São Paulo, domingo, 28 de dezembro de 1997.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Encontros iniciais de um viajante



O historiador e brasilianista inglês Kenneth Maxwell explica como escapou de Cambridge e aportou na Bahia
KENNETH MAXWELL
especial para a Folha

Não me lembro exatamente de quando descobri o Brasil, mas lembro com clareza de onde e como. Eu estava em meu segundo ou terceiro ano de faculdade em Cambridge. Naquela época, não havia muita diversão disponível. O currículo de história jamais parecia avançar para além dos Tudor e dos Stuart, e eu estava absolutamente cheio deles. O continente europeu raramente aparecia nos meus estudos, as Américas, nunca.
O mundo lá fora ficava em geral limitado aos espalhafatosos restaurantes indianos e chineses da cidade, que compensavam a comida deprimente e os jantares formais em excesso no grande salão da minha faculdade, construído no século 16. A vida de um jovem de 20 anos em Cambridge era ainda reconhecidamente monástica. Os universitários do começo dos anos 60 tinham de usar togas acadêmicas o tempo todo, e, no final da minha temporada em Cambridge, em 1963, o diretor da minha faculdade, o reverendo dr. Bessant, certa noite gaguejou seu desagrado ao jantar, depois da interminável oração em latim e antes que pudéssemos nos sentar, com o fato de que um jovem cavalheiro fora visto usando roupas de operário. Isso, admoestou-nos o diretor, é uma violação chocante da decência na faculdade, que ele esperava não fosse repetida. Ele se referia, é claro, à primeira aparição do blue jeans naquele sagrado recinto.
Os restaurantes indianos em Cambridge eram infames a ponto de deixarem nas mesas bilhetes onde se lia: "Pratos só com a refeição". À primeira vista, tratava-se de uma estranha expressão do óbvio, mas seu objetivo era intimidar os estudantes que desejavam pedir quatro pratos e apenas um jantar, para dividi-lo, um desfecho economicamente nada interessante para o dono do restaurante. No Rio, descobri que os estudantes brasileiros estavam muito à frente nesse jogo. Cuidavam de sentar-se estrategicamente na periferia dos bares a céu aberto. Depois de pedir um churrasco com batatas fritas e diversos chopes excelentes, a um sinal levantavam-se em massa e saíam correndo antes que a conta pudesse ser apresentada. Não estou certo de que táticas de guerrilha como estas funcionariam em uma cidade pequena como Cambridge, ainda que Cambridge tivesse sua própria maneira de roubar aristocraticamente.
Os aristocratas e aspirantes daquela época continuavam a acreditar que era quase um dever acumular contas que não tinham intenção de pagar junto aos alfaiates e lojas de roupas da cidade. Mas, como tanta coisa mais naquela época na Inglaterra, uma história meio puída de um mundo velho conservado vivo para muito além de sua utilidade, não passava de exibicionismo. Sem que os devedores soubessem, os lojistas lhes haviam concedido crédito na certeza de que seus pais terminariam por honrar as dívidas dos filhos, como os pais deles haviam feito com os deles, junto aos mesmos lojistas e alfaiates, uma geração antes; tudo isso para que as aparências de audácia aristocrática e prudência mercantil pudessem ser salvaguardadas sem que ninguém perdesse a pose.
A expedição ao cinema era o ponto alto de toda a semana. Nós saíamos vestindo nossas togas rumo a um imenso e decrépito cinema, uma espécie de celeiro nos subúrbios da cidade que se havia mantido aberto, reinventando-se como "cinema de arte". Foi lá que vi "Orfeu Negro", de Marcel Camus. Filmada na mais espetacular paisagem tropical que eu já vira, a ancestral história irrompia da tela magnificamente em drama, cor e música extraordinária. Pelo menos foi isso que achei naquela época. Numa nevoenta, úmida e desanimada noite de East Anglia, não poderia ter havido revelação maior. Decidi imediatamente que o Brasil, e acima de tudo o Rio de Janeiro, era um lugar ao qual eu tinha de ir.
