São Paulo, domingo, 29 de janeiro de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ cinema

Ganhador do Leão de Ouro, em Veneza, e do Globo de Ouro, nos EUA, o faroeste gay "O Segredo de Brokeback Mountain", que estréia no Brasil no dia 3, lidera renovação do gênero que teve seu apogeu com John Ford

Caubóis pós-modernos

NIGEL ANDREWS

Foi um momento histórico de Hollywood. O velhote grisalho de tapa-olho e rosto encarquilhado se levantou. Cabeças viraram-se e um murmúrio percorreu o salão de reuniões. Os repórteres sentiram um furo iminente. O presidente pareceu surpreso, mas não quis mandar o homem sentar-se. Então o velhote falou: "Meu nome é John Ford. Sou diretor de filmes de caubói".
Era a própria matéria-prima desses filmes: a intervenção que muda votos na reunião de cúpula no "saloon" ou na reunião de igreja, quando o herói impede um enforcamento ou convoca a cidade para expulsar os bandidos. Esse momento realmente aconteceu, bem ali nos EUA macarthistas. A legendária interrupção do diretor de "No Tempo das Diligências" (1939) ocorreu durante uma reunião da Associação de Diretores para discutir o boicote aos cineastas supostamente comunistas.
A tirada de Ford contra o arquiperseguidor da associação, Cecil B. de Mille [1881-1959, diretor de "Os Dez Mandamentos"], foi acompanhada de um lamento sobre a insidiosa politização da época e não se tratou apenas de um caso de republicanismo humanista censurando a linha-dura.
O próprio caráter e a reputação de Ford fizeram isso ou foi aquele simples "sou diretor de filmes de caubói"? Pois Hollywood tinha de prestar atenção quando a maior contribuição americana ao mito e à narrativa no século 20 era invocada por seu maior expoente para condenar o pior capítulo de intolerância política e perseguição nos EUA do século 20.
O western tem tudo a ver com liberdade: a busca pela liberdade, a disseminação da liberdade, o preço da liberdade, as ambivalências da liberdade. Muito antes das guerras do Vietnã e do Iraque, os westerns nos ensinaram que a libertação de um homem pode ser a privação de outro, que os direitos e as soberanias de um povo muitas vezes são afirmados a um custo brutal a outro povo.
Essa ambigüidade conferiu aos westerns, ou aos melhores deles, sua carga trágica. Ela os transforma em dramas morais, e não apenas em aventuras. Existe o pulsar do "Götterdämmerung" [crepúsculo dos deuses] sob o estrondo das armas. Existe o tremor de culpas, dúvidas e desconforto moral debaixo das frases machistas.
Como essa ligação entre mito e realidade continua se afirmando a cada novo conflito em que os EUA ou o Ocidente se metem, o gênero não desaparece. Sempre que a civilização diz "o western morreu", não morreu. Pense-se em "Dança com Lobos" (1990), de Kevin Costner, um épico revisionista sobre cavalaria versus índios que conquistou platéias e arrebatou Oscars em 1991, exatamente quando o gênero estava sendo enterrado pela maioria das pessoas, ou "Os Imperdoáveis", de Clint Eastwood, que fez o mesmo dois anos depois.

