São Paulo, domingo, 29 de abril de 2001

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+ brasil 502 d.C.

A vizinhança do filósofo

Luiz Costa Lima

O livro de Bento Prado Jr. que ora se reedita, "Alguns Ensaios - Filosofia Literatura Psicanálise" (ed. Paz e Terra), antes publicado em 1985, reúne conferências e ensaios apresentados em 1968 ou produzidos depois de 1977.
Grosso modo, compreende dois blocos: no mais antigo, a literatura é o termo com que a filosofia se relaciona; no mais recente, a psicanálise e a psicologia experimental (a divisão exclui os ensaios "A Educação depois de 1968 ou Cem Anos de Ilusão", "O Problema da Filosofia no Brasil", a nota à tradução de "Arqueologia da Violência", de Pierre Clastres, e o exercício de "historiografia imaginária" do último texto). É de lamentar que a nova edição, embora expurgue erros da anterior, mantenha não datados alguns dos textos e que a nota a "O Problema da Filosofia no Brasil" continue sem explicitar por que o autor hoje discorda da posição ali assumida.
De cada bloco trataremos de dois textos. Da preocupação mais recente do autor, escolhemos "Auto-Reflexão ou Interpretação sem Sujeito? - Habermas, Intérprete de Freud" e "Hume, Freud, Skinner". Dos textos de 1968, anteriores a seu exílio político, "Linguagem e Existência em Guimarães Rosa" e "A Sereia Desmistificada".
Quanto ao primeiro bloco, intriga que a comparação reúna psicanálise e psicologia experimental. Mas a exposição do autor mostra a inesperada porosidade que permeia os dois campos. Vejamo-lo a partir da oposição entre os modelos freudiano e skinneriano. A fissura, diz o autor, se encontra no próprio sentido da palavra "análise", empregada por Freud na procura do que se oculta, mascara e distorce, e por Skinner, do que se mantém em "sua superfície patente e visível".
Não haveria, pois, senão antagonismo. A aproximação só será cabível a partir de um terceiro termo. Na exposição do autor, a questão é tratada menos abruptamente do que aqui pela verificação, na esquizoanálise de Guattari e Deleuze, de uma aproximação, talvez não intencional, das duas técnicas analíticas.
Mas o próprio Bento Prado não a desenvolve bastante. O âmago da questão está na crítica humiana da causalidade. Passagem capital: "Fala-se muito do "ceticismo" de Hume, mas se fala menos da positividade desse ceticismo (pois) a expulsão da racionalidade metafísica é condição da racionalidade experimental (...)". Ora, a expulsão da racionalidade metafísica interessa tanto à psicanálise quanto ao behaviorismo; expulsão propiciada pela redução humiana da causalidade "à idéia de relação constante", que, sem se confundir com a associação mecânica, remete a um "racionalismo meramente probabilístico". Nessa condição, diz citação de Skinner, os termos que substituem causa e efeito "meramente afirmam que eventos diferentes tendem a ocorrer ao mesmo tempo, em uma certa ordem" (grifo meu).
A "certa ordem", a "regularidade do comportamento humano", sem a recorrência de uma explicação que Kant chamaria "transcendente" (não transcendental!), seria suficiente para assinalar haver entre os campos adversos um ponto de contato. A homogeneidade da conduta, desligada da dogmática expectativa metafísica, se realizaria, ainda segundo Skinner, pela ocorrência do hábito "que desempenha essa função de princípio ativo que fixa e desdobra as sínteses passivas da associação". Certa correspondência então se estabelece e sua fonte é o saudável ceticismo de Hume, que funciona como meio de alerta para a epistemologia das ciências psicológicas e, de modo geral, para a função que o autor confia à filosofia. Em vez de palmatória simbólica, disposta a castigar os pobres "empiristas", ela se torna um estimulador de fluxos e circulações inesperadas.
Por outro caminho, já era essa a senda que o ensaio anterior abria. Nele, se tratava do projeto habermasiano de "recuperação" de Freud. Em "Conhecimento e Interesse" (1968), cujo desdobramento daria na "Teoria da Ação Comunicativa" (1981), Habermas interpreta a psicanálise como uma espécie de hermenêutica, cujo "ato de compreensão a que conduz é uma auto-reflexão". Como justificar a aproximação entre a hermenêutica, que pressupõe tornar cada vez mais compreensiva "uma intenção sempre consciente", e a psicanálise, que tem a deformação como lei interna do sistema simbólico? Não há um tertius aproximador. E a função da filosofia torna-se outra: declarar que a "recuperação" intentada por Habermas só podia levar à negação da descoberta da psicanálise.
