São Paulo, domingo, 29 de fevereiro de 2004

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+ inédito

O filósofo francês discute como os gregos revolucionaram o pensamento político ocidental

A DESCOBERTA DO ABISMO

Petros Giannakouris - 11.ago.2003/Associated Press
Andaimes recobrem o Parthenon, em Atenas, tendo ao fundo a lua


por Cornelius Castoriadis

Eis o ponto central da questão: não houve, até agora, pensamento político verdadeiro. Houve, em alguns períodos da história, uma verdadeira atividade política e o pensamento implícito a essa atividade. Mas o pensamento político explícito foi apenas filosofia política, isto é, província da filosofia, subordinada a esta, escrava da metafísica, encadeada aos pressupostos não conscientes da filosofia e sobrecarregada de suas ambigüidades. Essa afirmação pode parecer paradoxal. Ela o parecerá menos se se lembrar que por política entendo a atividade lúcida que visa à instituição da sociedade pela própria sociedade e que tal atividade só tem sentido, como atividade lúcida, no horizonte da questão: o que é a sociedade? O que é sua instituição? Qual a finalidade dessa instituição? Ora, as respostas a essas questões sempre foram tacitamente tomadas da filosofia -a qual, por sua vez, nunca as tratou senão violando a especificidade delas, a partir de outra coisa: o ser da sociedade e da história a partir do ser divino, natural ou racional; a atividade criadora e instauradora a partir da conformação a uma norma dada por outra instância. Mas o paradoxo é real. A filosofia nasce, na Grécia, simultânea e substancialmente com o movimento político explícito, democrático. Os dois emergem como questionamentos do imaginário social instituído. Surgem como interrogações profundamente conjugadas por seu objeto: a instituição estabelecida do mundo e da sociedade e sua relativização pelo reconhecimento da "doxa" e do "nomos" que provoca em seguida a relativização dessa relativização, ou seja, a busca de um limite interno a um movimento que é, nele mesmo e por princípio, interminável e indeterminado.

Distância intransponível
As questões "por que nossa tradição é verdadeira e boa? Por que o poder do Grande Rei é sagrado?" não apenas não surgem numa sociedade arcaica ou tradicional, mas sobretudo não podem surgir, não têm sentido nela. A Grécia faz existir, cria, "ex nihilo", essa questão. A representação, a imagem socialmente estabelecida, do mundo não é o mundo. Não simplesmente porque o que aparece difere do que é; isso, todos os primitivos o sabem -como sabem também que as opiniões diferem da verdade. É porque, tão logo reconhecida numa nova profundidade -tão logo essa nova profundidade é, pela primeira vez, aberta-, a distância entre aparência e ser, entre opinião e verdade, se torna intransponível, renasce perpetuamente de si mesma.
E é assim porque a fazemos existir, por nossa simples existência. Não temos acesso, por definição, senão ao que aparece; mas toda aparência nos deve algo. E toda organização da aparência -ou significação conferida a esta-, também. "Se os cavalos tivessem deuses, estes seriam cavalares", dizia Xenófanes, mestre de Parmênides. Não é indispensável ser grego para compreender a implicação: se nossos deuses são "humanos", antropomorfos, é porque somos humanos.
E, se retirarmos dos deuses, de Deus ou do que quer que seja os "atributos" caninos, cavalares, humanos persas, gregos, etíopes..., o que resta? Resta alguma coisa? Nada resta, dizem Górgias e Protágoras; resta o "nele mesmo e segundo ele mesmo", diz Platão, resta aquilo que é, tal como é, separadamente ou independentemente de toda "consideração", de toda "visão" ("theoria"). As duas respostas são equivalentes, rigorosamente falando. E ambas abolem o discurso -e a comunidade política. [...] Como mostra a frase de Xenófanes, a distância entre aparência e ser, entre opinião e verdade, não se enraíza apenas nem sobretudo na "subjetividade" individual (o que se tornou sua interpretação filosófica moderna, até a redescoberta da etnologia e do "relativismo cultural"). As diferenças entre aparências e opiniões, enquanto diferenças subjetivas, sempre puderam ser resolvidas, nas sociedades arcaicas e tradicionais, pelo recurso à opinião da tribo, da comunidade apoiada na tradição e identificada, automaticamente, à verdade. A peculiaridade da Grécia é o reconhecimento de que a opinião da própria tribo nada garante: ela é apenas seu "nomos", sua lei estabelecida, sua "convenção". "Convenção" no sentido não do "contrato" -não é nesses termos nem nessa categoria que os gregos pensam o social-, mas da afirmação, da decisão inaugural, da instauração. [...]

