São Paulo, domingo, 29 de maio de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Ponto de fuga

Cosa mentale, cosa manuale

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Há júbilo nos formatos sem timidez que Fernando Vilela escolhe para suas xilogravuras. Há também uma certa mescla de severidade e de vigor nessas obras bem sustentadas pela forma. Há ângulos, há fronteiras traçadas. Estão longe, porém, de uma geometria abstrata. As linhas provêm de cortes retilíneos na matriz de madeira, e o entalhe, enérgico, guarda as marcas da violência. Depois, essas rupturas imprimem-se sobre o papel, garantindo ao contorno uma vibração concreta, mostrando a marca, nítida, de um desbaste que não foi acalmado pela lixa.
Algumas ranhuras, traçadas sempre em linha reta, intervêm nos procedimentos de construção. O gesto riscou ou talhou, impôs-se com autoridade, ignorando as resistências desiguais das fibras, deixando pequenos sinais de luta que terminam por transparecer no papel. Definiu as fronteiras de superfícies unidas pelo negro ou pelo vermelho, que são ou claros e opacos, ou fluidos, profundos, úmidos, segundo a saturação da tinta, segundo a pressão, mais forte, mais fraca, exercida sobre as grandes pranchas cujo tamanho impede o emprego de prensas. Os veios, nós, acidentes diversos, revelados pela serra, transparecem no resultado final, como sinais de uma vida ainda efervescente nesses cernes de tronco que viraram prancha.
Fernando Vilela é um jovem gravador de dons extraordinários. Mostra-se admirável na atual exposição da Galeria Virgílio (São Paulo [tel. 0/xx/11/3062-9446]). Certos artistas impõem uma concepção mental ao concreto com que fazem suas obras, para anulá-lo. Fernando Vilela não. Suas gravuras brotam do prazer causado pelo encontro da matéria e da idéia, da concepção e da mão que trabalha. Alcançam sempre um equilíbrio que se passa entre cosa mentale e cosa manuale.

Gênese
Fernando Vilela primeiro observa. As formas de sua invenção partem de um olhar que prefere copiar objetos de volumes bem definidos, presentes, afirmados, como um navio, um armário ou uma cadeira. Depois, depura suas observações pelo desenho. Simplifica, tende reduzir as formas às superfícies. Uma ascese que não significa afastamento da materialidade. Seus desenhos encontram nova substância na gravura.

Sixties
O Estúdio Jacarandá (São Paulo [tel.0/ xx/11/3082-7601]) presta uma bela homenagem a Irmgard Longman. Concentra-se num período preciso, reunindo telas, aquarelas e guaches dos anos de 1960 salvo, talvez, aqui e ali alguma exceção. São obras que falam a linguagem das abstrações bem dominadas, ricas em sensibilidade cromática fundidas à espessura das matérias. Era elegante e requintada a modernidade daqueles tempos. Buscava-se então plenitude, harmonia, que, como nas obras de Longman, podem acrescer-se de uma vida nobre e serena. Existe, em algumas de suas telas, como que a memória diluída de uma representação, de um personagem. O que se afirma, porém, é uma visualidade sem outras leis além das suas próprias, enfrentando o mundo em substratos sem nome.
Formas encorpadas por cores opacas se aglutinam, fraternizam pela proximidade, apóiam-se umas nas outras, rugosas, densas, ricas de um empastamento "físico", de uma espessura "materialista", em flutuação sobre o fundo. Não se transfiguram pela luz; voltam-se sempre para sua origem concreta, feita de matéria pictural. Determinam, ao mesmo tempo, cada uma, suas afirmações de intensidade, em contraste discreto, ou em integração surda. O olho descobre um prazer sensorial nessas gravitações secretas. É então que, por trás do espírito comum a uma época, emerge a invenção singular, oferecendo o sentimento do novo.

Outras
A exposição Longman, do Estúdio Jacarandá, integra os quadros num espaço luminoso e agradável. Oferece uma visão homogênea que é, porém, limitada no tempo e, em certo sentido, injusta. A artista pintou, mais tarde, na década de 70, obras figurativas de sentido forte. Elas entram em sintonia com as inflexões mais atuais das artes. Há também, recentes, telas que falam de folhagens amplas, de verdes densos. São forças que completariam um percurso mais rico.


Jorge Coli é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br


Texto Anterior: Os dez +
Próximo Texto: Biblioteca básica: Os Ensaios
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.