Novos parâmetros
Agora surgem dois novos westerns, tão bons quanto outros na memória moderna. "O Segredo de Brokeback Mountain", de Ang Lee, e "Os Três Enterros de Melquíades Estrada" [previsto para estrear no Brasil em março], de Tommy Lee Jones, chegam carregados de prêmios.
O primeiro ganhou o Leão de Ouro e o Globo de Ouro; o segundo, os de melhor ator e roteiro em Cannes.
São filmes de caubói da nova era, com novos parâmetros e ambientes atuais. Mas ainda assim são inconfundivelmente westerns. "O Segredo de Brokeback Mountain" é a crônica do romance entre dois caubóis (o vaqueiro Heath Ledger e o peão de rodeios Jake Gyllenhaal) que abrange três décadas na América da segunda metade do século 20. "Três Enterros" é passado na época atual na fronteira entre EUA e México, quando um caubói errante (Jones) se vinga do patrulheiro que matou seu amigo mexicano.
O primeiro, apesar de suas inovações gays, é uma clássica mistura do Oeste americano: romance e luta diante de cenários naturais. O segundo é outra mistura clássica do Oeste: uma história de jornada em que a redenção e a retribuição acontecem como estações de uma via-sacra. Os dois filmes obedecem a outra regra do western. O gênero teve origem no conflito primal americano entre caubóis e índios -o primeiro western foi uma tira de "kinetoscópio" de Thomas Edison mostrando o lutador indígena Buffalo Bill-, mas esse legado permite metamorfoses quase ilimitadas. Cada lado pode mudar de figurinos, reespecificando a identidade de grupo e a referência narrativa.
Assim, os "caubóis" passaram a incluir tudo, de xerifes heróicos defendendo cidades ("Matar ou Morrer" (1952), de Fred Zinnemann) a matadores profissionais ajeitando seus coldres ("O Matador", 1950, de Henry King, "Os Imperdoáveis") a oficiais do Exército estendendo a mão do entendimento racial ("Renegando o Meu Sangue", 1957, de Samuel Fuller, "Dança com Lobos").
E os "índios" podem variar -ou podiam até agora- de membros de tribos indígenas a qualquer antagonista que declare guerra aos processos de domesticação de territórios e construção de democracia. Se esses inimigos usam contas e penas ou ternos escuros com gravatas-cordão (emblema do cara-pálida pérfido ao longo das eras), é quase incidental.

Inversão de papéis
Hoje podemos levar ainda mais longe essa mutabilidade. Poderíamos dizer que o mito ancestral se inverteu completamente. No western moderno, os caubóis se tornaram índios e os índios, caubóis. Hoje o domesticador de terras será mais vilão que herói, e a vítima de expulsão ou perseguição racial -as baixas dos danos colaterais causados pelo "progresso", a guerra ou a expansão impiedosa- será, com maior probabilidade, o herói.
A mudança aconteceu mais gradualmente do que se pensa. As sementes foram lançadas há meio século. Antes da Segunda Guerra, o western era simples e homérico. Eram os colonos contra os selvagens hostis. Eram John Ford e John Wayne no Monument Valley, o jardim-escultura do Éden criado por Deus, a natureza e o destino americano.
Mas, conforme as antigas verdades foram danificadas pelos abalos secundários da guerra -do rompimento do sistema de estúdios, quando os atores que voltavam se recusaram a renovar contratos de servidão a uma cultura existencial mais ampla, preferindo anti-heróis de mentalidade independente aos heróis sujeitos ao consenso-, o western assumiu novas cores -ou cores mais tensas- e mostrou preferência por perguntas, mais que por respostas.
De repente surgiram os filmes de James Stewart para Anthony Mann ("Winchester 73", 1950, "E o Sangue Semeou a Terra", 1952); os western "B" de conflito moral de Delmer Daves e Budd Boetticher ("Flechas Ardentes", 1950), "Cavalgada Trágica", 1960); e "Rio Vermelho" (1948) e "Onde Começa o Inferno" (1959), de Howard Hawks.
Estes sugeriam que o "herói" como fora encarnado por John Wayne podia ser qualquer coisa, de um perigoso disciplinador a um homem da lei preguiçoso que tardiamente decide defender uma cidade ao lado de um bêbado (Dean Martin) e um adolescente (Ricky Nelson).
Mas a revisão mais drástica da persona de John Wayne -e dos personagens de caubóis e índios- veio do próprio homem que havia cunhado a tradição, John Ford. Em "Rastros de Ódio" (1956), a busca de Wayne durante cinco anos por uma sobrinha capturada pelos comanches atinge o clímax em um momento de horror e auto-revelação preconceituosos. Ao ver que ela "virou nativa", ele ergue a arma para matá-la. Momentos depois, quando o amor e a compaixão intervêm, é como se o western tivesse olhado sua própria alma e visto a sombra.
Com "Rastros de Ódio", John Ford provou que o novo western podia ser um grande western, não uma mera resposta lúdica ao antigo. O mesmo foi comprovado por Sam Peckimpah. "Meu Ódio Será Tua Herança" é o padrão de ouro dos filmes de caubói depois da queda: uma obra-prima sob qualquer padrão de gênero ou forma artística.
Seus vilões são uma aliança bárbara de mexicanos, europeus e americanos que moldam uma nação com armas e cobiça. Seus "heróis" são uma gangue de ladrões de banco agraciada pela luz oblíqua de uma época agonizante e que assume sua última posição redentora num ato de corajoso sacrifício.
A mistura de Peckimpah de realismo brutal e nostalgia radicalizada tornou obsoletas as figuras dos velhos caubóis, da noite para o dia. A partir daí, foi temporada livre no Oeste americano. Ainda é. Vale tudo. A única proibição é executar o western simples e tradicional. Ele perdeu a inocência -ou talvez (visto pelo prisma de "Rastros de Ódio") a tenha reencontrado.

