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+ brasil 502 d.C.
A vizinhança do filósofo
Luiz Costa Lima
O livro de Bento Prado Jr. que
ora se reedita, "Alguns Ensaios
- Filosofia Literatura Psicanálise" (ed. Paz e Terra), antes publicado em 1985, reúne conferências e
ensaios apresentados em 1968 ou produzidos depois de 1977.
Grosso modo, compreende dois blocos: no mais antigo, a literatura é o termo
com que a filosofia se relaciona; no mais
recente, a psicanálise e a psicologia experimental (a divisão exclui os ensaios "A
Educação depois de 1968 ou Cem Anos
de Ilusão", "O Problema da Filosofia no
Brasil", a nota à tradução de "Arqueologia da Violência", de Pierre Clastres, e o
exercício de "historiografia imaginária"
do último texto). É de lamentar que a nova edição, embora expurgue erros da anterior, mantenha não datados alguns dos
textos e que a nota a "O Problema da Filosofia no Brasil" continue sem explicitar
por que o autor hoje discorda da posição
ali assumida.
De cada bloco trataremos de dois textos. Da preocupação mais recente do autor, escolhemos "Auto-Reflexão ou Interpretação sem Sujeito? - Habermas, Intérprete de Freud" e "Hume, Freud,
Skinner". Dos textos de 1968, anteriores
a seu exílio político, "Linguagem e Existência em Guimarães Rosa" e "A Sereia
Desmistificada".
Quanto ao primeiro bloco, intriga que
a comparação reúna psicanálise e psicologia experimental. Mas a exposição do
autor mostra a inesperada porosidade
que permeia os dois campos. Vejamo-lo
a partir da oposição entre os modelos
freudiano e skinneriano. A fissura, diz o
autor, se encontra no próprio sentido da
palavra "análise", empregada por Freud
na procura do que se oculta, mascara e
distorce, e por Skinner, do que se mantém em "sua superfície patente e visível".
Não haveria, pois, senão antagonismo.
A aproximação só será cabível a partir de
um terceiro termo. Na exposição do autor, a questão é tratada menos abruptamente do que aqui pela verificação, na
esquizoanálise de Guattari e Deleuze, de
uma aproximação, talvez não intencional, das duas técnicas analíticas.
Mas o próprio Bento Prado não a desenvolve bastante. O âmago da questão
está na crítica humiana da causalidade.
Passagem capital: "Fala-se muito do "ceticismo" de Hume, mas se fala menos da
positividade desse ceticismo (pois) a expulsão da racionalidade metafísica é
condição da racionalidade experimental
(...)". Ora, a expulsão da racionalidade
metafísica interessa tanto à psicanálise
quanto ao behaviorismo; expulsão propiciada pela redução humiana da causalidade "à idéia de relação constante",
que, sem se confundir com a associação
mecânica, remete a um "racionalismo
meramente probabilístico". Nessa condição, diz citação de Skinner, os termos
que substituem causa e efeito "meramente afirmam que eventos diferentes
tendem a ocorrer ao mesmo tempo, em
uma certa ordem" (grifo meu).
A "certa ordem", a "regularidade do
comportamento humano", sem a recorrência de uma explicação que Kant chamaria "transcendente" (não transcendental!), seria suficiente para assinalar
haver entre os campos adversos um ponto de contato. A homogeneidade da conduta, desligada da dogmática expectativa
metafísica, se realizaria, ainda segundo
Skinner, pela ocorrência do hábito "que
desempenha essa função de princípio
ativo que fixa e desdobra as sínteses passivas da associação". Certa correspondência então se estabelece e sua fonte é o
saudável ceticismo de Hume, que funciona como meio de alerta para a epistemologia das ciências psicológicas e, de
modo geral, para a função que o autor
confia à filosofia. Em vez de palmatória
simbólica, disposta a castigar os pobres
"empiristas", ela se torna um estimulador de fluxos e circulações inesperadas.
Por outro caminho, já era essa a senda
que o ensaio anterior abria. Nele, se tratava do projeto habermasiano de "recuperação" de Freud. Em "Conhecimento
e Interesse" (1968), cujo desdobramento
daria na "Teoria da Ação Comunicativa"
(1981), Habermas interpreta a psicanálise como uma espécie de hermenêutica,
cujo "ato de compreensão a que conduz
é uma auto-reflexão". Como justificar a
aproximação entre a hermenêutica, que
pressupõe tornar cada vez mais compreensiva "uma intenção sempre consciente", e a psicanálise, que tem a deformação como lei interna do sistema simbólico? Não há um tertius aproximador.
