São Paulo, domingo, 29 de abril de 2001

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+ brasil 502 d.C.

A primeira morte de Wittgenstein

José Arthur Giannotti

Há 50 anos, no dia 1º de maio de 1951, era enterrado no cemitério de Saint Giles, em Londres, Ludwig Wittgenstein, nascido em 26 de abril, em Viena, morto dois dias antes, em 29 de abril de 1951, vítima de câncer. Apenas alguns amigos estavam presentes, conferindo à cerimônia aquela atmosfera de intimidade que o filósofo sempre prezou. Mas sua fama já havia percorrido a Europa, seu pequeno livro, "Tractatus Logico-Philosophicus", publicado em 1921, fazia parte da bibliografia básica de qualquer estudante de filosofia. Poucos, entretanto, sabiam que o grosso de suas investigações permanecia inédito, apenas alguns textos circulavam de mãos em mãos.
Difícil separar o personagem de seu mito, cada acontecimento de sua obra ou de sua vida carrega uma multiplicidade de sentidos abrindo caminho para interpretações diversas, até mesmo antagônicas. Ensinava que a língua dos filósofos estava deformada, como se crescesse dentro de sapatos apertados demais, mas será possível dar sentido a essa demasia sem experimentar nossos próprios excessos?

Tão claro como o Sol A crônica do "Tractatus" (publicado no Brasil pela Edusp) é sintomática. O livro aparece numa revista fora do círculo filosófico ainda com o título em alemão, "Abhandlung", substituído, na tradução inglesa, pela palavra latina, o que cria uma aura, uma estranheza de sentido ao mesmo tempo que situa o texto na linha direta dos tratados de Espinosa. O "Tractatus" é apresentado como um sólido transparente e tão claro como o Sol, pretendendo delinear nitidamente o que se pode falar e, por conseguinte, o que se deve calar. O inefável, porém, é mais importante do que o dizível, já que a linguagem, humilhada dentro de seus limites, obrigada a só falar do mundo dos fatos, abre o abismo do místico, em que a moralidade e a beleza se situam. Mas como se pode falar dos limites da própria linguagem, sendo que essa tarefa só pode ser cumprida por quem sabe falar?
Desse modo, o discurso sobre esses limites vai além das fronteiras do que ele mesmo determina como legitimamente dizível, indica uma relação entre as proposições e os fatos que não pode ser dita, mas precisa ser manifestada, mostrada.
O "Tractatus" desenvolve um discurso terapêutico que há de consumir a si mesmo, excesso a ser desprezado, escada a ser abandonada depois de nos levar ao mais alto. Mas é forjado de tal forma, esculpido numa técnica cubista, que nos lembra os trabalhos de Picasso e de Braque, criados anos antes: a figura da guitarra é rigorosamente composta por linhas geométricas, mas de tal modo que apenas insinua uma guitarra real. A linguagem da filosofia é infeliz porque se contorce sobre aquela felicidade de que o próprio Wittgenstein diz participar. Antes de morrer, envia aos amigos o seguinte recado: "Diga-lhes que essa vida foi para mim maravilhosa". Como pôde ter essa avaliação de si mesmo depois de ter passado as maiores tribulações?
Obviamente cada corrente do pensamento tem lido o "Tractatus" a partir de seus próprios pressupostos. Os filósofos do Círculo de Viena, responsáveis pela celebridade inicial do texto, se entusiasmaram porque nele encontraram armas potentes para arruinar toda e qualquer metafísica. Salientaram o que se podia falar, deixando na sombra o inefável -por isso mesmo são positivistas. No entanto o enorme alcance do livro escapava aos amigos mais íntimos do próprio Wittgenstein, cuja influência, ele mesmo reconhecia, esteve mais ligada à fama de um jargão do que a um pensamento. Isso se percebe claramente nas relações que mantém com Bertrand Russell (1872-1970).


