São Paulo, domingo, 29 de março de 1998

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FOTOGRAFIA

Tótens brasileiros



O diretor e fotógrafo Arthur Omar lança hoje em SP o álbum de fotos "Antropologia da Face Gloriosa"
CARLOS ADRIANO
especial para Folha

Flagra-se o instante. Arrebenta-se o arrebatamento. Deflagra-se o êxtase. Assim são produzidas e apreendidas as fotografias de Arthur Omar no livro "Antropologia da Face Gloriosa".
Para Omar, "faces gloriosas são aquelas que vivem estados e atitudes de passagem". Situam-se num estágio indefinido, de breve transição, na pulsação difusa e instável de sentimentos ambíguos.
Sua antropologia é um estudo poético e exaustivo da paisagem do rosto humano, transfigurado em entusiasmo, expressão de emoção, cravada na emulsão fotoquímica.
O conjunto compõe uma ascese barroca. A densa matéria da realidade humana torna-se rarefeita, coagula. Em seu entusiasmo, a imagem se desintegra em puras configurações de luz e sombra. Fricção de vibrações. Rasura do rosto. Transfigura.
O livro estampa 161 fotos tiradas em carnavais de 1973 a 1996. Aqui é apropriada a denominação "ensaio fotográfico". Um pensamento sensorial-intelectual (des)articula imagens e palavras desse "teatro de operações rituais".
O fotógrafo vê a "antropologia da face gloriosa" como "ciência da comunhão interêxtases". Em sintonia com o objeto num dado instante (não momento, mas instante), conjuga o olhar no modo mútuo, comunga a experiência extática. Incidência indivisível, instância de "in-frações". Faces em fases fugazes.
Arma-se uma dialética da duração (os tempos do fotografar, do revelar, do ampliar). A disciplina de manter para cada rosto apenas uma foto. O ato inspirado não pede "retake".
Omar não retrata. Grava o rosto. A figura dissolve-se em densidades e dimensões de textura. Alquimia que transforma o tótem em espelho, esfinge.
Sua retórica fotográfica vale-se de recursos como granulação, contraste, sobreposição, recorte, exposição, desfoque, fragmentação, em proporções múltiplas. A imagem raspa a emulsão e deixa decantar o pó.
Olhos arregalados, sentidos aguçados. Abstrações em pinceladas de luz. Fração fractal de rabisco irregulares no ar. Poros e rugas se incrustam e rasgam o papel.
As legendas das fotos concordam e discrepam, pedras-de-toque lapidares. Títulos não redundantes nem explicativos, calcados no referencial objetivo mas deslocados, trazem uma sensação de estranhamento, mas de profunda correspondência. São aforismos poéticos, paradoxos irônicos.
Alguns transcendem a foto específica e adquirem um caráter programático, manifesto da natureza do projeto: "Pastor de Cinzas no Abismo Iluminado", "O Lapso em Carne Viva", "Contemplar É Um Ato Violento", "O Alfinete Atravessa o Caos e Toca o Nervo Novo", "Para Onde Vai a Forma, Quando a Matéria Cede Passagem?", "O Rosto Também é sem Porquê".
Os títulos fazem referências cruzadas ("A Marca do Zorro no Santo Graal", "Jóias Gnósticas e Lágrimas de Man Ray"). Comentam a ordem (após uma série de imagens disformes e abstratizantes, anunciam sob a foto seguinte: "O Eterno Retorno da Coisa Clássica"). Funcionam como trocadilhos ("Puro Enquanto").
O livro remete ao cinema do autor. Omar já filmara o carnaval, no curta "Sumidades Carnavalescas" (1971) e no longa "Triste Trópico" (1974). Estas fotos poderiam constar da narrativa granular de "Tesouro da Juventude" (1977) e da crítica antropológica de "Congo" (1972).
Mais afinadas ao coro de "Ressurreição" (1989), um dos melhores filmes do artista (deserdados e excluídos em outro cortejo, esquartejados), as fotos seguem a mesma estratégia do desconcerto que orienta sua obra: o êxtase extraído do choque.
Um dos mais instigantes e inventivos diretores do cinema brasileiro (e um artista de interesse plural, com trabalhos em música, fotografia, artes plásticas, poesia), Arthur Omar fez de seu livro um quase-filme, cujas imagens são páginas e os sons são frases.
Um filme de cinema é composto de uma série de fotografias fixas que, quando carregadas numa máquina de projeção, proporcionam a ilusão de movimento. As fotos de Omar parecem vindas de um filme, não tanto pelo drama episódico que encerram, mas pelo parâmetro formal e o procedimento estrutural escolhidos. Borrões de luz sugerem o movimento abortado.
As fotos sucedem-se nas páginas, mas podem ser lidas como sequências. Elementos tramam eixos paradigmáticos (maquiagem, pele, lágrimas, cachimbos, sentidos do olhar, combinação de composições, "movimento" da imagem, grão, luz). Efeitos engendram idéias (cílios piscam e irradiam focos).
O livro de Omar me sugere fazer um filme. E faz pensar na utopia antiga do cinema: fazer um filme só de closes de rostos. Suas fotos se prestam às maravilhas da montagem cinematográfica.
Omar apresenta uma antropologia sem ranço acadêmico, sem pruridos étnicos, sem traumas de segregação social. Mostra o rosto de um Brasil à margem. Escreve: "O Brasil não é apenas o país que se sabe, mas a soma absurda de uma infinidade de mundos subjetivos e experiências rituais, muito além do que qualquer sociologia ou qualquer história, ou qualquer psicologia conseguiria apreender. O Brasil é a soma das faces gloriosas que ele possa sustentar. Aritmética dos êxtases".
Duas máscaras monstruosas chamam-se "Corpo Filosófico Vivo" e "Há um Século sem Voltar ao Brasil". A foto "Antropologia da Face Gloriosa" surge como versão brasileira (paródia carnavalesca da identidade mixada numa profusão de nações?) da foto de Einstein mostrando a língua.
Tirar fotos significa: a luz refletida pelo objeto atravessa uma lente e bate no nitrato de prata do filme e impressiona ali uma imagem. Só daí vem o revelar e ampliar. As fotos de Omar trabalham o sentido de "revelação", como investigação filosófica da arte e processo técnico de laboratório. Ele nota que em inglês e francês a palavra traz a idéia de "desenvolvimento" e não (como em português) de "descoberta".
O percurso fotográfico termina, pertinente, com um sugestivo auto-retrato do autor, esfregando os olhos arregalados e elevados: "Não Te Vejo com a Pupila, mas com o Branco dos Olhos".
Foto-gnose que cultua a ruptura e a irreverência da surpresa original, a "Antropologia da Face Gloriosa" de Arthur Omar é uma experiência contundente e vigorosa. O prazer de ver elabora sua exuberância reflexiva e divertida.


Carlos Adriano é diretor e pesquisador de cinema. Dirigiu, entre outros, "Remanescência".



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