São Paulo, domingo, 29 de março de 1998

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O episódio do desmaio de Dora na Casa dos Milagres pareceu-me ilustrativo desta redescoberta emocional de si. O que você pensou quando imaginou a cena?
Salles -
Pensei no poder que o desconhecido que tem de alterar nossas vidas. No momento em que Dora se defronta com uma geografia e com personagens sobre os quais não tem o menor poder, ela é obrigada a agir de forma diferente. Suas certezas são abaladas de alto a baixo.
Ela vivia num mundo pequeno, previsível, controlável. Diante do novo, no caso o sertão do Nordeste, começa a se ressensibilizar, a descobrir a alteridade, e tudo se cristaliza no momento da procissão. Naquele instante ela descobre a gravidade de não ter enviado as cartas.
Quando entra no interior da Casa dos Milagres e vê a fé, a importância do que estava em jogo em cada um daqueles pedidos, confronta-se com a culpa e é tomada por ela. Em suma, procurei mostrar como a abertura para a alteridade, representada pela estrada que leva ao desconhecido, provoca em Dora uma mudança afetiva em todos os sentidos.
É também na estrada que, pela primeira vez, ela mostra desejo sexual e amoroso por alguém. Ela só consegue perceber a existência de um homem a partir do momento em que transforma e alarga sua visão de mundo.
Folha - Existe outro elemento em "Central do Brasil" que me pareceu muito importante: o relevo dado à vontade. No fundo, Dora poderia ter dito "sim" ao poder da delinquência. Mas disse "não" e assumiu os custos de seu ato ético. O que você pensa disso?
Salles -
Isso me leva a falar do personagem de Marília Pêra, a Irene. Ele é de certa forma o suporte ético do filme. No momento em que as duas se encontram, Dora é surpreendida pela reação de Irene. Ela queria entrar na era do controle remoto, no templo imaginário do consumo, e não esperava defrontar-se com alguém capaz de reprovar seu gesto leviano. Irene aparece como um divisor de águas, quando diz: "Tudo tem limite".
Folha - Essa valorização da vontade de agir separa tematicamente "Terra Estrangeira" de "Central do Brasil"?
Salles -
Com certeza. Em "Terra Estrangeira", a tônica era a desorientação e a apatia. Foi um período caótico na vida brasileira. As pessoas viram-se privadas de decidir sobre coisas mínimas, como no caso do confisco da poupança dos aposentados. Você era objeto da ação dos outros e sequer dominava o presente imediato, quanto mais projetos futuros.
Em "Central do Brasil", oito anos depois da época de "Terra Estrangeira", há o desejo de mostrar que a segunda chance é possível e que a ação é necessária. Uma vez tomada a iniciativa da ação, começa a liberdade. Dora liberta-se do domínio dos poderosos e pega a estrada, rumo a uma vida nova.
Folha - Sempre que fala sobre seus filmes você insiste na idéia do trabalho em equipe, na importância do Cinema Novo em sua formação e na idéia de que seu cinema só pode ser entendido à luz da história e da atualidade do cinema brasileiro. Isso é fundamental para a compreensão do que você faz?
Salles -
Penso que sim. Penso que nenhum filme existe por si só. Todo filme é herdeiro de uma cinematografia e, no caso do Brasil, esta cinematografia tem importância artística até hoje.
É uma honra pertencer à cinematografia que deu vida à "Limite", de Mário Peixoto, revolucionário em sua estrutura poética não-narrativa e em sua temática existencialista avant la lettre. É uma honra ter como legado o Cinema Novo e ser parceiro de tantos outros filmes recentemente exibidos ou que estarão em breve nas telas.
Vejo-me fazendo parte deste novo cinema que tem a energia dos garotos do "Baile Perfumado" ou dos integrantes da produtora Conspiração, que fizeram "Traição", ainda não exibido e baseado em Nelson Rodrigues.


continua




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