E a função da filosofia torna-se outra: declarar que a "recuperação" intentada por
Habermas só podia levar à negação da
descoberta da psicanálise.
Habermas "emenda" Freud com a teoria idealista do sujeito: a psicanálise teria
o papel de ajudar a descobrir o distúrbio
da linguagem e, desvelando recalques e
repressões, permitir ao sujeito ter acesso
à auto-reflexão saudável. Como já indica
o título do ensaio, o autor opunha à tradição idealista do sujeito uno, capaz pela
auto-reflexão de dominar suas representações, a interpretação do sujeito dissolvido pelo grande Outro (Lacan).
Não me furto, porém, de assinalar outra alternativa. Que sucederia se a releitura dos modernos localizasse, antes mesmo do idealismo alemão, a presença do
sujeito não como uno, mas sim fragmentado? Deixando a hipótese em suspenso,
tão-só acrescento: caso ela se mostre viável, ajudaria a romper a arrogância usual
entre os filósofos -de que Bento Prado é
exceção- e a superar a inferioridade do
estatuto da arte (porque despojada de
conceitos, a arte carece da palavra de filósofos e sociólogos).
Em vez de tentar desenvolver o que já
ensaiamos em livro recente, tomemos a
nomeação da hipótese apenas como expediente para entrarmos no segundo
grande bloco do livro. No primeiro dos
ensaios então ressaltados, o autor inicia
com uma reflexão sobre "Grande Sertão:
Veredas", de Guimarães Rosa, para vir
daí a duas novelas do "Corpo de Baile".
O ensaio começa pela reconstituição da
situação de abertura do romance: um
analfabeto passa a limpo sua vida diante
de um interlocutor mudo e letrado.
Mas a leitura é logo corrigida: "A relação entre o letrado e o iletrado deixa (...)
de figurar um contato entre duas humanidades separadas (...) para indicar uma
relação interna do homem com o seu
destino". Correlatamente, se no começo
se falava em linguagem que entra em delírio, a afirmação é também corrigida: a
fala de Riobaldo neutraliza a experiência
corriqueira da linguagem.
As explicações rejeitadas supõem o
abandono de uma interpretação de sabor sociológico no posfácio -Paulo
Eduardo Arantes ainda tratará do
"Grande Sertão" como "romance regionalista"- por outra em que primam
mundo e linguagem. A mudança de ótica
se aprofundará com as duas novelas. E o
que diz do "Recado do Morro" vale para
o universo rosiano: "As regras foram,
sem aviso, subvertidas". O sujeito deixa
de dar as cartas, para que o núcleo esteja
em "aquilo que ele cala, discurso secreto
e absoluto que está na raiz de todo e qualquer discurso explícito". O crítico deixa
de ser aquele que subordina a cena ficcional à cena vivida para se tornar o que
penetra nas dobras da imagem.
Não estranha que a abordagem de Roberto Schwarz, em "A Sereia e o Desconfiado" (1965), seja rejeitada. Dele dirá
que, monista, opera "no interior do continuum que conduz da consciência imediata da existência (...) ao conhecimento
das estruturas sociais que tornam possível e que produzem essa consciência".
Crítica demasiado rigorosa? Desde logo, não é uma crítica desqualificante. Para o autor, a posição de Schwarz é digna,
pois instiga o pensamento. Tanto assim
que é por sua escolha que Bento Prado
escreve a primeira reflexão feita entre
nós sobre o estatuto teórico da crítica literária. Por isso reduzir o que Bento Prado apresentava sobre Rosa ao equivalente do que Heidegger fizera com Hölderlin (ou Blanchot e Foucault com Mallarmé) é um despropósito.
Isso não significa que a visão da literatura pelo autor seja suficiente. Teria ele
tido a possibilidade de ampliá-la se seu
exame da concepção de Sartre e Ryle sobre a imaginação houvesse se desdobrado na consideração da ficcionalidade literária. Isso implicaria o exame das relações entre conceito e imagem, de como a
segunda não é apenas o déficit do primeiro. Mas o autor parece haver se desinteressado por esse tipo de indagação.
Ante o abandono de um filósofo de sua
estirpe, o risco que corremos não é tanto
de que se perpetue o embate entre críticas sociológica e fundada no efeito da
linguagem, pois as duas necessariamente
não se opõem, mas sim que a crítica literária descambe na banalidade dos chamados "cultural studies".
Luiz Costa Lima é ensaísta, crítico e professor da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da
Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ), autor de
"Vida e Mímesis" (Ed. 34) e "Mímesis - Desafio ao
Pensamento" (Civilização Brasileira), entre outros.
Escreve mensalmente na seção "Brasil 502 d.C.".
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