São Paulo, domingo, 29 de março de 1998 |
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice Portanto, não acredito que se possa isolar um filme do contexto cinematográfico em que ele nasce. É preciso entender que a dupla premiação de "Central" no Festival de Berlim e a maneira como foi recebido no Sundance são, de certa forma, a afirmação da cinematografia brasileira. Folha - Você fala da cinematografia brasileira. Essa cinematografia, particularmente a de hoje, possui alguma qualidade que lhe seja própria? Salles - Acho que a qualidade fundamental do cinema brasileiro é a de que nenhum filme pretende servir de paradigma para outros filmes. O interessante no nosso cinema atual é a pluralidade. Há um mundo de jovens diretores interessantes surgindo em diversos Estados do Brasil. Já falei dos componentes da Conspiração, aqui no Rio, e dos que fizeram o "Baile Perfumado", em Pernambuco. Poderia citar ainda, correndo o risco de esquecer nomes importantes, José Araripe e Sérgio Machado, na Bahia, ou o Karim Ainouz, no Ceará, que fez um roteiro sobre Madame Satã, quase premiado em Sundance, ficando classificado entre os três finalistas. Estes jovens cineastas vêm fazendo filmes muito diferentes. O denominador comum entre eles é a mesma fome de cinema e a vontade de falar de um país chamado Brasil de tantas formas quantas o cinema permita. Isto nos aproxima da quinta geração de cineastas chineses ou do cinema iraniano, que também não fazem cinema de gênero; fazem filmes pelo desejo de fazer filmes. O que nos une são interrogações que acompanham o cinema desde o nascimento: quem somos, de onde viemos, para onde vamos? E, se o cinema brasileiro readquiriu rapidamente, desde o início da recente retomada, uma expressiva representatividade internacional, isto se deve à maneira visceral que temos de fazer filmes. Outros filmes com o mesmo desejo de cinema vão surgir e, pouco a pouco, nossa presença em festivais internacionais vai se estabilizar. Estamos voltando a ser uma cinematografia que conta. Folha - A geração cinemanovista ainda marca o cinema brasileiro? Salles - Existe uma feliz coincidência entre a retomada do cinema brasileiro e a permanente vontade de nossos mestres de continuarem fazendo filmes. Nelson Pereira dos Santos prepara, agora, um dos mais belos projetos de sua carreira, "Guerra e Liberdade", sobre a vida de Castro Alves em São Paulo, durante a Guerra do Paraguai e em meio à luta pela libertação dos escravos. Folha - E essa "retomada"? Você tem alguma opinião sobre o que produziu este novo interesse pelo cinema brasileiro? Salles - Não saberia dizer quais as razões deste renascimento, se é que elas podem ser descritas de maneira linear, como numa cadeia de causas e efeitos. Comparo o fenômeno do crescente interesse pelo cinema no Brasil à ruptura com a proibição de se falar uma língua. É como se tivéssemos sido impedidos por longos anos de contar histórias numa linguagem que nos permitiria dizer o que queríamos da melhor forma que sabíamos e, de repente, o impedimento tivesse desaparecido. Folha - A imagem é forte e muito bonita. Mas gostaria de mudar ligeiramente de assunto. Por que você escolheu o sertão como metáfora de um novo horizonte de relações humanas? Salles - Bem, nosso intuito era o de criar uma oposição entre o urbano e o rural, mas sem cair numa visão maniqueísta ou romântica na qual o bem morasse no rural e o mal fosse o inquilino do urbano (risos). Alguns acharam que isto era romantização ou idealização do sertão. Não penso assim. Apenas observei que, à medida que entrávamos no sertão, uma certa delicadeza e fraternidade humana tornavam-se mais visíveis. Folha - Pode dar um exemplo? Salles - Poderia dar vários. Muitas vezes, nas viagens de locação, fomos convidados a dormir na casa das pessoas ou a dividir um prato com quem já não tinha muito o que comer. Isto, a meu ver, já é muitíssimo e fala por si. Mas, além disso, a solidariedade da população conosco foi comovente. Vou citar um único episódio. Em Cruzeiro do Nordeste, no último dia de filmagem, aconteceu algo especialmente tocante. continua Texto Anterior | Próximo Texto | Índice |
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