São Paulo, domingo, 28 de dezembro de 1997.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Primeiras impressões de um inglês no Brasil



Frases pintadas em pára-lamas foram as mensagens que mais chamaram a atenção do historiador Peter Burke
PETER BURKE
especial para a Folha

Em 1882, um visitante inglês descreveu o Rio de Janeiro como "a capital menos civilizada em que já estive", uma "cidade asiática" habitada por "pessoas indolentes". Menciono isso não somente como um exemplo de preconceito (e mesmo de "orientalismo" fora do Oriente), mas também porque o autor, Ulick Ralph Burke, um engenheiro sanitário, é meu xará e muito provavelmente meu antepassado. Felizmente, minhas próprias impressões do Brasil são bastante diversas. Mais de uma década depois de desembarcar pela primeira vez em São Paulo, e após várias visitas, não é fácil recuperar as primeiras impressões e distingui-las das experiências posteriores ou até mesmo das idéias de outras pessoas, estrangeiros ou brasileiros. Contudo, quanto mais viajo pelo Brasil, mais difícil se torna formular generalizações que se adaptem igualmente bem a Ouro Preto e Petrópolis, a Araraquara e Aquidauana, a Caruaru e Caxias do Sul. Reconstruir as primeiras impressões talvez seja a melhor resposta, concentrando-me no que de pronto me chamou a atenção, embora me parecesse normal mais tarde.
Muito provavelmente a minha primeira impressão, logo após sair do aeroporto, foi um cheiro. O cheiro doce de São Paulo, ou, mais exatamente, da fumaça dos escapamentos de carros movidos a álcool de cana-de-açúcar. Porém as mais vívidas destas primeiras impressões estão associadas ao problema de travar conhecimento com o lugar, com as pessoas e com a cultura; em outras palavras, ao problema de estabelecer um contato. Como bom europeu, eu geralmente tento familiarizar-me com uma cidade estrangeira, ainda que das grandes, andando por ela, a começar pelo "centro histórico" e indo rumo à periferia. Pedi, então, no meu hotel, próximo à avenida Paulista, um mapa do centro da cidade. O menor mapa à disposição era um alentado volume. Em todo caso, o conceito de centro parecia ser problemático. Só mais tarde me foi possível compreender o problema.
Outra maneira boa de conhecer uma cidade estrangeira é escutar o que os seus habitantes dizem uns aos outros. Os cafés são extremamente úteis para esse propósito, especialmente se têm mesas na calçada, e fiquei desapontado por encontrar tão poucos deles no Brasil. Um outro local privilegiado de escuta são as barbearias ou os assentos de canto nos vagões dos trens municipais, porque em ambos os casos é possível fingir dormir, tornar-se mais ou menos invisível, e assim prestar atenção à conversa ao redor. Este sistema funciona muito bem na Itália, por exemplo. Meu problema ao chegar ao Brasil era que, embora pudesse ler mais ou menos o português, não podia entender a língua falada. Ao notar o grande número de restaurantes italianos em São Paulo, pensei de início que talvez pudesse sobreviver comunicando-me em italiano. Foi um choque e tanto descobrir que ela era muito menos útil como uma "lingua franca" nos restaurantes italianos do Brasil do que em Londres ou Paris.