Mas meu caminho para o Brasil passou por um desvio via Princeton e Lisboa. Eu suponho que seja típico de minha geração que não víssemos a educação como nos conduzindo a algo específico, ou que não pensássemos muito que no final do processo todo poderia ser necessário arranjar um emprego. Assim, me formei em Cambridge em 1963 sem saber muito o que queria fazer.
Eu havia viajado bastante como estudante; de trem, de Berlim a Varsóvia, Moscou e Leningrado (atual São Petersburgo); mais tarde, tomei o triste remanescente do Expresso do Oriente (naquela altura basicamente um vagão de terceira classe anexado a outros trens em cada fronteira) para descer o vale do Reno, através da Áustria e depois pelos Bálcãs até a Grécia. Cruzei o Mediterrâneo até Creta e Chipre de navio e trabalhei num kibutz de Israel, ao norte do mar da Galiléia. Passei um preguiçoso e fantástico verão em Florença, onde Harold Acton, o último dos estetas excêntricos dos anos 20, me levou a conhecer os lugares que Byron e seus amigos frequentavam. E depois fui à Normandia, onde meu anfitrião tinha o único Lagonda da região, no qual costumávamos correr por lá gritando "Viva De Gaulle!", entre a basílica de Nossa Senhora de Lisieux, os hipódromos e praias de Deauville, as fábricas de camembert e a refinaria ilegal de Calvados, cujo proprietário de nariz vermelho exibia orgulhosamente os capacetes dos soldados alemães que (alegava) tinha matado durante o desembarque aliado na Normandia.
Assim, tirar um ano de folga na Europa pareceu-me algo sensato a fazer quando nada de mais atraente apareceu. Fui a Madri por seis meses, onde vivia perto da Puerta del Sol e assistia a aulas que mal era capaz de entender na universidade, e depois tomei o Expresso Lusitano para Lisboa. Eu acreditava que viajar deveria ter um propósito, e o meu era aprender os idiomas. Financiei minha estada escrevendo artigos para o jornal local em língua inglesa sobre tópicos como "Galícia - A Parte Esquecida da Espanha" e "Lisboa - Construída sobre as Ruínas de um Terremoto", além de uma comparação entre Espanha e Portugal, que se reduzia à afirmação de que na Espanha as mulheres eram bonitas e os homens feios, enquanto em Portugal o caso era o oposto; por esses artigos eu recebia cinco guinéus, o bastante, então, para que eu vivesse um mês em uma pensão modesta.
Sem que eu soubesse, o orientador dos meus estudos havia escrito à Fundação Gulbenkian em Lisboa para avisá-los de que eu estava lá, e fui convidado um dia para um encontro com o diretor da divisão internacional, dr. Ayala Monteiro. Ele me disse que a Gulbenkian gostaria de me ajudar em meus estudos, e que eu deveria submeter-lhe um orçamento. Eu o fiz, detalhando o que estava gastando na minha passagem por Portugal. Ayala Monteiro caiu na gargalhada ao ler minha lista -"ninguém pode sobreviver com isso", ele disse- e escreveu o orçamento para mim.


Stein me chamou um dia para me apresentar meu primeiro brasileiro: Sérgio Buarque de Holanda, viajando com seu filho adolescente, que, presumi mais tarde, deve ter sido o jovem Chico, um rapaz radiantemente bonito


Pelo restante da minha temporada em Lisboa, recebi a cada mês um cheque muito bem-vindo da Fundação Gulbenkian. Lisboa, naquela época, estava cheia de soldados convocados para combater na África, e eu achava muito estranha a ausência do Brasil do discurso sobre as colônias. Afinal, o Brasil conquistara sua independência de Portugal mais de um século antes e mesmo assim era apontado como origem da ideologia do lusotropicalismo, sob a qual o regime de Salazar tentava perpetuar suas colônias na África, em lugar de libertá-las.
