, em que o autor
aparece acompanhado dos pais e
do irmão Virgínio.
Antonio Arnoni Prado é professor titular
de literatura na Universidade Estadual de
Campinas e autor de, entre outros livros,
"Trincheira, Palco e Letras" (Cosacnaify).
Pela Cidade
580 págs., R$ 58,50
de Guilherme de Almeida. Ed. Martins Fontes (r. Conselheiro Ramalho, 330, CEP 01325-000, São Paulo, SP, tel. 0/xx/11/3241-3677).
Malagueta, Perus e Bacanaço
224 págs., R$ 29,90
de João Antônio. Ed. Cosacnaify (r.
General Jardim, 770, 2º andar, CEP
01223-010, São Paulo, SP, tel. 0/
xx/11/ 3218-1444).
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