São Paulo, domingo, 29 de março de 1998

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Truffaut zero de conduta



Leia em primeira mão um trecho da biografia do cineasta, a sair em abril pela Record, que narra como ele foi denunciado à polícia por seu pai, aos 16 anos, após ter acumulado dívidas e furtos para manter um cineclube; para o lançamento do livro, virá ao Brasil um dos autores, Serge Toubiana, diretor da "Cahiers du Cinéma", revista lendária na qual escreveram Truffaut e Godard

SERGE TOUBIANA
ANTOINE DE BAECQUE


Como primeira manifestação pública de sua cinefilia, François Truffaut decide em outubro de 1948 fundar um cineclube, o Círculo Cinêmano. Robert Lachenay é catapultado a secretário geral e gerente: aos 18 anos, já é capaz de cuidar das finanças. Truffaut reserva-se o título de diretor artístico. Em primeiro lugar, é necessário encontrar uma sala. Ele consegue convencer o sr. Marcellin, proprietário do Cluny-Palace, no bulevar Saint-Germain. Contra 4.000 francos por sessão, as instalações são alugadas nas manhãs de domingo. Para conseguir cópias, Truffaut recorre à Cinemateca Francesa.
Para a primeira sessão, marcada para domingo, 31 de outubro, às 10h15, Henri Langlois (diretor da Cinemateca Francesa) empresta-lhe dois filmes curtos, "Entr'Acte", de René Clair, e "Um Cão Andaluz", de Luis Buñuel. O rapaz tenta conseguir também um longa-metragem, "O Sangue de um Poeta", de Jean Cocteau, mas se depara com um não da Federação Francesa dos Cineclubes, à qual não quisera aderir nem pagar pela locação dos filmes. Langlois, por sua vez, bem que gostaria de ajudá-lo, assim como a outros jovens cinéfilos, a livrar-se desta tutela, emprestando-lhe gratuitamente suas cópias e promovendo uma espécie de curto-circuito na rede oficial de cineclubes. Incapaz entretanto de fazer frente à poderosa federação sob influência comunista, ele é forçado a recuar, recusando-se a emprestar "Le Sang d'un Poète" a Truffaut.
A sessão inaugural do Círculo Cinêmano anuncia-se problemática. No último momento, Truffaut a adia para o domingo, 14 de novembro, na esperança de acabar convencendo Langlois. Este vem adverti-lo numa carta de 4 de novembro: "Considerando seu amor pelo cinema, permita-me dizer-lhe que não deveria lançar-se numa empreitada como a que me expõe sem alguma ajuda. Pois a divergência entre a Cinemateca Francesa e a Federação Francesa de Cineclubes a propósito da cessão de filmes não é uma questão de pessoas ou de política, mas simplesmente uma impossibilidade jurídica que obriga a Cinemateca, não obstante todo o seu desejo de manter-se como um organismo vivo, a assistir como espectadora ao movimento dos cineclubes".
Truffaut obstina-se e escreve a Jean Cocteau em pessoa, convidando-o a apresentar seu filme levando uma cópia. Cartazes são colados nas imediações do Cluny-Palace e distribuídos nos cineclubes da região de Saint-Michel, anunciando para essa primeira sessão uma projeção de "Le Sang d'un Poète" "na presença do realizador". Desnecessário dizer que o anúncio causou sensação: ouvir Cocteau era um grande privilégio. Depois da exibição dos dois curtas-metragens de René Clair e Buñuel, cerca de cem espectadores aguardam com impaciência a chegada de Cocteau. Mas não demoram a se aperceber do logro e por pouco a sessão não degenera em pancadaria. Truffaut e Lachenay dão um jeito de não reembolsar integralmente os espectadores, mas o Círculo Cinêmano já perdeu boa parte de sua credibilidade. Porém, a receita é suficiente para pagar o aluguel da sala. E até sobram cerca de 1.000 francos de lucro, o que leva o sr. Marcellin a concordar com o prosseguimento da experiência, apesar das queixas dos espectadores.


continua




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