Em Tóquio, minha primeira impressão da cidade -impressão um tanto alarmante- foi a proliferação de informação escrita no letreiro das lojas, nos pôsteres, nos avisos públicos, os quais pareciam ser importantes, mas que eu era absolutamente incapaz de ler. Agora acho que posso imaginar com mais vivacidade o que era para um imigrante analfabeto chegar a Paris ou Londres nos séculos 18 ou 19. Em São Paulo, por outro lado, eu podia ler, mas não escutar. O jornal, por exemplo. Uma das primeiras surpresas foi ver que a cotação do "paralelo" vinha impressa lado a lado com as taxas oficiais. Mas como? Então o mercado negro era oficial? Outra foi ler uma reportagem sobre o presidente da República (Sarney, na época), que apoiava um candidato de partido diverso do seu. Afinal, o que significam as siglas partidárias no Brasil?
Entre as mensagens escritas que achei mais interessantes, porém, estão as frases pintadas nos pára-lamas dos caminhões, competindo por espaço com mensagens mais utilitárias, como "mantenha distância", velocidade máxima, números de telefone, anúncios etc. Engarrafamentos costumam propiciar o tempo disponível não só para ler, como também para transcrever algumas dessas frases. Uma das mais comuns: "Dirigido por Deus". Uma das mais poéticas: "Nas curvas de teu corpo capotei meu coração". Uma das mais misteriosas: "O sapo tem olho grande, mas vive na lama". As frases dizem algo sobre a cultura brasileira, ou pelo menos sobre a cultura dos caminhoneiros do Brasil. Infelizmente, para o estrangeiro, compreender a cultura é imprescindível para a interpretação das frases.
Ouvir o português falado sem entendê-lo também gerou algumas impressões interessantes sobre a cultura. Costumava pensar que as pessoas estavam brigando quando, na verdade, estavam conversando normalmente. Notei que havia menos silêncio do que seria o caso na Inglaterra (para não falar da Escandinávia), que diversas pessoas falavam ao mesmo tempo e, o mais extraordinário de tudo, que os ouvintes de alguma forma davam atenção simultaneamente a mais de um orador. Nunca fui capaz de dominar essa arte. É provavelmente como dançar o samba, no sentido de ser uma habilidade que é melhor começar a aprender antes de completar três ou quatro anos de idade.
Andar sozinho pela cidade, sem compreender o que as pessoas falam, é uma experiência interessante. A pessoa se torna um puro espectador do teatro da vida cotidiana. É como assistir a um filme num vôo transatlântico sem os fones de ouvido. Sem a distração do som dotado de sentido fica mais fácil observar os gestos das pessoas, prestar atenção aos contrastes entre os arranha-céus e os sobrados de dois andares construídos a seu lado ou entre os estacionamentos de concreto e as plantas tropicais, que florescem até mesmo nesse ambiente. Nos finais de semana, fiquei impressionado com as filas nas ruas, nem sempre para assistir a um filme, como pensei de início, mas para comer nos restaurantes da moda. Dentro do restaurante, enfim, surpreendeu-me ver como muitas crianças comiam com seus pais depois da meia-noite.
Claro que o observador nunca é completamente invisível. No Rio, sempre tenho a impressão de ser visto como um turista estrangeiro. Cartões postais misteriosamente dobram de preço quando mostro-me interessado, e assim por diante. Em São Paulo, por sua vez, recobrei a confiança, ao ser parado e inquirido sobre o caminho, em meu primeiro dia na avenida Paulista. Mais recentemente, agora que dou palestras, tenho a vaga sensação de que as pessoas esperam, ou mesmo desejam, que eu me comporte como um inglês típico -uma pressão suave, mas insistente, para que eu desempenhe esse papel específico. Nunca se é mais inglês do que quando se está "no estrangeiro".

