|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Um inimigo do povo
JORGE COLI
especial para a Folha
Como se tornou quase uma
regra supor que o público recuse versões não-simplificadas
das grandes peças, no teatro
Sérgio Cardoso, em São Paulo,
é apresentado um "digest" de
"Um Inimigo do Povo", de Ibsen. Os cinco atos reduziram-se
a um só, personagens, cenas inteiras e passagens importantes
foram suprimidas ou atenuadas. Ainda assim, esse resumo
guarda a força de um radicalismo violento e subversivo,
que resiste ao poder, acusa a
sociedade, desmoraliza a im
prensa, denuncia os partidos
políticos -todos os partidos-
e a democracia. O tom anarquizante parece surgir de antigas raízes românticas para
proclamar a força das convicções adquiridas na fidelidade a
si próprio.
No Brasil de hoje a peça soa
muito atual: há apenas 10 ou 15
anos ela talvez fosse deslocada
e incompreendida. Saíamos
então de um regime autoritário e acreditávamos difusamente nas virtudes imediatas
da democracia e da política:
agora estamos mais escaldados. O ótimo elenco, as grandes qualidades de ator de Paulo
Betti fazem lamentar que a
montagem não enfrente o texto completo para nos oferecer
o que poderia ter sido um verdadeiro acontecimento teatral.
ECLIPSE - Botero diverte um
público distraído e faz sucesso
numa certa faixa não muito
exigente do mercado das artes.
Esta irrelevância, no entanto,
inquieta. A exposição é apresentada no Masp, e o Masp não
é apenas um edifício. Ele é o resultado de um projeto cultural
ambicioso e elevado que deu
certo: um museu antológico
onde se pudesse percorrer a história da pintura por intermé
dio de seus maiores autores. O
Masp é, antes de tudo, um acervo excepcional, uma das importantes coleções de arte do
planeta, que deveria estar no
núcleo, dar o sentido e indicar
o nível das atividades do museu, mas que tem sido preterido. Botero é um sintoma: o caráter das ridículas publicidades destinadas à mostra basta
para indicar quanto o essencial
princípio de cultura anda au
sente daquele museu.
O AMOR PELA MÚSICA -
Com suas imensas exigências e
dificuldades, a sinfonia "Ressurreição", de Mahler, sob a regência de Karabitchevsky, demonstrou a excelência da Orquestra Sinfônica Municipal e
do Coral Lírico -além de revelar a voz admirável da cantora
alemã Doris Soffel. Foi um impacto bem-vindo, capaz, esperemos, de alertar um público
que, no ano passado, desertou
o Teatro Municipal de São
Paulo em notáveis concertos a
preços populares.
O custo mirabolante de entradas para intérpretes internacionais funciona, entre nós,
como esnobismo que lota as
salas de espetáculo, mas o
amor pela música é outra coisa.
CADÁVERES NO ARMÁRIO - Coppola, a partir de
mais uma história sobre advogados escrita por Grisham,
fez um filme falsamente claro
e sem angústias, em que as dificuldades resolvem-se por
meio da solidariedade: como
se Capra estivesse filmando.
Mas um Capra cheio de cadáveres no armário, bem arrumadinhos, é verdade, porém
cadáveres, ainda assim, que
deixam um fundo de cheiro
podre no ar. Salvam-se as relações pessoais num fundo de
misérias humanas. Salvam-se os ideais possíveis
apenas dentro dos indivíduos, que devem renunciar
ao mundo para preservar-se,
como outrora se entrava para
o convento. O pequeno vence
o grande, mas para garantir
sua grandeza interna é obrigado a se manter pequeno.
"The Rain Maker" é espantoso: ele faz repousar o vigor de
uma história límpida sobre
uma sociedade impotente
diante da injustiça.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: coli@correionet.com.br
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|