São Paulo, domingo, 28 de novembro de 2004

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O czar de terno de risca de giz

"A Rússia de Putin" enfoca a ascensão da criminalidade, da burocracia e do terror no país, nos dias atuais

CATHERINE MERRIDALE
DO "THE INDEPENDENT"

Anna Politkovskaya é provavelmente a mais conhecida e mais destemida das jornalistas radicais da Rússia. Em "Putin's Russia" [A Rússia de Putin], ela relata a corrupção e as conexões criminosas da nova elite, a hipocrisia dos burocratas e principalmente o horror interminável da Guerra na Tchetchênia. Neste novo livro, seu alvo é o próprio Vladimir Putin, o ex-agente secreta de rosto cinzento que governa a Rússia como um czar de terno de risca de giz. A reportagem é corajosa, o estilo, cru.
Politkovskaya não ataca Putin discutindo suas políticas em ordem cronológica, mas escolhe uma série de temas relacionados, começando pelo Exército. Constrói seu caso como um advogado, citando evidências e apresentando uma série de documentos.
Putin, o homem da KGB, cercou-se de comparsas do passado soviético. Essas pessoas não mudaram seus hábitos autoritários. Elas deveriam ter sido expostas quando o comunismo caiu, afirma Politkovskaya; deveria ter havido um debate público. A única maneira de lidar com a tirania incipiente é denunciá-la, antes que seja tarde demais. Esse, juntamente com seu apelo por justiça internacional, é o credo de Politkovskaya.
O problema é que outros legados do comunismo enchem de lixo o caminho da liberdade. A pobreza é um deles. Por trás do glamour da capital, a maioria dos russos continua muito pobre. Politkovskaya visitou uma base de submarinos em Kamchatka. Lá, engenheiros e especialistas -até um almirante- passam fome enquanto sua frota de submarinos se decompõe sob a ferrugem. O investimento nesse ramo da defesa russa deixou de ser prioridade. Assim como a preservação das florestas, o futuro do ambiente ou a saúde e a segurança no emprego dos cidadãos.
Politkovskaya sugere como a economia é dirigida. Seu retrato da "máfia dos Urais" e seu domínio sobre a indústria e a saúde são as partes mais chocantes do livro.
Mas o mais revelador é seu relato do destino dos tchetchenos na Rússia de hoje. Depois da invasão de um teatro, em outubro de 2002, a polícia vasculhou os tchetchenos de Moscou em busca de "instigadores" e "conspiradores". Ela precisava de algumas prisões. Um truque comum era incriminar uma vítima com um pequeno pacote de heroína.
A narrativa lembra a escuridão do passado soviético. Mas deveria tocar alarmes no presente. A maioria dos russos não é corrupta nem viciada. É sua negligência, seu fatalismo, sua falta de poder individual que permitem que os abusos continuem. Politkovskaya quer que vejamos claramente, não para encolher os ombros e resmungar que está tudo uma bagunça. A Guerra da Tchetchênia continua porque as pessoas encolhem os ombros. O tom deste livro pode ser irritante. Mas o que a autora tem a dizer sobre hipocrisia, racismo e a guerra ao terror deveria ter ressonâncias.


Catherine Merridale é professora de história contemporânea no Queen Mary College, da Universidade de Londres.
Tradução: Luiz Roberto M. Gonçalves.

Putin's Russia
296 págs., 8,99 libras
de Anna Politkovskaya. Trad. de Arch Tait. Harvill Press (Inglaterra).



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