Habermas "emenda" Freud com a teoria idealista do sujeito: a psicanálise teria o papel de ajudar a descobrir o distúrbio da linguagem e, desvelando recalques e repressões, permitir ao sujeito ter acesso à auto-reflexão saudável. Como já indica o título do ensaio, o autor opunha à tradição idealista do sujeito uno, capaz pela auto-reflexão de dominar suas representações, a interpretação do sujeito dissolvido pelo grande Outro (Lacan).
Não me furto, porém, de assinalar outra alternativa. Que sucederia se a releitura dos modernos localizasse, antes mesmo do idealismo alemão, a presença do sujeito não como uno, mas sim fragmentado? Deixando a hipótese em suspenso, tão-só acrescento: caso ela se mostre viável, ajudaria a romper a arrogância usual entre os filósofos -de que Bento Prado é exceção- e a superar a inferioridade do estatuto da arte (porque despojada de conceitos, a arte carece da palavra de filósofos e sociólogos).
Em vez de tentar desenvolver o que já ensaiamos em livro recente, tomemos a nomeação da hipótese apenas como expediente para entrarmos no segundo grande bloco do livro. No primeiro dos ensaios então ressaltados, o autor inicia com uma reflexão sobre "Grande Sertão: Veredas", de Guimarães Rosa, para vir daí a duas novelas do "Corpo de Baile". O ensaio começa pela reconstituição da situação de abertura do romance: um analfabeto passa a limpo sua vida diante de um interlocutor mudo e letrado.
Mas a leitura é logo corrigida: "A relação entre o letrado e o iletrado deixa (...) de figurar um contato entre duas humanidades separadas (...) para indicar uma relação interna do homem com o seu destino". Correlatamente, se no começo se falava em linguagem que entra em delírio, a afirmação é também corrigida: a fala de Riobaldo neutraliza a experiência corriqueira da linguagem.
As explicações rejeitadas supõem o abandono de uma interpretação de sabor sociológico no posfácio -Paulo Eduardo Arantes ainda tratará do "Grande Sertão" como "romance regionalista"- por outra em que primam mundo e linguagem. A mudança de ótica se aprofundará com as duas novelas. E o que diz do "Recado do Morro" vale para o universo rosiano: "As regras foram, sem aviso, subvertidas". O sujeito deixa de dar as cartas, para que o núcleo esteja em "aquilo que ele cala, discurso secreto e absoluto que está na raiz de todo e qualquer discurso explícito". O crítico deixa de ser aquele que subordina a cena ficcional à cena vivida para se tornar o que penetra nas dobras da imagem.
Não estranha que a abordagem de Roberto Schwarz, em "A Sereia e o Desconfiado" (1965), seja rejeitada. Dele dirá que, monista, opera "no interior do continuum que conduz da consciência imediata da existência (...) ao conhecimento das estruturas sociais que tornam possível e que produzem essa consciência".
Crítica demasiado rigorosa? Desde logo, não é uma crítica desqualificante. Para o autor, a posição de Schwarz é digna, pois instiga o pensamento. Tanto assim que é por sua escolha que Bento Prado escreve a primeira reflexão feita entre nós sobre o estatuto teórico da crítica literária. Por isso reduzir o que Bento Prado apresentava sobre Rosa ao equivalente do que Heidegger fizera com Hölderlin (ou Blanchot e Foucault com Mallarmé) é um despropósito.
Isso não significa que a visão da literatura pelo autor seja suficiente. Teria ele tido a possibilidade de ampliá-la se seu exame da concepção de Sartre e Ryle sobre a imaginação houvesse se desdobrado na consideração da ficcionalidade literária. Isso implicaria o exame das relações entre conceito e imagem, de como a segunda não é apenas o déficit do primeiro. Mas o autor parece haver se desinteressado por esse tipo de indagação.
Ante o abandono de um filósofo de sua estirpe, o risco que corremos não é tanto de que se perpetue o embate entre críticas sociológica e fundada no efeito da linguagem, pois as duas necessariamente não se opõem, mas sim que a crítica literária descambe na banalidade dos chamados "cultural studies".


Luiz Costa Lima é ensaísta, crítico e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ), autor de "Vida e Mímesis" (Ed. 34) e "Mímesis - Desafio ao Pensamento" (Civilização Brasileira), entre outros. Escreve mensalmente na seção "Brasil 502 d.C.".


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