#PREENCHA O TITULO AQUI#



Foi uma surpresa assistir a entrevistas na televisão com os habitantes das favelas e ver que seu modo de falar era tão claro e fácil de entender quanto o de meus amigos e conhecidos

O desafio ao observador é descobrir os mínimos detalhes da vida cotidiana que revelam algo do sistema social ou da cultura, pois contrastam com o modo como as coisas são feitas "em casa". Certa vez, precisei de umas fotos para minha carteira de identidade e procurei a máquina mais próxima. Fiquei um tanto surpreso ao notar que a máquina self-service não era totalmente self-service, já que havia um empregado para puxar a cortina, a fim de que eu pudesse entrar, e para espanar a cadeira antes que eu sentasse. Minha surpresa ilustra uma das diferenças entre duas economias ou, pelo menos, entre dois mercados de trabalho.
Algumas das minhas primeiras impressões foram gradualmente modificadas à medida que comecei a compreender o português falado no Brasil. O melhor modo (ou pelo menos o mais fácil) de aprender, como descobri, foi assistir a novelas. Comecei com "Brega e Chique", e, desde então, associo algumas palavras que aprendi da tela com personagens ou episódios específicos da história. Talvez tenha adquirido inconscientemente uma certa imagem da cultura das novelas -mas é possível que os espectadores brasileiros também façam isso. Hoje, dez anos depois, ainda considero as novelas um guia prático do Brasil, mas não da mesma forma que antes. O que agora mais me interessa é a relação entre a história e o público; a frequência com que a história se torna um ponto de referência na conversa particular, qual indivíduo entre meus conhecidos identifica-se ou odeia um determinado personagem e quais grupos de pressão exigem mudanças no roteiro.
Aprender uma língua no país em que ela é falada acabou sendo uma experiência bastante diversa de aprender uma língua estrangeira em casa. Desde o princípio, perguntava-me sobre os contextos em que seria certo ou errado utilizar determinadas frases ou sobre o que estaria debaixo da superfície das palavras. Quanto a isso, as formas de tratamento são especialmente interessantes -se elas são educadas ou não, formais ou informais.
A primeira impressão foi de informalidade -uma informalidade "americana", ligada ao uso do prenome. Surpreendi-me ao ver que as pessoas organizavam suas agendas de telefone a partir dos prenomes, e não dos sobrenomes. A primeira impressão foi amplificada ao aprender a chamar todos por "você", um costume aparentemente igualitário e um contraste em relação às minhas expectativas das línguas românicas na Europa, com seu "tu" e "vous", "tú" e "usted" etc. Entretanto a imagem logo se complicou. Era impossível não notar que as pessoas chamavam-me "professor" com frequência muito maior do que seus iguais o fariam na Inglaterra. Era impossível não perceber a extensão dos títulos nos envelopes, "Ilustríssimo Senhor Doutor Professor", e assim por diante. Aos poucos, notei que, enquanto me esforçava em chamar a todos de "você", por vezes me dirigiam a palavra como "o senhor". E, então, no Rio Grande do Sul, veio a redescoberta do "tu". Porém o que significa naquele contexto? Será equiparável a uma sociedade mais igualitária -ou uma auto-imagem mais igualitária- ou não passa da expressão de uma identidade regional?
Também foi interessante descobrir que eu podia compreender a fala de alguns brasileiros muito mais facilmente do que a de outros. Foi uma surpresa agradável assistir a entrevistas na televisão com os habitantes das favelas e ver que seu modo de falar era tão claro e fácil de entender quanto o de meus amigos e conhecidos. Por outro lado, foi um choque entrar num táxi em São Paulo e não entender quase nada do que o motorista dizia, exceto que ele era de algum lugar do Nordeste.
Foi e é particularmente interessante escutar as reações brasileiras ao ouvir diferentes formas de língua falada. Em primeiro lugar, a tolerância com que as pessoas reagem aos erros de português. Na França, as pessoas lhe lançam um olhar de desprezo, como se você não fosse de todo humano, se você disser "un" em vez de "une", ou "le" em vez de "la". No Grã-Bretanha, um ligeiro desvio de pronúncia é suficiente para as pessoas não entenderem o estrangeiro. No Brasil, por sua vez -como na Itália-, é mais fácil dar os primeiros passos na língua, pois se tem a sensação de que os outros estão do nosso lado, já que elogiam ao invés de criticar e se esforçam por entender (ao invés de tentar não compreender, como por vezes acontece em alguns lugares). Como resultado, depois de algumas semanas no Brasil, passei a acreditar que falava português muito bem -até que me vi falando na televisão.
Na Inglaterra, quer gostemos ou não, e quer tenhamos consciência ou não, acabamos por ouvir o sotaque de um estrangeiro para determinar sua origem social. Um advogado que fala com sotaque de Yorkshire, por exemplo, ou até mesmo resquícios de um sotaque regional desse tipo, provavelmente nasceu nas classes operárias. A classe é a principal chave das diferenças na língua, bem como de tantas outras diferenças na Grã-Bretanha, desde o horário das refeições ou a bebida preferida (café versus chá, vinho versus cerveja) até as convenções para expressar, ou não expressar, o afeto. No Brasil, por outro lado, como nos Estados Unidos, minha impressão é de uma sociedade em que as diferenças de classe contam menos. As diferenças culturais, inclusive as diferenças no estilo linguístico, parecem ter mais a ver com a região. Meus amigos brasileiros são tão hábeis em notar traços de sotaque caipira entre seus conhecidos quanto eu sou em ouvir vogais de Yorkshire -mas eles tiram conclusões sobre a região, e não sobre a classe.