Em busca da inocência
A natureza da inocência faz parte da matéria-prima do western. A busca da inocência está no coração pungente de "O Segredo de Brokeback Mountain", no amor entre dois homens numa vastidão impoluta, nos dias e noites da tarefa de tanger carneiros em que eles se conhecem, nas pescarias em que eles fogem das mulheres e dos empregos e na hostilidade do mundo interiorano conservador. O companheirismo junto da fogueira, no vale entre montanhas, pode assumir a aparência de uma aurora primal, de um mundo pré-julgamento em que a censura social não existe, onde se pode trocar amizade e paixão.
"O Segredo de Brokeback Mountain" é um western porque diz que viver fora da sociedade organizada muda nossa visão e percepção. É um western moderno porque diz que a mudança pode ser frágil ou ilusória. Todos temos de voltar um dia; todos temos de lutar com viver ou amar em um planeta saturado, onde todos se metem na vida uns dos outros.
Se os westerns são sobre personagens que tentam escapar da civilização ou construir uma civilização a partir da terra nua, eles interrogam os valores que na maior parte da vida assumimos como fatos consumados. Quem de fato escreveu o livro da sociedade? Deus ou o homem? A sociedade é melhor ou pior que a natureza? Devemos domar as culturas alienígenas e conquistar as sociedades incivilizadas (ou que vemos como tal) ou encontrar modos de preservá-las e os valores que cultuam?
Numa época em que a expressão "construção de nações" foi arrastada por desertos, deixando para trás morte e destruição, o western pode ser mais contemporâneo que nunca.
Os políticos poderiam aprender -mas provavelmente não o farão- com a autocatequização por que passou essa tradição cinematográfica. George W. Bush, herdando o folclorismo de Ronald Reagan, ainda usa a linguagem dos westerns "B" -"queimar" os bandidos, eles "podem correr mas não podem se esconder"-, embora seja uma linguagem que nenhum cineasta moderno que se dê respeito usaria.
Os roteiristas de Hollywood amadureceram mais depressa que os discursistas da Casa Branca. Sabem que a questão detrás de muitas guerras de hoje, por trás dessas cruzadas para construir ou reconstruir terras ou para reformar nações falidas, não é a de saber "qual é o lado bom e qual é o ruim", mas "qual interesse mascarado de virtude você prefere?".