A ruptura grega
Recapitulemos as grandes linhas do movimento. Durante inumeráveis milênios, as sociedades humanas se auto-instituem -e se auto-instituem sem sabê-lo. Atormentadas pela obscura e muda experiência do Abismo, elas se instituem não para poder viver, mas para ocultar esse Abismo, o Abismo "externo" e "interno" à sociedade. Elas só o reconhecem, em parte, para melhor recobri-lo. Colocam no centro de sua instituição um magma de significações sociais que "explicam" o ser-assim do mundo e da sociedade (na verdade, constituem desse modo o ser-assim), significações que estabelecem orientações e valores das vidas coletiva e individual, que são indiscutíveis e inquestionáveis. De fato, toda discussão, todo questionamento da instituição da sociedade e das significações que lhe são consubstanciais reabririam, escancarada, a interrogação sobre o Abismo.


A experiência fundamental grega é o desvelamento, não do ser e do sentido, mas do não-sentido irremediável; pelo simples fato de existirmos, ultrajamos a ordem do ser


Assim, o espaço da interrogação aberto pela emergência da sociedade é fechado tão logo se abre. Nenhuma interrogação, a não ser fatual; nenhuma interrogação sobre o porquê e o porquê da instituição e da significação. Estas são subtraídas ao questionamento, à contestação do fato de que são estabelecidas como tendo uma origem extra-social. O Abismo falou, ele nos falou -portanto, não é mais um Abismo (os cristãos continuam a pensar assim). E isso é verdade, quer se trate de uma sociedade "arcaica", sem "divisão social" assimétrica e antagônica e sem "Estado", quer se trate de sociedades "históricas" ("despotismo oriental") fortemente divididas, comportando um "Estado" e, em realidade, sempre mais ou menos teocráticas. A ruptura ocorre na Grécia. Por que na Grécia? Nada de fatal nisso: ela poderia não ter ocorrido ou ter ocorrido alhures. De resto, ocorreu em parte também noutros lugares -na Índia, na China, mais ou menos na mesma época. Mas não foi adiante. Nada sei dizer das "razões" que fizeram com que essa ruptura ocorresse em tais povos e não em outros, em tal época e não em uma outra. Mas sei que foi na Grécia que ela prosseguiu, quase, até o fim; que é lá que a história foi posta em movimento de uma outra maneira; que é lá que "nossa" história começa e começa enquanto história universal no sentido forte e pleno da palavra.