É claro que o meu Brasil era ainda inteiramente fantasmagórico. Ainda não tivera a chance de conhecer sequer um brasileiro. A Inglaterra, naquela época, oferecia muito poucas chances no que concerne aos estudos latino-americanos. Os dois ou três "latino-americanistas" britânicos jamais haviam visitado a região, e haviam escrito seus livros inteiramente com base nos arquivos existentes em Londres. Olhavam através do Atlântico "de luneta", dizia-se. O melhor deles, John Parry, havia escrito um relatório para o governo, recomendando grandes investimentos naquele campo, mas se transferira para a Universidade de Harvard imediatamente depois. Assim, comecei a estudar o que as diversas universidades norte-americanas tinham a oferecer, e encontrei um livro maravilhoso de Stanley Stein sobre Vassouras, um rico microestudo do Vale do Paraíba que descrevia intimamente uma pequena comunidade em fase de transição.
Candidatei-me a uma vaga em Princeton (EUA), onde Stanley Stein lecionava, e para meu grande prazer fui aceito com uma pequena bolsa. Stein era um orientador maravilhoso, aceitava poucos candidatos a doutorados, mas lhes dava atenção exigente. Eu evidentemente não estava ciente, àquela altura, sobre o quanto Princeton é peculiar, com sua falsa arquitetura inglesa e seu estranho provincianismo autocontido, ou cônscio da sorte que tinha tido ao cair meio que por acaso em uma universidade onde os estudantes importam. Amei o lugar e fiquei apenas um pouco desorientado pelos pedaços das faculdades de Cambridge e Oxford que apareciam de repente, justapostos na ordem errada.
Stein me chamou um dia para me apresentar meu primeiro brasileiro. Tratava-se de Sérgio Buarque de Holanda, viajando com seu filho adolescente, que, presumi mais tarde, deve ter sido o jovem Chico, um rapaz radiantemente bonito, que ficou sentado quieto num canto. Meu português tinha a qualidade nasal da fala de Lisboa, e eu estava completamente despreparado para a musicalidade, o ritmo e a suavidade do falar brasileiro. Mal consegui captar todo o conhecimento que o grande Sérgio despejou ao longo das duas horas seguintes no escritório de Stanley Stein.
O professor Stein recomendou que eu me candidatasse sem demora ao programa graduado de treinamento metropolitano administrado pela Universidade de Colúmbia. Ele me levaria ao Brasil para longas férias de verão. Parecia bom demais para ser verdade. Eu mal acabara de pisar nos Estados Unidos e estava sendo mandado ao Brasil com todas as despesas pagas. Na verdade, compreendi mais tarde, Colúmbia é que ficara feliz por ter alguém de Princeton entre os cerca de 15 estudantes de graduação enviados à América Latina naquele verão, porque o programa tinha por objetivo ser multidisciplinar e interuniversitário, mas era, de fato, dominado por antropólogos da Colúmbia.
Assim, penso que minha admissão era segura, ainda que a maior parte dos estudantes da Colúmbia considerasse Princeton como esnobe, um reduto de "wasps" (brancos, protestantes e anglo-saxões) e, o pior de tudo, "sulista", uma palavra-código para racista, anti-semita e coisas semelhantes. De fato, quando fui pela primeira vez a Colúmbia, e as pessoas souberam que eu vinha de Princeton, fui imediatamente colocado no ostracismo. Eles presumiam que meu sotaque era uma afetação. Eu deveria simplesmente ter explicado que era inglês e deixar pra lá.
O programa tinha um coordenador brasileiro, o antropólogo Thales de Azevedo, na Bahia, e embora pouca orientação nos fosse dada, nenhuma mesmo, pelo que me lembro agora, foi indicado que seria uma boa idéia procurar o professor Azevedo quando chegássemos. O senhor Brazil (nome real, por estranho que pareça), da agência de viagens de Princeton, foi contratado pela Colúmbia para cuidar dos meus arranjos de viagem. Ele fez reservas para mim num vôo de Miami a Belém. Lá eu apanharia um avião para São Luís, Fortaleza, Natal, Recife e Bahia.
