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+ cinema
Ganhador do Leão de Ouro, em Veneza, e do Globo de
Ouro, nos EUA, o faroeste gay "O Segredo de Brokeback
Mountain", que estréia no Brasil no dia 3, lidera
renovação do gênero que teve seu apogeu com John Ford
Caubóis pós-modernos
NIGEL ANDREWS
Foi um momento histórico de
Hollywood. O velhote grisalho
de tapa-olho e rosto encarquilhado se levantou. Cabeças viraram-se e um murmúrio percorreu
o salão de reuniões. Os repórteres
sentiram um furo iminente. O presidente pareceu surpreso, mas não
quis mandar o homem sentar-se.
Então o velhote falou: "Meu nome é
John Ford. Sou diretor de filmes de
caubói".
Era a própria matéria-prima desses filmes: a intervenção que muda
votos na reunião de cúpula no "saloon" ou na reunião de igreja, quando o herói impede um enforcamento ou convoca a cidade para expulsar
os bandidos. Esse momento realmente aconteceu, bem ali nos EUA
macarthistas. A legendária interrupção do diretor de "No Tempo das
Diligências" (1939) ocorreu durante
uma reunião da Associação de Diretores para discutir o boicote aos cineastas supostamente comunistas.
A tirada de Ford contra o arquiperseguidor da associação, Cecil B.
de Mille [1881-1959, diretor de "Os
Dez Mandamentos"], foi acompanhada de um lamento sobre a insidiosa politização da época e não se
tratou apenas de um caso de republicanismo humanista censurando a
linha-dura.
O próprio caráter e a reputação de
Ford fizeram isso ou foi aquele simples "sou diretor de filmes de caubói"? Pois Hollywood tinha de prestar atenção quando a maior contribuição americana ao mito e à narrativa no século 20 era invocada por
seu maior expoente para condenar o
pior capítulo de intolerância política
e perseguição nos EUA do século 20.
O western tem tudo a ver com liberdade: a busca pela liberdade, a
disseminação da liberdade, o preço
da liberdade, as ambivalências da liberdade. Muito antes das guerras do
Vietnã e do Iraque, os westerns nos
ensinaram que a libertação de um
homem pode ser a privação de outro, que os direitos e as soberanias de
um povo muitas vezes são afirmados a um custo brutal a outro povo.
Essa ambigüidade conferiu aos
westerns, ou aos melhores deles, sua
carga trágica. Ela os transforma em
dramas morais, e não apenas em
aventuras. Existe o pulsar do "Götterdämmerung" [crepúsculo dos
deuses] sob o estrondo das armas.
Existe o tremor de culpas, dúvidas e
desconforto moral debaixo das frases machistas.
Como essa ligação entre mito e
realidade continua se afirmando a
cada novo conflito em que os EUA
ou o Ocidente se metem, o gênero
não desaparece. Sempre que a civilização diz "o western morreu", não
morreu. Pense-se em "Dança com
Lobos" (1990), de Kevin Costner,
um épico revisionista sobre cavalaria versus índios que conquistou
platéias e arrebatou Oscars em 1991,
exatamente quando o gênero estava
sendo enterrado pela maioria das
pessoas, ou "Os Imperdoáveis", de
Clint Eastwood, que fez o mesmo
dois anos depois.
Novos parâmetros
Agora surgem dois novos westerns, tão bons quanto outros na
memória moderna. "O Segredo de
Brokeback Mountain", de Ang Lee,
e "Os Três Enterros de Melquíades
Estrada" [previsto para estrear no
Brasil em março], de Tommy Lee Jones, chegam carregados de prêmios.
O primeiro ganhou o Leão de Ouro e o Globo de Ouro; o segundo, os
de melhor ator e roteiro em Cannes.
São filmes de caubói da nova era,
com novos parâmetros e ambientes
atuais. Mas ainda assim são inconfundivelmente westerns. "O Segredo
de Brokeback Mountain" é a crônica
do romance entre dois caubóis (o
vaqueiro Heath Ledger e o peão de
rodeios Jake Gyllenhaal) que abrange três décadas na América da segunda metade do século 20. "Três
Enterros" é passado na época atual
na fronteira entre EUA e México,
quando um caubói errante (Jones)
se vinga do patrulheiro que matou
seu amigo mexicano.