Totalidade dilacerada
É somente na Grécia que o trabalho dessa ruptura está indissociavelmente ligado e sustentado por um movimento político, que a interrogação não permanece simples interrogação, mas se torna afirmação interrogante, isto é, atividade de transformação da instituição, que ao mesmo tempo "pressupõe" e "implica" -portanto, nem pressupõe nem implica, mas é consubstancial a- o reconhecimento da origem social da instituição e da sociedade como origem perpétua de sua instituição. Essa dimensão política reúne e eleva a sua potência mais aguda, no seio de uma totalidade ao mesmo tempo coerente e conflituosa, dilacerada, antinômica, os outros componentes da criação imaginária que os gregos constituem e que os constituem como gregos. Trata-se de sua "experiência", ou melhor: de sua afirmação ontológico-afetiva, de sua afirmação da universalidade, de sua liberação da interrogação "discursiva", ou seja, do fato de essa interrogação não reconhecer nenhuma barreira e, também, de voltar-se sobre si mesma, de interrogar-se a si mesma. A experiência -ou afirmação ontológico-afetiva dos gregos- é a descoberta, o desencobrimento do Abismo; certamente reside aí o "núcleo" da ruptura e, sem dúvida nenhuma, sua significação absoluta, transistórica, seu caráter de verdade doravante eterna. Aqui, a humanidade sobe em seus próprios ombros para olhar mais além de si mesma e olhar-se a si mesma, constatar sua inexistência -e se põe a fazer e a se fazer. Banalidade que convém repetir com força porque constantemente esquecida e recoberta: a Grécia é primeiro e antes de tudo uma cultura trágica. As pastorais ocidentais imputadas à Grécia nos séculos 17 e 18 assim como os comentários profundos de Heidegger coincidem, desse ponto de vista. [...] O que faz a Grécia não é a medida e a harmonia nem uma evidência da verdade como "desvelamento". O que faz a Grécia é a questão do não-sentido e do não-ser. Isso é dito claramente desde a origem -mesmo se os ouvidos tapados dos modernos não podem ouvi-lo ou somente o ouvem por meio de suas consolações judaico-cristãs ou de seu correio sentimental filosófico. A experiência fundamental grega é o desvelamento, não do ser e do sentido, mas do não-sentido irremediável. Anaximandro o diz, e em vão se glosaria eruditamente a frase para obscurecer sua significação: o simples existir é "adikia", "injustiça", desmedida, violência. Pelo simples fato de existirmos, ultrajamos a ordem do ser -que é portanto, do mesmo modo, essencialmente ordem do não-ser. E diante disso não há recurso algum, nenhuma "consolação" possível. A mó da "diké" [Justiça] impessoal esmaga, incansavelmente, tudo o que vem a ser. [...] Mas esse primeiro fundamento já contém um outro componente decisivo dessa apreensão imaginária do mundo: a universalidade. Sabemo-lo, mas Hannah Arendt fez bem em nos lembrar: na "Ilíada", não há nenhum privilégio dos gregos em relação aos troianos e, na verdade, o herói mais humano, o mais comovente, é Heitor, e não Aquiles -Heitor que sofre um destino radicalmente injusto e é enganado por uma deusa (não qualquer uma: Atena) no momento mesmo em que vai morrer.

A hybris
Séculos mais tarde, a mesma atitude: em "Os Persas" (472 a.C., de Ésquilo), nenhuma palavra depreciativa em relação ao formidável inimigo que quis reduzir a Grécia à escravidão. Persas e gregos são postos rigorosamente no mesmo plano, a personagem principal, a mais comovente e respeitável da peça, é Atossa, a mãe do grande rei, e o que está em causa e é "punido" é a hybris, a desmedida do indivíduo Xerxes. [...]
Em "Os Persas", ainda, não creio que já se tenha observado a imensa importância filosófica, política e muito mais da definição dos atenienses dada pelo poeta. Quando Atossa pede (enquanto a guerra ainda não terminou; a batalha de Eurimedon ocorreu em 468, e a paz só foi concluída em 449 a.C.) para ser instruída sobre Atenas e seu povo, a breve resposta do coro culmina neste verso: "Eles não são escravos nem súditos de homem nenhum" -definição dos atenienses por um ateniense, na qual se pode condensar ainda hoje e sempre um programa político para a humanidade inteira.

Cornelius Castoriadis (1922-97), filósofo francês de origem grega, foi fundador, em 1948, do grupo "Socialismo ou Barbárie". É autor de, entre outros livros, "As Encruzilhadas do Labirinto" (ed. Paz e Terra). A íntegra deste texto inédito de 1979, que foi publicado originalmente no"Le Monde" em 24/ 1/2004, sairá em março pela editora Seuil em "Ce Qui Fait la Grèce - 1. D'Homère à Héraclite" [O Que Faz a Grécia - 1. De Homero a Heráclito].
Tradução de Paulo Neves.


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