Brazil aparentemente sabia pouco sobre o Brasil, mas seu itinerário tinha a vantagem de fazer minha jornada brasileira começar na Amazônia -não que eu tenha tido a chance de ver muito de Belém. Na verdade, fui o único passageiro internacional a descer em Belém, no que era, para todos os efeitos, uma escala para reabastecimento. As autoridades do aeroporto, ou melhor, "a" autoridade, um lúgubre oficial da Aeronáutica muito desconcertado por ter de lidar com um problema inesperado como aquele no meio da noite, quando não havia funcionários da alfândega ou da imigração presentes, decidiu que eu estava "em trânsito" e me confinou ao aeroporto até que meu vôo de conexão chegasse, sabe-se lá quando (ninguém parecia ter idéia). Assim, me ajeitei mais ou menos sozinho no que me parecia naquela altura um grande hangar de lata no meio da selva amazônica.
A manhã chegou coincidentemente junto com um sujeito baixinho e rotundo, furiosamente lustrando sua cabeça careca com um lenço vermelho e carregando uma valise já bastante usada. Não era, como pensei inicialmente, um companheiro de viagem, mas o dono da banca de jornais do aeroporto. Com muito cuidado e muito, muito lentamente, ele tirou cerca de 12 revistas estrangeiras amarfanhadas (talvez ele tivesse sido informado de que eu estava lá e as quisesse vender para mim) da valise e as arrumou com grande delicadeza, como se fossem diamantes, em sua banca. Demorou mais ou menos uma hora para que ele fizesse isso a contento. Enquanto estive por lá, a maior parte de um dia, não vi ninguém nem sequer olhar para elas, de modo que presumo que ele as tenha guardado de novo em sua valise naquela noite, tão cuidadosamente quanto as havia tirado pela manhã.
Na metade do dia, no extremo oposto do terminal, uma porta se abriu, revelando um bar e restaurante. Uma figura enorme -em circunferência, quero dizer, porque ele tinha largura e altura iguais- com o peito estufado de sua própria importância, vestindo um terno branco e um chapéu igualmente branco, apareceu do nada. Atrás dele seguia um índio pequenino, olhando para o chão, empurrando um carrinho de duas rodas no qual estava a menor mala que jamais vira na vida. Mais tarde, no Rio, vi um quadro de Jean-Baptiste Debret, do começo do século 19, retratando uma cena incrivelmente parecida. Mas o avião chegou, um Caravelle construído na França. O nome sempre me pareceu apropriado para alguém viajando pelo Brasil.
Por fim, tendo meu visto de entrada carimbado no passaporte e sendo "oficialmente" admitido no Brasil, encaminharam-me ao avião, a um assento bem na frente, como cabe ao único passageiro estrangeiro de um vôo. Enquanto o Caravelle percorria sua rota ao longo da costa brasileira, em cada escala uma nova multidão de passageiros embarcava e uma nova rodada de bebida e comida era servida -inclusive, como notei de meu assento de primeira fila, aos pilotos, que foram se animando cada vez mais (como eu), enquanto nos aproximávamos do nosso destino, a Bahia.
Não tinha idéia de onde ficar na Bahia, e segui alguns dos passageiros até a Kombi que os levaria à cidade, tendo decidido que os acompanharia porque sabiam onde estavam indo, e eu, não. Parecíamos deslizar pela beira de uma praia, iluminada pela lua, que se estendia tranquilamente rumo a um mar púrpura-escuro. Grupos de altas palmeiras marcavam os limites da praia, bem como uma ocasional barraca. Namorados se abraçavam olhando para o mar. Talvez eu estivesse bêbado. Mas foi uma chegada mágica.
Chegamos a uma rua calçada de paralelepípedos, na cidade, e eu segui meus companheiros de viagem a um hotel e me registrei. Na manhã seguinte acordei no escuro e fui até a janela, abrindo as cortinas. Abaixo de mim estava uma cidade fascinante, com torres de igrejas coloniais, paredes amarelas e verdes com a tinta descascando, praças lotadas de gente de todas as cores, e aparecendo naquele exato momento, no horizonte distante de uma grande baía brilhante, as primeiras velas brancas, umas poucas delas no começo, mas logo transformando-se em centenas, navegando em direção ao porto, abaixo de mim.
