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Oscilando entre realismo e caricatura, "Vista do Rio",
de Rodrigo Lacerda, afirma o autor como um dos mais
instigantes talentos da jovem literatura brasileira
A simetria imperfeita
Wander Melo Miranda
especial para a Folha
O novo romance de Rodrigo Lacerda é desconcertante desde a
capa: a imagem de um "vírus
HIV brotando de um linfócito"
confunde-se com o título "Vista do Rio".
A relação surpreendente, apresentada
de chofre ao leitor, desfaz visões estereotipadas, que comprometem a abordagem ficcional da cidade ou da doença em
grande parte de textos recentes da literatura brasileira. Nem alegoria nem representação hiperrealista, a superposição de
ambas as perspectivas é responsável pela
originalidade da narrativa, que gira em
torno do edifício Estrela de Ipanema.
O desenho de sua portaria, reproduzido no início do relato, serve-lhe de pórtico e entrada; uma foto do que poderia ser
a fachada, na última página do livro, encerra, como uma muralha intransponível, a narração.
Representante emblemático do "poder
afirmativo" -e desagregador- da vida
moderna, a arquitetura do edifício, a de
sua entrada principalmente, merece descrições e análises detalhadas do narrador. A distribuição racional e disciplinar
do espaço arquitetônico e, por inversão
irônica, da arquitetura narrativa pretende ser um "triunfo do otimismo, da técnica, da nova sociedade". Para Marco
Aurélio, o narrador, a simetria espacial
do Estrela de Ipanema exige, no entanto,
um "segundo olhar", a que se segue de
imediato um "estranhamento" diante da
promessa de felicidade do edifício, simultâneo a uma perspectiva textual diferenciada e, daí, a uma outra e inevitável
"vista" do Rio.
"Água podre"
A natureza da visão
submete-se ao que o Estrela de Ipanema
representa para Marco Aurélio e Virgílio,
o amigo que vem a adoecer -"todo o
bairro de Ipanema nasceu à luz do prédio onde morávamos. (...) A cidade e o
mundo vieram depois".
A história de ambos os jovens, matéria
do narrado, não se diferencia da história
da alta burguesia carioca de que fazem
parte seus vizinhos -"Ipanema, em Tupi, quer dizer água podre", diz Virgílio
na cama do hospital. O mesmo Virgílio
que se distraía antes torturando pequenos animais e, no primeiro capítulo do livro, junto com Marco Aurélio, diverte-se
ao triturar um beija-flor vivo num liquidificador, cena que é narrada com um
prazer sádico incomum. Ou então que se
espanta ao ver o motorista da casa tendo
relações sexuais com o próprio filho, Miguel, e depois se torna amante do adolescente violentado.
A violência perpassa as relações pessoais e sociais, com uma carga de indiferença e cinismo que a linguagem narrativa expressa à sua maneira, apesar de o
narrador tentar juízos e argumentações
dos quais ele mesmo não se sente muito
seguro. Para quem contar ou como contar, já que a "modernidade viabilizava o
fim da comunhão de sentimentos" como
sua tarefa primordial para tornar o homem "livre"? O narrador debate-se entre
ser "caricaturista" ou "realista suave",
segundo suas palavras. Num caso, a deformação hiperbólica, que o episódio do
beija-flor sugere; no outro, um certo distanciamento, como exprime a cena do
vôo de asa-delta.
O fim de Virgílio coincide, no texto,
com a decadência do Estrela de Ipanema
-""apodreceu tudo lá dentro", explicou
o porteiro, com a maior naturalidade". A
narrativa reabre-se com uma nova imagem visual, que deixa ver a natureza exuberante de praias e morros, estes últimos
comparados ambiguamente pela epígrafe a um "farto seio de pedra". Narra-se,
então, o primeiro vôo de asa-delta feito
por Virgílio, no verão de 1987. O acesso
difícil ao lugar do salto proporciona, em
virtude da beleza de cartão-postal da cidade vista de cima, uma compreensão
mais próxima do que ela representa.
A doença e a cidade
Nas palavras
de Virgílio, em conversa com Marco Aurélio: "Toda a cidade tem buracos negros, onde a violência e a criminalidade
barram a entrada da lei. O Rio tem isso,
claro, mas é uma das poucas cidades onde também a revolta pacífica é capaz de
criar áreas e códigos alternativos. A beleza natural cria nuanças inesperadas na
divisão do espaço social". Virgílio, enfim, salta e desliza tranqüilo no ar, como
a arrematar de outra maneira a história
de sua vida. Marco Aurélio permanece
na plataforma de decolagem, acometido
pela náusea e pela angústia de se saber à
beira de um outro abismo, onde a arte, a
vida e a felicidade se confundem, sem
um ponto em comum, como as pequenas figuras vistas do alto.
Terminado o livro, o realista suave se
encontra com o caricaturista, "fura túneis insuspeitados" e "pula sobre montanhas", como adianta a epígrafe inicial do
romance. Novos ângulos, outras superfícies: doença e cidade se abrem como linguagem, como fala de um saber até então
insuspeitado.
Dessa forma, após a estréia auspiciosa
de "O Mistério do Leão Rampante"
(1995) e da experiência bem-sucedida de
"A Dinâmica das Larvas" (1996), Rodrigo Lacerda alcança o nível dos realizadores que efetivamente contam e se afirma
como um dos mais instigantes talentos
da jovem literatura feita no Brasil.
Wander Melo Miranda é professor titular de teoria da literatura na Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG) e editor-assistente da revista "Margens/ Márgenes".
Vista do Rio
195 págs., R$ 34,80
de Rodrigo Lacerda. Ed. Cosac & Naify (r. General
Jardim, 770, 2º andar, CEP 01223-010, São Paulo,
SP, tel. 0/ xx/ 11/3218-1444).
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