Aqueles que visitam um país estrangeiro pela primeira vez têm de tomar cuidado com os estereótipos. No entanto, é impossível navegar em águas pouco familiares sem alguma espécie de mapa. Como tinha alguma experiência dos "países latinos" europeus e como lera um pouco sobre a importância dos imigrantes italianos em São Paulo, imaginei a cidade como uma versão maior de Milão ou Nápoles, e o Brasil como uma gigantesca Itália. Veja a postura diante das regras, por exemplo. No noroeste protestante da Europa, inclusive na Grã-Bretanha, as regras oficiais são um tanto razoáveis, mas também inflexíveis. Na Itália, pelo contrário, as regras são menos razoáveis, mas, em compensação, geralmente negociáveis. Os italianos podem não usar o termo "jeitinho", mas certamente reconhecem a idéia. Nesse sentido, as frequentes visitas à Itália prepararam-me muito bem para a experiência no Brasil. Entretanto foi impossível não arfar de horror na primeira vez em que o carro no qual trafegava ignorou um sinal vermelho. Levou certo tempo até perceber que, como na Itália, o trânsito segue em geral regras informais quando infringe as oficiais.
É claro que a analogia entre os dois países é, no máximo, parcial. Ao andar pelo mercado de Recife, por exemplo, recordei-me mais da África ocidental do que da Sicília -Bamako, e não Palermo. Além disso, após algumas semanas no Brasil, algumas de suas qualidades americanas se tornaram mais aparentes. Veja o caso das postura em relação ao tempo e ao espaço, por exemplo. Para um europeu na América -seja nos Estados Unidos, na Argentina, no Canadá ou no Brasil- o tempo parece expandir, e o espaço, contrair. O que me parece -ou pareceu-me- de início como uma longa distância é tratada como curta. Pode-se dirigir horas a fio para jantar com amigos. Mil quilômetros não é considerado longe. Em compensação, cem anos é uma eternidade. O século 19, que para mim, especialmente em Cambridge, parece mais ou menos como ontem, assume um ar de antiguidade remota. Na Inglaterra, vivo numa casa construída em 1880 e a considero mais ou menos nova, pois é a casa mais recente em que já morei. Em São Paulo, um lugar que transmite a impressão permanente de uma cidade em construção, aprendi aos poucos a ver os prédios de 1920, no bairro de Higienópolis, como realmente antigos, e, os prédios que restaram de 1900, como monumentos históricos.
O mesmo se pode dizer das pessoas. A juventude da população do Brasil, como ela é vista nas ruas, compõe um surpreendente contraste com a da Europa ocidental, onde o percentual da população menor de 20 anos é, de todo modo, muito diferente. Essa predominância estatística é reforçada pelo culto da juventude, que os brasileiros partilham com os norte-americanos. Será que esse culto é o resultado da vida num "país jovem", ou pelo menos um país em que as pessoas são ensinadas a chamar de "jovem"? Estaria isso ligado ao entusiasmo pela última tendência, pelo último livro, idéia ou pessoa?
Claude Lévi-Strauss relata uma história em seu "Tristes Trópicos" que teve, por acaso, um eco exato em minha própria experiência. Ele reclama que, em sua época, os estudantes da Universidade de São Paulo sempre lhe perguntavam: "Este é o último artigo?". Sua reação era sugerir que o último artigo sobre dado assunto talvez não fosse necessariamente o melhor. Cinquenta anos mais tarde, na primeira vez que ministrei um curso na USP, os estudantes me faziam a mesma pergunta. Ironicamente, eles eram fiéis à tradição em seu anseio pelo novo.
Talvez esse interesse pelo novo esteja vinculado ao interesse brasileiro pelo estrangeiro, pelas idéias, modas e pessoas estranhas à sua cultura -pouco importando se o novo é atraente por ser estrangeiro ou o estrangeiro por ser novo. Impressionei-me rapidamente com o prestígio que roupas e carros importados gozavam entre os brasileiros, embora o produto local parecesse muitas vezes de igual qualidade. Fiquei pasmo quando descobri que os professores nas universidades recebiam mais créditos pelos artigos publicados em revistas estrangeiras do que os editados no país. Talvez não devesse ficar tão surpreso. Afinal, essas reações fazem parte de uma "síndrome de periferia", que pode ser verificada na Europa (nos Países Baixos, por exemplo, ou na Suécia), assim como em outras partes do mundo.
Por sua vez, a Grã-Bretanha -a exemplo da França- é uma cultura com uma "síndrome insular", em que a maioria das pessoas ainda vê seu país como central, ao invés de periférico, e como um modelo para os outros seguirem (atente para os recentes discursos não só de conservadores nacionalistas, mas também de Tony Blair). Para um inglês, portanto, foi um choque -embora agradável- encontrar uma pretensão diametralmente oposta. Na minha primeira semana em São Paulo não fiquei surpreso ao encontrar uma mesa reservada para o meu grupo num restaurante -até descobrir que o restaurante, a exemplo de muitos outros, não aceitava reservas e que o gerente abrira exceção só porque fora informado de que um inglês integrava o grupo.
O próprio convite para escrever esse artigo ilustra uma das minhas primeiras impressões mais fortes. Chegara a São Paulo havia poucas horas quando perguntaram minha opinião sobre o Brasil. Na Grã-Bretanha, mal damos atenção ao que os outros pensam de nós. Os brasileiros, ao contrário, aparentemente importam-se com a visão que os outros fazem deles.


Tradução de José Marcos Macedo.





Texto Anterior | Próximo Texto | Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.