No almoço, os garçons do hotel pareciam pensar que eu fosse português, e insistiam em que eu comesse bacalhau.


Esperei, mas o professor Azevedo nunca me recebeu; acho que foi essa experiência que me fez, mais tarde, raramente procurar professores brasileiros, e em lugar disso cuidar do meu trabalho
Quando tentei protestar, mostrando uma foto dos Beatles no jornal local e insistindo em que eles, não Camões, eram meus compatriotas, não tive sucesso; mas, quando pedi um "garoto" (em Lisboa, um café com leite), eles souberam de imediato de onde eu vinha, e disseram que da próxima vez eu deveria ir ao restaurante na praça do outro quarteirão, onde pedidos como esse podiam ser atendidos de maneira mais discreta.
Depois disso, comecei mesmo a comer fora, e meu primeiro camarão baiano estava tão apimentado que tive de beber quatro das antiquadas garrafas grandes de cerveja Antarctica para conseguir terminá-lo.
Já que eu tinha ido à Bahia para falar com o professor Azevedo e descobrir o que esperavam que eu fizesse, fui procurá-lo. Lembro do brilho do dia, das cores gloriosas das folhas nos jardins ao longo do caminho e dos estranhos e pequenos fossos pintados de branco que existiam em volta das plantas para protegê-las dos insetos. Mas minha chegada provocou grande consternação. Fui levado diretamente à cozinha, onde três senhoras negras e gordas usando aventais brancos se ocupavam de suas panelas e me encaravam com curiosidade. Foi só alguns anos depois que descobri o quanto era importante ter sido levado à cozinha. No começo, presumi que era esse o costume dos brasileiros.
Suponho que seu papel no programa de treinamento metropolitano fosse só mais uma sinecura para o professor Azevedo, desvinculada de quaisquer deveres, e que, na ordem antropológica das coisas, estudantes e empregados domésticos estavam na mesma altura. Esperei, mas o professor Azevedo nunca me recebeu. Acho que foi essa experiência que me fez, mais tarde, raramente procurar professores brasileiros, e em lugar disso cuidar do meu trabalho. Estava acostumado a isso em Portugal, de qualquer forma, porque com a polícia política e os informantes presentes em toda parte não era muito inteligente explicar exatamente o que se estava estudando.
Estranho foi voltar ao meu hotel naquele dia e encontrar o cônsul honorário inglês me esperando para um drinque. Naquela época, as notícias sobre forasteiros se espalhavam rápido. Ele parecia ter saído de um romance de Graham Greene. Lembro claramente de seus olhos vermelhos e de seu terno de linho amarfanhado. Mas ele foi mais que polido e queria muito que eu conhecesse um estudante de Oxford que estava na cidade, um tal John Russell Wood. Mas também jamais consegui encontrar Russell Wood. Talvez o cônsul honorário já devesse saber que a última coisa que um inglês quer é encontrar outro inglês nos trópicos. Mas, como o professor Azevedo não tinha instruções para mim, e, ao que parecia, eu estava por minha conta, parti para o Rio, a cidade em que, desde aquela noite em que vira "Orfeu Negro", mais desejava estar.
Cheguei ao Rio no aeroporto Santos Dumont e pedi ao atendente da linha aérea que me indicasse um hotel. Depois de olhar diversos cartões em seu bolso, mandou-me a um na rua Riachuelo, acima do velho aqueduto do século 18, sobre o qual bondinhos ancestrais trafegavam para lá e para cá, e para além da confusão de casas e lojas que então lotavam o bairro. O hotel parecia bom, até que tentei dormir à noite e me vi atacado por insetos e perturbado pelos passeios dos ratos e pela conversa em voz alta das prostitutas na esquina lá embaixo. Assim, no dia seguinte fui à embaixada britânica e pedi a um funcionário, que me encarava com ar de quem estava achando tudo divertido, que me recomendasse um lugar melhor. A embaixada o fez, e o lugar era o Grande Hotel de Copacabana, como o chamavam, na verdade o apartamento de Maitê Bertrand, situado na rua atrás do hotel Copacabana Palace.
