|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Organizador de livro sobre vinda de Debret ao Brasil fala sobre as impressões do artista na corte de d. João 6º
Uma filosofia no pincel
PHILIPPE-JEAN CATINCHI
Recordemo-nos do cativante
álbum "Rio de Janeiro, Cidade Mestiça" (Companhia das
Letras), que reunia os olhares
dos historiadores Serge Gruzinski e
Luiz Felipe de Alencastro, do romancista guineano Tierno Monénembo e aquele, mais antigo, de um
pintor formado na escola de David.
Parente e aluno do célebre mestre
neoclássico, Jean-Baptiste Debret
(1768-1848) integrou a "missão artística francesa" encarregada de fundar no Rio uma Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios, conforme pedido de dom João 6º.
Quando retornou à França, Debret
retomou suas aquarelas para a Academia de Belas-Artes de Paris. Ele as
reuniu em "Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil", verdadeira reportagem literária e gráfica publicada entre 1834 e 1839, fruto das observações e da documentação que acumulou nos 15 anos que passou no
Brasil (entre 1816 e 1831).
É dessa coletânea de litografias que
vieram as 70 reproduções do primeiro álbum. Mais especificamente,
das duas partes do estudo, sobre os
negros escravos e sobre a sociedade
branca e mestiça do Rio de Janeiro e
a corte real.
Estava faltando o tempo inaugural, consagrado aos índios do litoral
atlântico, "esquecimento" corrigido
hoje com "Les Indiens du Brésil" (Os
Índios do Brasil - Ilustrações e Comentários de Jean-Baptiste Debret,
Introduzidos por Jean-Paul Duviols,
ed. Chandeigne, 152 págs., 35 euros
-R$ 107).
Apesar da abolição da escravidão indígena, os mais
"bárbaros" eram condenados ao extermínio
|
Paralelamente à edição de "Un
Nouveau Monde" (Um Novo Mundo, 304 págs, 25 euros -R$ 76), coletânea de textos sobre as viagens de
Américo Vespúcio, traduzidas e comentadas por ele, Duviols nos apresenta a íntegra da primeira parte
dessa "Viagem Pitoresca", um olhar
singular lançado sobre o nascimento
da imagem de uma nação.
Pergunta - Se o desenho das armas,
dos adereços e dos elementos botânicos é marcado pela estética da Enciclopédia, a composição das cenas remete a um elogio ao "estado de natureza" e a uma visão do "bom selvagem" revisitada pela postura antiga
ou bíblica que é cara ao neoclassicismo. Será que Debret não passa de um
herdeiro do neoclassicismo -ou seu
desenho abre outras perspectivas?
Jean-Paul Duviols - "Pintor filósofo", Jean-Baptiste Debret "classificou" e comentou seus documentos
segundo critérios cronológicos. Seu
interesse pelos grupos indígenas
"primitivos" talvez não revele tanta
intensidade e penetração quanto os
textos de Auguste de Saint-Hilaire,
mas ele está estreitamente ligado à
descrição da sociedade brasileira
dos primeiros tempos da independência, e, sob muitos aspectos, é precursor da etnologia fundamentada
na observação e reflexão comparativas, na linha inaugurada no século
16 por Montaigne e Jean de Léry.
Pergunta - Como explicar a singular
composição da obra?
Duviols - O isolamento e a divisão
dos índios era de fato realidade, após
três séculos de colonização. Apesar
da abolição da escravidão indígena,
os mais "bárbaros" entre eles eram
condenados, mesmo voluntariamente, ao extermínio (executados
por índios "civilizados" ou por escravos negros) ou então à mestiçagem. Debret quis completar seu "estudo", dentro dos limites de um relatório da missão, com desenhos relativos à cultura material de alguns
grupos sobre os quais conseguira
reunir uma documentação.
Influenciado por Rousseau e Buffon, ele não podia ignorar o "paraíso
dos botânicos". Bougainville, quando de sua passagem pelo Rio de Janeiro, deve ter incentivado Commerson, que passava seus dias todos
trabalhando com plantas.
Pergunta - O que aconteceu com esse relatório erudito e pitoresco?
Duviols - A obra de Debret foi utilizada sistematicamente em todos os
estudos e ensaios sobre o Brasil, graças à qualidade e precisão de seus
desenhos. Mas sempre foi pouco conhecida no plano da escrita.
Pergunta - Encontramos as notas de
Debret sem comentários ou contrapontos que as atualizem. Isso foi feito
para evitar dar a última palavra a uma
ótica "levi-straussiana", cuja "tristeza" contradiz o nítido fascínio do pintor pela "inteligência bárbara"?
Duviols - A filantropia paternalista
do artista, herdeiro das Luzes, ainda
não questiona o observador ocidental. Lévi-Strauss se inscreve mais claramente na linha de Montaigne,
questionando o relativismo das culturas. Debret não está nesse nível. E
ele não manifesta a atenção particular do etnólogo contemporâneo.
Mesmo assim, registra um momento-chave da afirmação do Brasil como nação.
A íntegra deste texto foi publicada originalmente no "Le Monde".
Tradução de Clara Allain.
Texto Anterior: + autores: A erotização da morte Próximo Texto: O bunker virtual Índice
|