São Paulo, domingo, 28 de novembro de 2004

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Centro e margem da cidade são temas de Guilherme de Almeida e João Antonio

São Paulo frente e verso

ANTONIO ARNONI PRADO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Uma edição de crônicas, inéditas em livro, publicadas por Guilherme de Almeida no "Diário Nacional" entre junho de 1927 e novembro de 1928, seguidas de um roteiro sentimental dedicado pelo autor à cidade de São Paulo ("Pela Cidade", organizado por Frederico Ozanam Pessoa de Barros), além de nos oferecer uma visão singular da cidade que aos poucos deixava os ares de província para se transformar num grande centro industrial, amplia o interesse do assunto -ao cruzar com a mais recente edição de "Malagueta, Perus e Bacanaço", de João Antonio, com prefácio de Antonio Candido.
Trata-se de dois livros importantes para a vida e as representações da cidade, sua história e a de seus habitantes, além da notação precisa e mesmo documental, às vezes, da fisionomia de suas regiões e bairros, vistos na precariedade de dois tempos distintos através de olhares opostos que vêem a metrópole e com ela convivem, de perspectivas inteiramente diversas.
Guilherme de Almeida [1890-1969], que participara da Semana de Arte Moderna e, a convite de Júlio de Mesquita, já integrava o corpo de redatores de "O Estado de S. Paulo", onde mantinha uma crônica sobre cinema, era então o poeta conhecido da "Frauta Que Eu Perdi", de "Meu" e de "Raça".
Nome de prestígio e cercado de admiradores, atendeu ao pedido do Partido Democrático para assinar, em 1927, uma seção no "Diário Nacional", recém-fundado pelo partido (na verdade uma dissidência do Partido Republicano Paulista), onde teria toda a liberdade, segundo escreve o organizador, para compor artigos que tratassem de tudo o que pudesse interessar aos leitores paulistanos -sobretudo "política nacional, internacional, política estadual, modas, crônica policial, religião, ciência, artes, medicina etc."- , além de responder também pela página de queixas e reclamações.
Nada disso, contudo, é suficiente para tirar do leitor de hoje a sensação de estar diante de um cronista à antiga, cheio de citações latinas e muitas vezes irônico, engraçado por vezes, mas repassado de visão de classe, sem nenhuma abertura propriamente moderna para as coisas novas que a cidade incorporava e que ele habilmente registra como sintomas de um fluxo lírico incontido que se recusa a ir além da convenção literária, recheando-se de citações, de alusões mitológicas e retóricas, formulações e imagens que perdem, a rigor, o sentido da vida para se transformar num exercício quase diletante.

Modernidade própria
Grande decepção, pensará o leitor atento, para quem esperava encontrar o modernista Guilherme de Almeida nestas páginas de "Pela Cidade". Mas não foi mesmo Sérgio Buarque de Holanda quem decidiu estrilar e romper com o movimento, por julgar que o grupo de Guilherme, de Menotti, de Graça Aranha e de Ronald de Carvalho destoava da vocação revolucionária de 22?
Razão talvez coubesse a João Ribeiro, um crítico acadêmico que só depois resolveu refletir sobre os modernistas, quando afirmou, num artigo de 1929 estampado pelo "Jornal do Brasil", que Guilherme de Almeida não conversou muito com a modernidade (o grifo é dele) da sua terra por achá-la exagerada e inadaptável à música dos seus versos. Ao contrário, nos diz o crítico: o que ele fez de melhor foi ajeitar o moderno à sua própria inspiração, "criando a modernidade que lhe parecia estar no máximo limite das concessões revolucionárias".
Isso parece explicar a vocação do cronista, nestas páginas do "Diário Nacional", bem como a distância que impede o seu ponto de fusão com a variedade riquíssima dos aspectos que vai comentando e que traçam um roteiro singular da vida paulistana do começo do século.
Entre eles, o cotidiano agitado a bordo dos bondes camarões, de que o cronista não se separa, a singularidade dos tipos que o freqüentam, os inconvenientes da cidade que crescia, os males de seu progresso, as alusões às máquinas caça-níqueis e ao telefone automático, o impacto dos arranha-céus e do edifício Martinelli, os transtornos causados pela velha porteira do Brás, os perigos do trânsito e a febre dos bilhetes de loteria, sem esquecer a garoa, o registro das enchentes e dos ciclos de falta d'água, sempre compensados pelas constantes alusões nacionalistas que celebram o júbilo dos heróis do Jaú, nesse momento em que se quer abrasileirar tudo -usos, costumes e língua, nos diz o cronista, que assinava sob o pseudônimo de "Urbano". Um rico estrato documental, que, afinal, contrasta com a linguagem, a atitude perante o novo e, em especial, o modo de não sair da literatura, quando sabemos que o cronista, como aliás o repórter e mesmo o poeta do novo século, necessitava de lances mais arrojados.
No caso de João Antonio [1937-1996], a situação é inversa: mesmo hoje, 40 anos depois de seu aparecimento para as letras, embora a visão documental se dilua numa São Paulo romântica e quase mesmo estilizada, os silêncios do vale do Anhangabaú, os espaços vazios da praça Júlio Mesquita, do Paissandu e do Correio, tão caros à ação noturna dos malandros e deserdados que povoam os seus relatos soam como molduras quase inverossímeis de um mundo perdido que mal se articula com a realidade semi-rural de alguns pontos naquele tempo longínquos e quase remotos -como eram o Moinho Velho, Presidente Altino, Vila Anastácio, o Piqueri, para não falar de Osasco, de Perus e de Cruz das Almas.

