São Paulo, domingo, 29 de janeiro de 2006

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A montanha e o grande sertão

WILLI BOLLE
ESPECIAL PARA A FOLHA

De que jeito eu podia amar um homem, meu de natureza igual, macho em suas roupas e suas armas, espalhado rústico em suas ações?!" Esse tipo de dilema, que Riobaldo, em "Grande Sertão: Veredas" (Nova Fronteira), sente diante de Diadorim ressurge em "O Segredo de Brokeback Mountain", mas é prontamente resolvido pela dupla que protagoniza o filme. Após terem trabalhado juntos durante meses, cuidando dos rebanhos no meio da sublime solidão das montanhas de Wyoming, os dois vaqueiros Ennis (Heath Ledger) e Jack (Jake Gyllenhaal) se entregam um ao outro.
Embora o enlace amoroso só aconteça no filme -não no romance onde, além do mais, Diadorim no final é revelado como sendo mulher-, ambas as narrativas, que tratam da paixão entre dois homens, se vêem na obrigação de explicar "o que era aquilo".
Com efeito, o controle da sociedade se faz presente por meio dos binóculos do patrão, que surpreende os dois homens brincando, se perseguindo e rolando no chão, seminus. "Sacanagem" é o veredicto, e os dois, que perdem o emprego, tentam então arrumar suas vidas de acordo com o código vigente no Oeste americano. Ennis casa-se com Alma (Michelle Williams), ajudante de supermercado, e tem com ela duas filhas; Jack desposa a bela Lureen (Anne Hathaway), filha de um rico comerciante do Texas que detesta o genro pobretão. Ora, esses casamentos acabam se tornando rotineiros e enfadonhos...

A prova do cotidiano
Quatro anos depois, a saudade leva Ennis e Jack a se reencontrarem. E começa uma série de idas "para pescar" em Brokeback Mountain, sempre por poucos dias, durante 20 anos. Enquanto suas mulheres murcham -Alma se divorcia e passa para um segundo casamento sem alegria; Lureen procura multiplicar os zeros na calculadora para a qual olha fixamente "como um coelho diante da toca da cobra"-, os dois homens sonham em construir seu rancho e lá viver juntos.
"Homem muito homem que fui." Virilidade não falta a Riobaldo nem a Ennis e Jack. Cada um deles coloca no seu devido lugar, com socos ou palavras firmes, os valentões de feira e os apenas machões que procuram debochar dos sentimentos das pessoas. É verdade que há também algo de onírico e irreal na paixão de Ennis e Jack. Seus encontros ocorrem fora do tempo e do lugar das outras relações afetivas: em um cenário de cartão-postal, deslumbrantemente filmado por Rodrigo Prieto, onde não há compromissos com o sustento material e as tarefas do dia-a-dia. Mas, como diz Riobaldo, "todo amor [não] é uma espécie de comparação"?
Há um momento em que paixão e amor se encontram e medem forças. A expressão de Alma, primorosamente interpretada por Michelle Williams, é o resumo do belo filme realizado pelo diretor Ang Lee e sua equipe. Atônita e muda, ela assiste aos abraços e beijos de Ennis e Jack.
Ela sente espanto, tristeza e desconsolo -sabendo que jamais será abraçada e beijada assim. Mas há também um desejo de participar.
No rosto dela se fundem num enlace utópico a paixão dos dois homens -que abala aquela sociedade acomodada na rotina- e seu amor singelo de mulher. Ela parece desejar que uma relação tão intensa possa migrar para a vida real, para acontecer entre duas pessoas que passam, ao longo dos anos e do envelhecimento, pela prova do cotidiano.


Willi Bolle é professor de literatura na USP e autor de "grandesertão.br - O Romance de Formação do Brasil" (Duas Cidades/ed. 34).


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