O primeiro, apesar de suas inovações gays, é uma clássica mistura do
Oeste americano: romance e luta
diante de cenários naturais. O segundo é outra mistura clássica do
Oeste: uma história de jornada em
que a redenção e a retribuição acontecem como estações de uma via-sacra. Os dois filmes obedecem a outra
regra do western. O gênero teve origem no conflito primal americano
entre caubóis e índios -o primeiro
western foi uma tira de "kinetoscópio" de Thomas Edison mostrando
o lutador indígena Buffalo Bill-,
mas esse legado permite metamorfoses quase ilimitadas. Cada lado pode mudar de figurinos, reespecificando a identidade de grupo e a referência narrativa.
Assim, os "caubóis" passaram a
incluir tudo, de xerifes heróicos defendendo cidades ("Matar ou Morrer" (1952), de Fred Zinnemann) a
matadores profissionais ajeitando
seus coldres ("O Matador", 1950, de
Henry King, "Os Imperdoáveis") a
oficiais do Exército estendendo a
mão do entendimento racial ("Renegando o Meu Sangue", 1957, de
Samuel Fuller, "Dança com Lobos").
E os "índios" podem variar -ou
podiam até agora- de membros de
tribos indígenas a qualquer antagonista que declare guerra aos processos de domesticação de territórios e
construção de democracia. Se esses
inimigos usam contas e penas ou
ternos escuros com gravatas-cordão
(emblema do cara-pálida pérfido ao
longo das eras), é quase incidental.
Inversão de papéis
Hoje podemos levar ainda mais
longe essa mutabilidade. Poderíamos dizer que o mito ancestral se inverteu completamente. No western
moderno, os caubóis se tornaram
índios e os índios, caubóis. Hoje o
domesticador de terras será mais vilão que herói, e a vítima de expulsão
ou perseguição racial -as baixas
dos danos colaterais causados pelo
"progresso", a guerra ou a expansão
impiedosa- será, com maior probabilidade, o herói.
A mudança aconteceu mais gradualmente do que se pensa. As sementes foram lançadas há meio século. Antes da Segunda Guerra, o
western era simples e homérico.
Eram os colonos contra os selvagens
hostis. Eram John Ford e John Wayne no Monument Valley, o jardim-escultura do Éden criado por Deus, a
natureza e o destino americano.
Mas, conforme as antigas verdades
foram danificadas pelos abalos secundários da guerra -do rompimento do sistema de estúdios, quando os atores que voltavam se recusaram a renovar contratos de servidão
a uma cultura existencial mais ampla, preferindo anti-heróis de mentalidade independente aos heróis sujeitos ao consenso-, o western assumiu novas cores -ou cores mais
tensas- e mostrou preferência por
perguntas, mais que por respostas.
De repente surgiram os filmes de
James Stewart para Anthony Mann
("Winchester 73", 1950, "E o Sangue
Semeou a Terra", 1952); os western
"B" de conflito moral de Delmer Daves e Budd Boetticher ("Flechas Ardentes", 1950), "Cavalgada Trágica",
1960); e "Rio Vermelho" (1948) e
"Onde Começa o Inferno" (1959), de
Howard Hawks.
Estes sugeriam que o "herói" como fora encarnado por John Wayne
podia ser qualquer coisa, de um perigoso disciplinador a um homem
da lei preguiçoso que tardiamente
decide defender uma cidade ao lado
de um bêbado (Dean Martin) e um
adolescente (Ricky Nelson).
Mas a revisão mais drástica da persona de John Wayne -e dos personagens de caubóis e índios- veio
do próprio homem que havia cunhado a tradição, John Ford. Em
"Rastros de Ódio" (1956), a busca de
Wayne durante cinco anos por uma
sobrinha capturada pelos comanches atinge o clímax em um momento de horror e auto-revelação
preconceituosos. Ao ver que ela "virou nativa", ele ergue a arma para
matá-la. Momentos depois, quando
o amor e a compaixão intervêm, é
como se o western tivesse olhado sua
própria alma e visto a sombra.