Imigrantes espancados
"Os Três Enterros de Melquíades Estrada" traz o tiroteio do western para a atualidade. Dirigido por um americano com roteiro de um mexicano, ele é ambientado na região de fronteira atual, onde os EUA defendem sua soberania como um "desperado" defendendo sua pilhagem ameaçada.
Os imigrantes ilegais são espancados e mandados de volta. Um homem inocente -o imigrante legal do título- é morto por um guarda de fronteira num incidente que poderia ser evitado. O amigo da vítima (Tommy Lee Jones) promete levar o corpo de volta a seu remoto "pueblo". Ele é acompanhado pelo guarda de fronteira que Jones seqüestrou violentamente. Será uma experiência formadora para o policial e também para Jones. Selvagem, mas educativa. O tira vai perceber, se sobreviver, que a vida e a humanidade existem e devem ser respeitadas dos dois lados da fronteira.
A épica cavalgada, a história sinuosa de vingança e camaradagem (que passa a ser), os postos avançados remotos (incluindo um camponês mexicano tão solitário que pede aos dois homens que o matem), o desafio do perigo enquanto os dois percorrem cânions prenhes de traição ou inversão: quase todo o idioma do western está presente. Mas o clima é quase irreconhecível, comparado ao espírito de fronteira vigoroso com que o gênero via os novos horizontes na antiga Hollywood. Aqui não há vencedores -a menos que os dois reivindiquem uma vitória parcial-, quando o filme termina num impasse de respeito mútuo que irradia do antagonismo mútuo.
As certezas esfarrapadas que Peckimpah deu ao gênero fluem e refluem por essa paisagem tanto quanto em outro western (ou "eastern") moderno importante, "Os Três Reis" (1999), de David O. Russell. Esse foi "Meu Ódio Será Tua Herança" no Iraque. Quatro soldados, não melhores que quatro caubóis -no sentido moderno de renegados e aventureiros-, caçam no deserto um esconderijo de Saddam Guerra do Golfo (1991).
O filme lança "uma maldição contra os dois exércitos"; ele alega que no interior de toda grande guerra pode haver uma pequena guerra, ou várias, em que elementos desgarrados encenam a verdadeira história da guerra, de cobiça e oportunismo bilaterais.

Encanadores fraudulentos
Cínico? Talvez. Mas qual o espaço existente para claras exibições de heroísmo em um mundo em que por meio século, guerra após guerra, o poder deixou de convencer os observadores de que estava com a razão? O novo significado de "caubói" resume tudo. A palavra já evocou um herói dos espaços abertos, ousado, aventureiro e desbravador. Hoje ela descreve encanadores fraudulentos e telhadistas não-confiáveis.
Enquanto isso, os "índios" -ou vamos lhes dar o título conferido pela crise de consciência de uma nação, os "americanos nativos"- estão rindo a caminho do banco, onde guardam seu dinheiro e seu crédito moral. Eles não só venceram a guerra da propaganda: que filme hoje ousaria apresentar um índio mau? (Em "Brokeback Mountain", o refletor da demonização passou dos peles-vermelhas para os chamados "pescoços vermelhos", os americanos caipiras reacionários.)
Mas também, em algumas partes, após mais de um século de desmoralização e despossessão, eles estão encontrando maneiras de superar os caras-pálidas cheios de dinheiro.
Cassinos enormes, construídos em reservas indígenas onde o jogo é permitido, atraem os idiotas da América branca. Até em Connecticut, o dormitório periférico de Nova York, a terra das mulheres de Stepford e dos casais de Updike, a tribo pequot construiu o maior cassino do mundo, enquanto a tribo mohegan vizinha compete com o que poderá ser em breve o segundo maior. É algo como a degradação do sonho americano (ou, pensando mais positivamente, a expansão dele).

Legado inviolável
Mas nós, que ainda amamos o western, que ainda amamos "No Tempo das Diligências" e que compreendemos por que a frase "Meu nome é John Ford. Sou diretor de filmes de caubói" é uma das grandes declarações americanas, sabemos que esse legado, em um nível profundo, é inviolável.
Não podemos rejeitar "O Cavalo de Ferro" ou "No Tempo das Diligências" porque eles totemizam o índio assim como não podemos repudiar o ciclo do "Anel dos Nibelungos", de Wagner, porque seu criador era anti-semita.
Os mitos olham para nós e dizem: "Somos indestrutíveis. Como a humanidade, somos cheios de culpa, paradoxo e complexidade. Mas você não pode nos afastar. Se tentar, voltaremos sob outra forma. Mas a forma original, embora fantasmagórica, sempre estará lá: para coçarmos a cabeça por causa de suas contradições, para acadêmicos e moralistas sondarem seus defeitos, para seres humanos reagirem ao que já foi -e em algum nível sempre será- honesto, ressonante, idealista".


Texto Anterior: A máquina universal
Próximo Texto: A montanha e o grande sertão
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.