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A montanha e o grande sertão
WILLI BOLLE
ESPECIAL PARA A FOLHA
De que jeito eu podia amar
um homem, meu de natureza igual, macho em suas
roupas e suas armas, espalhado rústico em suas ações?!" Esse
tipo de dilema, que Riobaldo, em
"Grande Sertão: Veredas" (Nova
Fronteira), sente diante de Diadorim
ressurge em "O Segredo de Brokeback Mountain", mas é prontamente resolvido pela dupla que protagoniza o filme. Após terem trabalhado
juntos durante meses, cuidando dos
rebanhos no meio da sublime solidão das montanhas de Wyoming, os
dois vaqueiros Ennis (Heath Ledger)
e Jack (Jake Gyllenhaal) se entregam
um ao outro.
Embora o enlace amoroso só
aconteça no filme -não no romance onde, além do mais, Diadorim no
final é revelado como sendo mulher-, ambas as narrativas, que tratam da paixão entre dois homens, se
vêem na obrigação de explicar "o
que era aquilo".
Com efeito, o controle da sociedade se faz presente por meio dos binóculos do patrão, que surpreende os
dois homens brincando, se perseguindo e rolando no chão, seminus.
"Sacanagem" é o veredicto, e os dois,
que perdem o emprego, tentam então arrumar suas vidas de acordo
com o código vigente no Oeste americano. Ennis casa-se com Alma
(Michelle Williams), ajudante de supermercado, e tem com ela duas filhas; Jack desposa a bela Lureen
(Anne Hathaway), filha de um rico
comerciante do Texas que detesta o
genro pobretão. Ora, esses casamentos acabam se tornando rotineiros e
enfadonhos...
A prova do cotidiano
Quatro anos depois, a saudade leva
Ennis e Jack a se reencontrarem. E
começa uma série de idas "para pescar" em Brokeback Mountain, sempre por poucos dias, durante 20
anos. Enquanto suas mulheres murcham -Alma se divorcia e passa para um segundo casamento sem alegria; Lureen procura multiplicar os
zeros na calculadora para a qual olha
fixamente "como um coelho diante
da toca da cobra"-, os dois homens
sonham em construir seu rancho e lá
viver juntos.
"Homem muito homem que fui."
Virilidade não falta a Riobaldo nem
a Ennis e Jack. Cada um deles coloca
no seu devido lugar, com socos ou
palavras firmes, os valentões de feira
e os apenas machões que procuram
debochar dos sentimentos das pessoas. É verdade que há também algo
de onírico e irreal na paixão de Ennis
e Jack. Seus encontros ocorrem fora
do tempo e do lugar das outras relações afetivas: em um cenário de cartão-postal, deslumbrantemente filmado por Rodrigo Prieto, onde não
há compromissos com o sustento
material e as tarefas do dia-a-dia.
Mas, como diz Riobaldo, "todo
amor [não] é uma espécie de comparação"?
Há um momento em que paixão e
amor se encontram e medem forças.
A expressão de Alma, primorosamente interpretada por Michelle
Williams, é o resumo do belo filme
realizado pelo diretor Ang Lee e sua
equipe. Atônita e muda, ela assiste
aos abraços e beijos de Ennis e Jack.
Ela sente espanto, tristeza e desconsolo -sabendo que jamais será
abraçada e beijada assim. Mas há
também um desejo de participar.
No rosto dela se fundem num
enlace utópico a paixão dos dois homens -que abala aquela sociedade
acomodada na rotina- e seu amor
singelo de mulher. Ela parece desejar
que uma relação tão intensa possa
migrar para a vida real, para acontecer entre duas pessoas que passam,
ao longo dos anos e do envelhecimento, pela prova do cotidiano.
Willi Bolle é professor de literatura na USP
e autor de "grandesertão.br - O Romance de
Formação do Brasil" (Duas Cidades/ed. 34).
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