O "Tractatus" é forjado de tal forma, esculpido numa técnica cubista, que nos lembra os trabalhos de Picasso e de Braque, criados anos antes


Wittgenstein vai a Cambridge para trabalhar com ele, toma suas lições como fio condutor de suas próprias reflexões, torna-se amigo de amigos dele, pede-lhe que escreva o prefácio do "Tractatus". Mau passo, pois, quando o recebe, vê que Russell não tinha entendido as sutilezas do texto. Situação que permanece ao longo dos anos. Em 1929, depois de quase uma década sem se dedicar plenamente à filosofia (não tinha ele resolvido seus problemas fundamentais com a publicação de seu opúsculo?), Wittgenstein volta à Universidade de Cambridge e se submete ao ritual do doutoramento, apresentando o "Tractatus" como tese. No final da arguição, muito informal, Wittgenstein lamenta que Russell continuasse a não entender o livro.
É notável, entretanto, que, à medida que o próprio Wittgenstein vai compreendendo o alcance de seu texto, passa a abandonar suas teses principais. Para mostrá-lo vale a pena sublinhar dois de seus pontos de partida. A linguagem é vista, em primeiro lugar, como uma espécie de mapa do mundo, a cada figura do mapa devendo corresponder uma espécie de átomo do real. O que nos garante, porém, ser possível analisar os elementos da linguagem de tal maneira que um nome, elemento da proposição, possa designar um e um só átomo do real? O pressuposto de que um significado deva ser completamente determinado, que seu uso dependa de um paradigma indeformável. Mas o sentido não é o próprio uso, esse desdobrar de aspectos alinhavados por uma semelhança de família?
O nome "mesa", por exemplo, haveria de ser capaz de indicar precisamente aquilo que é dito mesa, separando daquilo que é dito escrivaninha, banco etc. Como isso não acontece com o nome "mesa", vou considerá-lo complexo, formado de outros nomes ocultos, mas de tal modo que, no final da ponta da análise, sempre um objeto simples haveria de encontrar seu nome, condição de possibilidade de seu significado unívoco. Note-se que essa concepção pressupõe que a língua de fato proferida tenha como paradigma uma língua original, adâmica, onde as proposições possam ser reduzidas a um encadeamento de nomes, o qual, por sua vez, afigura os encadeamentos possíveis dos objetos simples.
O funcionamento real de uma linguagem, entretanto, necessitaria desse arcabouço rígido? O ajuste das palavras não vem a ser como o êmbolo que, para se mover no interior do pistão, exige uma folga, um vão indefinido, impreciso, precisamente aquilo que permite o funcionamento da peça? Em vez de imaginar a máquina ideal do mundo sendo coberta por um mapa demarcando as fronteiras do dizível e do indizível, não é mais pertinente pensá-la como nuvem que desenha no céu ora um elefante ora uma galinha? A linguagem não se exercita como um jogo, sistema de regras que não pode determinar o resultado da partida?
O segundo pressuposto está ligado a essa dificuldade. Imaginamos sempre existir uma relação entre as palavras e as coisas. A linguagem só é mapa do mundo se houver um método de projeção ligando os elementos do mapa e os elementos do mundo. Com que direito afirmo, porém, que existe um único dentre os vários métodos possíveis? Basta lembrar como são diferentes os mapas da Terra conforme obedecem a métodos projetivos diferentes.
Ao repensar a problemática do "Tractatus", assumindo desde logo que a linguagem é como um jogo necessariamente ligado a zonas de indefinição, Wittgenstein está mudando o aspecto dos problemas filosóficos tradicionais, em suma, tornando-se um dos maiores filósofos da nossa época, um clássico sem o qual não se pode mais pensar inclusive os velhos problemas metafísicos.
A despeito do caráter geométrico e profético dos aforismos que compõem o "Tractatus", não é difícil mostrar que retoma um por um os problemas da metafísica tradicional: mundo, alma, Deus -todos eles sendo considerados segundo o ser que lhes confere a particularidade de poderem ser ditos por significados perfeitamente definidos. Se a resposta é negativa, não é por isso que o livro deixa de existir como escada "necessária" para chegar a essa visão.
Os problemas metafísicos não existem de per si, independentemente da maneira pela qual são formulados. Tudo se passa como se estivéssemos diante daquela figura que ora é vista como pato ora como lebre.
Materialmente o desenho é o mesmo, nunca é visto todavia além de sua articulação como perfil de um animal. Não existem, de um lado, o problema do mundo, de outro, as soluções propostas. Quando se pergunta o que é o mundo, a resposta está sendo encaminhada pelo modo de perguntar. Se o ser se mostra rente à gramática de uma linguagem, se esta é considerada jogo, o mundo pelo qual se pergunta não pode se dar ao ser humano antes de que a linguagem tenha sido constituída. Mais do que a morada do ser, a linguagem é o meio pelo qual ele se mostra sendo isto ou aquilo, vale dizer, nunca como ser na qualidade de ser.