Com "Rastros de Ódio", John Ford
provou que o novo western podia
ser um grande western, não uma
mera resposta lúdica ao antigo. O
mesmo foi comprovado por Sam
Peckimpah. "Meu Ódio Será Tua
Herança" é o padrão de ouro dos filmes de caubói depois da queda: uma
obra-prima sob qualquer padrão de
gênero ou forma artística.
Seus vilões são uma aliança bárbara de mexicanos, europeus e americanos que moldam uma nação com
armas e cobiça. Seus "heróis" são
uma gangue de ladrões de banco
agraciada pela luz oblíqua de uma
época agonizante e que assume sua
última posição redentora num ato
de corajoso sacrifício.
A mistura de Peckimpah de realismo brutal e nostalgia radicalizada
tornou obsoletas as figuras dos velhos caubóis, da noite para o dia. A
partir daí, foi temporada livre no
Oeste americano. Ainda é. Vale tudo. A única proibição é executar o
western simples e tradicional. Ele
perdeu a inocência -ou talvez (visto pelo prisma de "Rastros de
Ódio") a tenha reencontrado.
Em busca da inocência
A natureza da inocência faz parte
da matéria-prima do western. A
busca da inocência está no coração
pungente de "O Segredo de Brokeback Mountain", no amor entre dois
homens numa vastidão impoluta,
nos dias e noites da tarefa de tanger
carneiros em que eles se conhecem,
nas pescarias em que eles fogem das
mulheres e dos empregos e na hostilidade do mundo interiorano conservador. O companheirismo junto
da fogueira, no vale entre montanhas, pode assumir a aparência de
uma aurora primal, de um mundo
pré-julgamento em que a censura
social não existe, onde se pode trocar amizade e paixão.
"O Segredo de Brokeback Mountain" é um western porque diz que
viver fora da sociedade organizada
muda nossa visão e percepção. É um
western moderno porque diz que a
mudança pode ser frágil ou ilusória.
Todos temos de voltar um dia; todos
temos de lutar com viver ou amar
em um planeta saturado, onde todos
se metem na vida uns dos outros.
Se os westerns são sobre personagens que tentam escapar da civilização ou construir uma civilização a
partir da terra nua, eles interrogam
os valores que na maior parte da vida assumimos como fatos consumados. Quem de fato escreveu o livro
da sociedade? Deus ou o homem? A
sociedade é melhor ou pior que a natureza? Devemos domar as culturas
alienígenas e conquistar as sociedades incivilizadas (ou que vemos como tal) ou encontrar modos de preservá-las e os valores que cultuam?
Numa época em que a expressão
"construção de nações" foi arrastada
por desertos, deixando para trás
morte e destruição, o western pode
ser mais contemporâneo que nunca.
Os políticos poderiam aprender
-mas provavelmente não o farão- com a autocatequização por
que passou essa tradição cinematográfica. George W. Bush, herdando
o folclorismo de Ronald Reagan,
ainda usa a linguagem dos westerns
"B" -"queimar" os bandidos, eles
"podem correr mas não podem se
esconder"-, embora seja uma linguagem que nenhum cineasta moderno que se dê respeito usaria.
Os roteiristas de Hollywood amadureceram mais depressa que os
discursistas da Casa Branca. Sabem
que a questão detrás de muitas guerras de hoje, por trás dessas cruzadas
para construir ou reconstruir terras
ou para reformar nações falidas, não
é a de saber "qual é o lado bom e qual
é o ruim", mas "qual interesse mascarado de virtude você prefere?".
Imigrantes espancados
"Os Três Enterros de Melquíades
Estrada" traz o tiroteio do western
para a atualidade. Dirigido por um
americano com roteiro de um mexicano, ele é ambientado na região de
fronteira atual, onde os EUA defendem sua soberania como um "desperado" defendendo sua pilhagem
ameaçada.
Os imigrantes ilegais são espancados e mandados de volta. Um homem inocente -o imigrante legal
do título- é morto por um guarda
de fronteira num incidente que poderia ser evitado. O amigo da vítima
(Tommy Lee Jones) promete levar o
corpo de volta a seu remoto "pueblo". Ele é acompanhado pelo guarda de fronteira que Jones seqüestrou
violentamente. Será uma experiência formadora para o policial e também para Jones. Selvagem, mas educativa. O tira vai perceber, se sobreviver, que a vida e a humanidade
existem e devem ser respeitadas dos
dois lados da fronteira.