Linguagem inovadora
E, no entanto, ao contrário das crônicas de Guilherme de Almeida, a inovação da linguagem e os arranjos temáticos dão ao leitor atual de "Malagueta, Perus e Bacanaço" a mesma impressão de novidade que sustenta o encanto do livro enquanto nos revelam a autenticidade de um mundo que poucos souberam transfigurar em palavras. A novidade maior, como assinala Antonio Candido, é a capacidade de João Antonio "de criar linguagem a partir do que se fala no dia-a-dia", recurso que ele adensa em seus relatos por meio de uma espécie de "neutralidade estratégica" que, segundo o crítico, dá objetividade ao cotidiano da malandragem, a coberto de qualquer sentimentalismo.
E o leitor verá então que, longe de escrever "literalmente como se fala", o narrador João Antonio se impõe é pelo inesperado dos ritmos que só ele é capaz de conceber na figuração literária do universo à margem, sobre o qual se debruça e no qual transcorre o jogo duro da vida. Distribuído em três blocos distintos, "Contos Gerais", "Caserna" e "Sinuca", o livro expande uma temática que mistura violência e biografismo ("Busca"), vadiagem e reflexão sobre o abandono ("Afinação na Arte de Chutar Tampinhas"), transgressão no amor impossível ("Fugie"), desesperança e sentimento oprimido sob a vida na caserna ("Retalhos de Fome numa Tarde de G.C." e "Natal na Cafua"), brutalidade e sobrevivência no cotidiano da miséria ("Frio" e "Visita").
Nos dois últimos relatos do terceiro bloco, "Meninão do Caixote" e "Malagueta, Perus e Bacanaço", já se articula o núcleo forte do livro, que atinge a sua plenitude no arranjo e na distribuição da estrutura do último conto, que dá título ao volume. Nele se encontram, já nitidamente elaboradas, as virtudes que valeram a João Antonio o reconhecimento de três prêmios literários e a sua inclusão numa linhagem de narradores urbanos que vinha de Alcântara Machado e Mário de Andrade. O ritmo ajustado à fala, a frase arredondando os tipos, a expressão definindo o único jeito de ser da existência possível.
No estilo de João Antonio valem os excluídos, e impõe-se como força positiva a moral sem entraves dos miseráveis, que fazem do jogo, do vício e da "catimba" uma realidade em movimento. "Vai pras cabeças! Belisca esse homem, Meninão!", grita o malandro Vitorino para o Meninão do Caixote, que beliscava mesmo, "mordia, furtava, tomava, entortava, quebrava" o adversário, antecipando no tempo -e quem sabe na própria vivência- as estripulias das parceiradas e "marmelos" com que o menino Perus, o velho Malagueta e o cafajeste Bacanaço depenavam os seus adversários.
A vida e o texto se harmonizam no estilo de João Antonio: "Cada um tem a sua bola numerada e que não pode ser embocada. Cada um defende a sua e atira na do outro. Aquele se defende e atira na do outro. Assim, assim, vão os homens nas bolas [...]. Cada homem tem uma bola que tem duas vidas. Se a bola cai o homem perde uma vida. Se perder duas vidas poderá recomeçar com o dobro da casada. Mas ganha uma vida só...".
Acompanha o volume um precioso encarte, assinado pelo escritor Rodrigo Lacerda, que também assina a orelha, e reproduz o conto "Cinzentos Vagabundos por Aí", que consta como uma das versões preliminares de "Malagueta, Perus e Bacanaço" e teve algumas passagens reelaboradas de modo a integrar o conto que dá título ao livro.
Numa breve introdução, Lacerda conta a história do livro, o modo como foi escrito, as circunstâncias que o acompanharam, incluindo a destruição dos originais, engolidos pelo fogo que consumiu a casa do autor em Presidente Altino.
Há ainda uma foto do lançamento do livro em 1963, em que o autor aparece acompanhado dos pais e do irmão Virgínio.


Antonio Arnoni Prado é professor titular de literatura na Universidade Estadual de Campinas e autor de, entre outros livros, "Trincheira, Palco e Letras" (Cosacnaify).

Pela Cidade
580 págs., R$ 58,50
de Guilherme de Almeida. Ed. Martins Fontes (r. Conselheiro Ramalho, 330, CEP 01325-000, São Paulo, SP, tel. 0/xx/11/3241-3677).

Malagueta, Perus e Bacanaço
224 págs., R$ 29,90
de João Antônio. Ed. Cosacnaify (r. General Jardim, 770, 2º andar, CEP 01223-010, São Paulo, SP, tel. 0/ xx/11/ 3218-1444).


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