São Paulo, domingo, 29 de maio de 2005

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Organizador de livro sobre vinda de Debret ao Brasil fala sobre as impressões do artista na corte de d. João 6º

Uma filosofia no pincel

PHILIPPE-JEAN CATINCHI

Recordemo-nos do cativante álbum "Rio de Janeiro, Cidade Mestiça" (Companhia das Letras), que reunia os olhares dos historiadores Serge Gruzinski e Luiz Felipe de Alencastro, do romancista guineano Tierno Monénembo e aquele, mais antigo, de um pintor formado na escola de David.
Parente e aluno do célebre mestre neoclássico, Jean-Baptiste Debret (1768-1848) integrou a "missão artística francesa" encarregada de fundar no Rio uma Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios, conforme pedido de dom João 6º.
Quando retornou à França, Debret retomou suas aquarelas para a Academia de Belas-Artes de Paris. Ele as reuniu em "Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil", verdadeira reportagem literária e gráfica publicada entre 1834 e 1839, fruto das observações e da documentação que acumulou nos 15 anos que passou no Brasil (entre 1816 e 1831).
É dessa coletânea de litografias que vieram as 70 reproduções do primeiro álbum. Mais especificamente, das duas partes do estudo, sobre os negros escravos e sobre a sociedade branca e mestiça do Rio de Janeiro e a corte real.
Estava faltando o tempo inaugural, consagrado aos índios do litoral atlântico, "esquecimento" corrigido hoje com "Les Indiens du Brésil" (Os Índios do Brasil - Ilustrações e Comentários de Jean-Baptiste Debret, Introduzidos por Jean-Paul Duviols, ed. Chandeigne, 152 págs., 35 euros -R$ 107).


Apesar da abolição da escravidão indígena, os mais "bárbaros" eram condenados ao extermínio

Paralelamente à edição de "Un Nouveau Monde" (Um Novo Mundo, 304 págs, 25 euros -R$ 76), coletânea de textos sobre as viagens de Américo Vespúcio, traduzidas e comentadas por ele, Duviols nos apresenta a íntegra da primeira parte dessa "Viagem Pitoresca", um olhar singular lançado sobre o nascimento da imagem de uma nação.
 

Pergunta - Se o desenho das armas, dos adereços e dos elementos botânicos é marcado pela estética da Enciclopédia, a composição das cenas remete a um elogio ao "estado de natureza" e a uma visão do "bom selvagem" revisitada pela postura antiga ou bíblica que é cara ao neoclassicismo. Será que Debret não passa de um herdeiro do neoclassicismo -ou seu desenho abre outras perspectivas?
Jean-Paul Duviols -
"Pintor filósofo", Jean-Baptiste Debret "classificou" e comentou seus documentos segundo critérios cronológicos. Seu interesse pelos grupos indígenas "primitivos" talvez não revele tanta intensidade e penetração quanto os textos de Auguste de Saint-Hilaire, mas ele está estreitamente ligado à descrição da sociedade brasileira dos primeiros tempos da independência, e, sob muitos aspectos, é precursor da etnologia fundamentada na observação e reflexão comparativas, na linha inaugurada no século 16 por Montaigne e Jean de Léry.

Pergunta - Como explicar a singular composição da obra?
Duviols -
O isolamento e a divisão dos índios era de fato realidade, após três séculos de colonização. Apesar da abolição da escravidão indígena, os mais "bárbaros" entre eles eram condenados, mesmo voluntariamente, ao extermínio (executados por índios "civilizados" ou por escravos negros) ou então à mestiçagem. Debret quis completar seu "estudo", dentro dos limites de um relatório da missão, com desenhos relativos à cultura material de alguns grupos sobre os quais conseguira reunir uma documentação.
Influenciado por Rousseau e Buffon, ele não podia ignorar o "paraíso dos botânicos". Bougainville, quando de sua passagem pelo Rio de Janeiro, deve ter incentivado Commerson, que passava seus dias todos trabalhando com plantas.

Pergunta - O que aconteceu com esse relatório erudito e pitoresco?
Duviols -
A obra de Debret foi utilizada sistematicamente em todos os estudos e ensaios sobre o Brasil, graças à qualidade e precisão de seus desenhos. Mas sempre foi pouco conhecida no plano da escrita.

Pergunta - Encontramos as notas de Debret sem comentários ou contrapontos que as atualizem. Isso foi feito para evitar dar a última palavra a uma ótica "levi-straussiana", cuja "tristeza" contradiz o nítido fascínio do pintor pela "inteligência bárbara"?
Duviols -
A filantropia paternalista do artista, herdeiro das Luzes, ainda não questiona o observador ocidental. Lévi-Strauss se inscreve mais claramente na linha de Montaigne, questionando o relativismo das culturas. Debret não está nesse nível. E ele não manifesta a atenção particular do etnólogo contemporâneo. Mesmo assim, registra um momento-chave da afirmação do Brasil como nação.


A íntegra deste texto foi publicada originalmente no "Le Monde".
Tradução de Clara Allain.


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