Em algum ponto de sua longa vida, Maitê Bertrand havia aparentemente ajudado os britânicos, escondendo alguém ou alguma coisa em algum lugar; eu nunca descobri os detalhes, mas por esse serviço ela conquistou a gratidão do serviço diplomático britânico, e qualquer pessoa respeitável que estivesse procurando um lugar respeitável para ficar era encaminhada pela embaixada a Maitê.
O apartamento dela ficava no último andar, era perto da praia, e eu o achava delicioso. Maitê dirigia uma espécie de pensão informal com diversos residentes de longo prazo, entre os quais um grego muito velho que havia fugido de Alexandria quando o rei Farouk foi derrubado e Nasser assumiu o governo do Egito, duas senhoras inglesas bastante pudicas que davam aulas na Cultura Inglesa, um mecânico da Air France que cuidava do avião da companhia que fazia a rota Paris-Santiago do Chile a cada duas semanas. E os pilotos franceses que também se hospedavam lá regularmente, mas comiam em uma mesa separada de nós, porque não queriam se misturar com o mecânico, como ele costumava dizer furiosamente a cada vez que partiam. A turma da Air France, porém, era o pão com manteiga de Maitê. Do resto de nós, ela cobrava uma pensão modesta, que, no meu caso, incluía um quartinho com entrada própria, um banheiro e um jantar todas as noites. Comíamos juntos, a não ser que Maitê estivesse recebendo amigos ou os pilotos da Air France estivessem na cidade; nesses casos ela instalava uma mesa para ela e seus convidados perto da janela.
E o Rio? Bem, o Rio foi esplêndido para mim. Mais do que minha mente e meus olhos antecipavam. Os cariocas às vezes costumavam zombar, naquela época, da forma pela qual os europeus ficavam enfeitiçados diante da pura beleza natural do Rio. Eu certamente era um deles. Caminhava toda manhã de uma ponta à outra da avenida Atlântica e voltava pela avenida Nossa Senhora de Copacabana, parando nos bares e barracas para um cafezinho de vez em quando; depois tomava sol com o pessoal da tarde na frente ao hotel Copacabana Palace, tomava o bondinho para o Pão de Açúcar e o Corcovado. Por fim me registrei na Biblioteca Nacional e comecei a explorar seus livros e arquivos, de vez em quando fugindo para o excêntrico e maravilhoso mundo da Cinelândia, do outro lado da rua, para almoçar um queijo quente e um chope.
Um dos convidados de Maitê, à mesa perto da janela, em seus jantares semanais, era um empresário suíço grisalho, de seus 60 anos, acompanhado de um estudante brasileiro muito bonito, Júlio, que devia ter mais ou menos a minha idade. Eu fiquei mais do que intrigado com relação a esse casal, e acredito que eles tenham ficado fascinados por mim, Júlio certamente. De qualquer forma, uma noite Maitê me convidou para ficar depois do jantar para um café e conhaque, para que Júlio pudesse me levar ao cinema no Flamengo. Eu não estava preparado para a sexualidade direta dos brasileiros. O suposto condicionamento que os colégios internos britânicos oferecem quanto a isso é muito exagerado. Eu era completamente ingênuo. O pobre Júlio deve ter pensado que cometera um enorme engano, mas nos tornamos grandes amigos, sempre juntos, no que dependesse de nós, e embora nosso relacionamento tenha permanecido quase que totalmente platônico nos apaixonamos profunda e obsessivamente um pelo outro.