A épica cavalgada, a história sinuosa de vingança e camaradagem
(que passa a ser), os postos avançados remotos (incluindo um camponês mexicano tão solitário que pede
aos dois homens que o matem), o
desafio do perigo enquanto os dois
percorrem cânions prenhes de traição ou inversão: quase todo o idioma do western está presente. Mas o
clima é quase irreconhecível, comparado ao espírito de fronteira vigoroso com que o gênero via os novos
horizontes na antiga Hollywood.
Aqui não há vencedores -a menos
que os dois reivindiquem uma vitória parcial-, quando o filme termina num impasse de respeito mútuo
que irradia do antagonismo mútuo.
As certezas esfarrapadas que Peckimpah deu ao gênero fluem e refluem por essa paisagem tanto
quanto em outro western (ou "eastern") moderno importante, "Os
Três Reis" (1999), de David O. Russell. Esse foi "Meu Ódio Será Tua
Herança" no Iraque. Quatro soldados, não melhores que quatro caubóis -no sentido moderno de renegados e aventureiros-, caçam no
deserto um esconderijo de Saddam
Guerra do Golfo (1991).
O filme lança "uma maldição contra os dois exércitos"; ele alega que
no interior de toda grande guerra
pode haver uma pequena guerra, ou
várias, em que elementos desgarrados encenam a verdadeira história
da guerra, de cobiça e oportunismo
bilaterais.
Encanadores fraudulentos
Cínico? Talvez. Mas qual o espaço
existente para claras exibições de heroísmo em um mundo em que por
meio século, guerra após guerra, o
poder deixou de convencer os observadores de que estava com a razão? O novo significado de "caubói"
resume tudo. A palavra já evocou
um herói dos espaços abertos, ousado, aventureiro e desbravador. Hoje
ela descreve encanadores fraudulentos e telhadistas não-confiáveis.
Enquanto isso, os "índios" -ou
vamos lhes dar o título conferido pela crise de consciência de uma nação, os "americanos nativos"- estão rindo a caminho do banco, onde
guardam seu dinheiro e seu crédito
moral. Eles não só venceram a guerra da propaganda: que filme hoje
ousaria apresentar um índio mau?
(Em "Brokeback Mountain", o refletor da demonização passou dos peles-vermelhas para os chamados
"pescoços vermelhos", os americanos caipiras reacionários.)
Mas também, em algumas partes,
após mais de um século de desmoralização e despossessão, eles estão encontrando maneiras de superar os
caras-pálidas cheios de dinheiro.
Cassinos enormes, construídos
em reservas indígenas onde o jogo é
permitido, atraem os idiotas da
América branca. Até em Connecticut, o dormitório periférico de Nova
York, a terra das mulheres de Stepford e dos casais de Updike, a tribo
pequot construiu o maior cassino do
mundo, enquanto a tribo mohegan
vizinha compete com o que poderá
ser em breve o segundo maior. É algo como a degradação do sonho
americano (ou, pensando mais positivamente, a expansão dele).
Legado inviolável
Mas nós, que ainda amamos o
western, que ainda amamos "No
Tempo das Diligências" e que compreendemos por que a frase "Meu
nome é John Ford. Sou diretor de filmes de caubói" é uma das grandes
declarações americanas, sabemos
que esse legado, em um nível profundo, é inviolável.
Não podemos rejeitar "O Cavalo
de Ferro" ou "No Tempo das Diligências" porque eles totemizam o
índio assim como não podemos repudiar o ciclo do "Anel dos Nibelungos", de Wagner, porque seu criador
era anti-semita.
Os mitos olham para nós e dizem:
"Somos indestrutíveis. Como a humanidade, somos cheios de culpa,
paradoxo e complexidade. Mas você
não pode nos afastar. Se tentar, voltaremos sob outra forma. Mas a forma original, embora fantasmagórica, sempre estará lá: para coçarmos a
cabeça por causa de suas contradições, para acadêmicos e moralistas
sondarem seus defeitos, para seres
humanos reagirem ao que já foi -e
em algum nível sempre será- honesto, ressonante, idealista".
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