São Paulo, domingo, 29 de março de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Um inimigo do povo

JORGE COLI
especial para a Folha

Como se tornou quase uma regra supor que o público recuse versões não-simplificadas das grandes peças, no teatro Sérgio Cardoso, em São Paulo, é apresentado um "digest" de "Um Inimigo do Povo", de Ibsen. Os cinco atos reduziram-se a um só, personagens, cenas inteiras e passagens importantes foram suprimidas ou atenuadas. Ainda assim, esse resumo guarda a força de um radicalismo violento e subversivo, que resiste ao poder, acusa a sociedade, desmoraliza a im prensa, denuncia os partidos políticos -todos os partidos- e a democracia. O tom anarquizante parece surgir de antigas raízes românticas para proclamar a força das convicções adquiridas na fidelidade a si próprio.
No Brasil de hoje a peça soa muito atual: há apenas 10 ou 15 anos ela talvez fosse deslocada e incompreendida. Saíamos então de um regime autoritário e acreditávamos difusamente nas virtudes imediatas da democracia e da política: agora estamos mais escaldados. O ótimo elenco, as grandes qualidades de ator de Paulo Betti fazem lamentar que a montagem não enfrente o texto completo para nos oferecer o que poderia ter sido um verdadeiro acontecimento teatral.

ECLIPSE
- Botero diverte um público distraído e faz sucesso numa certa faixa não muito exigente do mercado das artes. Esta irrelevância, no entanto, inquieta. A exposição é apresentada no Masp, e o Masp não é apenas um edifício. Ele é o resultado de um projeto cultural ambicioso e elevado que deu certo: um museu antológico onde se pudesse percorrer a história da pintura por intermé dio de seus maiores autores. O Masp é, antes de tudo, um acervo excepcional, uma das importantes coleções de arte do planeta, que deveria estar no núcleo, dar o sentido e indicar o nível das atividades do museu, mas que tem sido preterido. Botero é um sintoma: o caráter das ridículas publicidades destinadas à mostra basta para indicar quanto o essencial princípio de cultura anda au sente daquele museu.

O AMOR PELA MÚSICA
- Com suas imensas exigências e dificuldades, a sinfonia "Ressurreição", de Mahler, sob a regência de Karabitchevsky, demonstrou a excelência da Orquestra Sinfônica Municipal e do Coral Lírico -além de revelar a voz admirável da cantora alemã Doris Soffel. Foi um impacto bem-vindo, capaz, esperemos, de alertar um público que, no ano passado, desertou o Teatro Municipal de São Paulo em notáveis concertos a preços populares.
O custo mirabolante de entradas para intérpretes internacionais funciona, entre nós, como esnobismo que lota as salas de espetáculo, mas o amor pela música é outra coisa.

CADÁVERES NO ARMÁRIO
- Coppola, a partir de mais uma história sobre advogados escrita por Grisham, fez um filme falsamente claro e sem angústias, em que as dificuldades resolvem-se por meio da solidariedade: como se Capra estivesse filmando. Mas um Capra cheio de cadáveres no armário, bem arrumadinhos, é verdade, porém cadáveres, ainda assim, que deixam um fundo de cheiro podre no ar. Salvam-se as relações pessoais num fundo de misérias humanas. Salvam-se os ideais possíveis apenas dentro dos indivíduos, que devem renunciar ao mundo para preservar-se, como outrora se entrava para o convento. O pequeno vence o grande, mas para garantir sua grandeza interna é obrigado a se manter pequeno. "The Rain Maker" é espantoso: ele faz repousar o vigor de uma história límpida sobre uma sociedade impotente diante da injustiça.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: coli@correionet.com.br



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.