Júlio estudava, ainda que jamais parecesse ir a aulas ou abrir um livro, pelo que eu via. Ralph, o empresário suíço, tinha uma cobertura nos limites de Copacabana, no Posto Seis, com vistas panorâmicas da praia e do Forte de Copacabana. A praia do Arpoador ficava pertinho. Na esquina de seu prédio ficavam os primeiros estúdios da TV Globo, as portas sempre abertas, de modo que podíamos entrar e ver a estranha variedade de programas que a Globo transmitia naquela época.
Íamos duas vezes por semana aos ensaios de uma escola de samba onde, depois de muita hesitação e em meio a grande hilaridade, abandonei minhas inibições e comecei a dançar. Íamos a cerimônias de macumba, que assistíamos em silêncio, reverentemente. Frequentávamos o Teatro Jovem, onde "O Chão dos Penitentes", de Francisco Pereira da Silva, estava em cartaz, e o bar em Ipanema em que Tom Jobim e vários luminares do Cinema Novo passavam suas noites. Eu voltava à pensão de Maitê para jantar, dormia uma ou duas horas e saía à meia-noite para passar as noites nas boates de Copacabana com Júlio, onde, com enorme neutralidade política, bebíamos cuba libre e ouvíamos "Hello Dolly"; voltávamos para casa pela avenida Atlântica enquanto o sol nascia na entrada da baía da Guanabara.
Uma semana antes de eu voltar a Princeton, o caos se instalou no apartamento de Maitê Bertrand. Os pilotos da Air France, pelo que se descobriu, estavam usando o lugar como refúgio para contrabandear alguma coisa. O mecânico desaparecera. Maitê fora informada de que haveria uma batida policial. Já que seu grande hotel não tinha licença de operação, e ela não pagava impostos sobre o que ganhava de seus hóspedes, fomos todos solicitados a partir naquela mesma noite. Felizmente, uma das duas pudicas professoras da Cultura Inglesa havia se apaixonado por um jornalista brasileiro e vinha encontrando dificuldades muito mais sérias que as minhas no uso da pensão de Maitê para suas escapadas noturnas. A professora acabara de alugar um apartamento no Leblon, e me recebeu generosamente durante meus últimos dias no Rio. Nunca mais vimos Maitê, ou o velho grego, e fomos estritamente proibidos de passar perto do Copacabana Palace até que a crise, qualquer que fosse, terminasse.
Cheguei a Princeton em setembro, muito moreno e com algum trabalho realizado. Eu não deixara de ir à Biblioteca Nacional a cada dia, a despeito de minhas outras obsessões, e acumulara um estoque formidável de cartões cheios de anotações. Eu pretendia, na época, escrever uma dissertação sobre a descolonização portuguesa (ou sua ausência) no começo do século 19. Mas o trabalho acadêmico não foi minha principal experiência em meu primeiro encontro com o Brasil.
No começo de novembro de 1964, os organizadores do programa de treinamento da Universidade de Colúmbia nos chamaram a Nova York para falar de nossas realizações naquele verão. Eu quis ser completamente honesto e disse ao professor Charles Wagley, diretor do programa, que, ainda que tivesse trabalhado um pouco, tinha também passado um tempo ótimo na praia. Se algo era esperado de mim, eu não sabia exatamente o quê, porque na verdade fora enviado ao Brasil sem qualquer orientação real e sem que ninguém estivesse muito preocupado com o que eu faria lá, se é que faria alguma coisa. "Mas a idéia era exatamente essa", ele me disse com um sorriso. "Queremos que as pessoas se apaixonem pelo Brasil. Sai mais barato para nós jogá-lo lá por um verão e ver como você se vira do que nos comprometermos a três anos de trabalho para uma dissertação e então descobrir que você odeia o país e não aguenta viver lá."
Foi uma revelação maravilhosa, e uma estratégia que decerto funcionou no meu caso. Eu me virara bem; me apaixonara; tinha sido fisgado pelo Brasil. Talvez até mais do que Charles Wagley compreendesse, ainda que, sábio que era, talvez adivinhasse. Eu mal podia esperar para voltar.


Tradução de Paulo Migliacci.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.