O pato e a lebre Se os problemas filosóficos são como as figuras ambíguas de pato/lebre, eles só podem ser compreendidos por aqueles que, no emaranhado do desenho, aprendam a distinguir a figura do pato, ainda quando, desprezando a ambiguidade, somente veja nela esse animal. Note-se que sem a experiência do próprio pato e da própria lebre as dificuldades de suas representações nem mesmo seriam levantadas. Para mudar o aspecto de um desenho, que funciona aliás por seu aspecto, é preciso adquirir uma técnica, passar por um aprendizado, treinar a vista para a variação e para o mesmo. Por isso nunca se chega a compreender um grande filósofo, responsável pela mudança de aspecto de um problema filosófico, sem passar por uma fase em que é lido sem ser plenamente compreendido.
Mas abrigaria um texto uma única leitura? Não seria a filosofia um discurso que, embora falando do mundo, da alma, de Deus, notadamente do ser, se torna necessário na medida em que o jogo da linguagem cotidiana, precisando falar do novo, começa a patinar? Se, para circunscrever essas derrapagens, vem a ser preciso investigar a gramática do jogo sendo posto em xeque, se elas só revelam seu alcance quando se aprende, pela variação dos exemplos, como certos modos de ser passam a ser ditos indevidamente, não se torna a filosofia uma terapia perene?
Entende-se por que Bertrand Russell nunca percebeu completamente o alcance do "Tractatus", mais ainda, que considerasse os últimos textos de Wittgenstein sem sentido e desprovidos de interesse: o esforço de criar o enviesava numa única direção. Mas também fica patente por que um filósofo criador caminha amparado numa técnica de leitura e numa visão própria, por que tanto ele quanto nós só perceberemos os erros gramaticais intrínsecos num problema filosófico depois de nos ter exercitado a andar numa única direção. Somente assim ela se comprova uma dentre muitas vias. O exercício da filosofia consiste no aprendizado de ver através de óculos determinados até que se revelem os limites dessa visão e surja a necessidade de mudar de óculos.
Nós, que passamos pela experiência da diversidade das filosofias e que sabemos como essa multiplicidade depende do aprendizado de ver sob aspectos diferentes, nos colocamos então diante de duas escolhas. Aceitando uma delas, continuamos a admitir que o aprendizado é uma escada que nos leva ao topo de um monte do qual ou as questões filosóficas se desvendariam completamente ou se tornariam para sempre indevassáveis. O dogmatismo, metafísica positiva, e o ceticismo, metafísica negativa, são faces invertidas dessa mesma moeda, do mesmo pressuposto de que existam significações paradigmáticas.
Escolhendo outra solução, tomamos a escada como o desenho de nossas vidas, a filosofia denunciando a demasia de uma linguagem que passa a funcionar dentro dos limites por ela mesma desenhados e por ela mesma ultrapassados para poder exprimir o novo. Mas, para aprender a pensar esses limites, o filósofo fala a linguagem do senso comum, que somente funciona invadindo zonas cinzentas, criando novas formas de dizer, constatando-se como discurso demasiado, incomum.

José Arthur Giannotti é filósofo, professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e presidente do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), autor de, entre outros, "Certa Herança Marxista" (Companhia das Letras). Ele escreve mensalmente nesta seção, que a partir desta edição passa a se chamar "Brasil 502 d.C." (depois de Cabral).


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