São Paulo, domingo, 29 de maio de 2005

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A pesquisadora Maria Odila Leite da Silva Dias fala da reedição de "A Interiorização da Metrópole" e afirma que a historiografia brasileira está hoje mais sofisticada e mais comercializada

O mito da Independência

SYLVIA COLOMBO
EDITORA DO FOLHATEEN

O termo "interiorização da metrópole" é hoje um velho conhecido dos que se dedicam a estudar o processo de independência e de formação do Estado brasileiro.
Quando cunhou o conceito, em 1972, num ensaio hoje clássico na historiografia recente, a pesquisadora paulista Maria Odila da Silva Dias chamava a atenção dos historiadores para a necessidade de promover pesquisas sobre a Independência não só a partir do quadro das pressões externas pela substituição da política mercantilista mas também a partir da dinâmica econômica e das tensões sociais internas do Brasil.
Para ela, a presença da corte no Rio de Janeiro teria transferido de Lisboa para um ponto específico do país o papel de colonizar o resto do território. Assim, estudar a continuidade era tão importante quanto falar de ruptura. E a idéia de um embate ferrenho entre colônia e metrópole seria um mito a ser confrontado.
A idéia gerou polêmica e até hoje é vista com desconfiança por alguns setores acadêmicos. Por outro lado, frutificou em trabalhos que ajudaram a montar um cenário mais rico das transformações sociais e políticas que tiveram lugar naquela época.
Trinta e três anos depois, "A Interiorização da Metrópole e Outros Estudos" ganha nova edição. Em entrevista à Folha, a pesquisadora criticou o fato de a história ter se comercializado. "Hoje vemos muito trabalho água-com-açúcar, onde não há crítica", diz.
Dias é também autora de "Cotidiano e Poder em São Paulo no século 19" (1984), professora aposentada da USP e leciona atualmente na Pontifícia Universidade Católica de SP.

 

Folha - Em "A Interiorização da Metrópole", a sra. falava da necessidade de a historiografia se debruçar sobre as transformações na elite durante o processo de independência. Isso aconteceu?
Maria Odila Leite da Silva Dias -
Creio que o trabalho do historiador é sempre o de fazer um apanhado da historiografia, mostrar os caminhos que foram tomados e os que, por algum motivo, não foram explorados. Foi por isso que escrevi aquilo. Depois do artigo, muitos trabalhos apareceram e muitas lacunas foram preenchidas, mas não acredito que o conjunto tenha mudado muito.

Folha - Que exemplos destacaria?
Dias -
O tema do comércio de abastecimento, que era o pano de fundo para explicar as relações entre São Paulo e o sul de Minas na época, é um deles, que foi muito estudado no Rio de Janeiro por João Fragoso. Aqui em São Paulo, vários orientandos meus trabalharam aspectos importantes do processo de independência, como os motins e a importância dos comerciantes portugueses. Outros estudos importantes foram feitos, principalmente no Rio.


Passamos a ser metrópole de nós mesmos. A construção do Estado foi uma recolonização a partir do Rio

Folha - E o que mostraram esses trabalhos?
Dias -
Foram importantes para documentar o ódio latente entre ex-escravos, forros, mestiços, mulatos e o comércio português. Havia um verdadeiro apartheid na sociedade. A partir de "Interiorização da Metrópole", esse clima de tensão social passou a ser mais bem documentado. Também essa foi a grande contribuição do livro de Caio Prado Júnior ("Formação do Brasil Contemporâneo", 1942), que mostrava quão violenta era a sociedade de então.

Folha - Acredita que esses trabalhos tenham ajudado a desconstruir a idéia de que a Independência resultou de uma simples luta da colônia contra a metrópole?
Dias -
Bom, isso é um mito.

Folha - Mas é um mito que persiste entre o público comum, fora das universidades.
Dias -
Sim, nos livros de ensino. O conceito de "metrópole interiorizada" refere-se ao fato de que, a partir da independência, nós passamos a ser a metrópole de nós mesmos. A construção do Estado foi uma recolonização a partir do Rio. Mas essa idéia, por mais que esteja presente nos trabalhos acadêmicos, ainda não chegou, e talvez nunca chegue, aos livros de ensino. Vamos ter sempre as imagens de Tiradentes, da colônia quebrando os grilhões...

Folha - O conceito de "metrópole interiorizada" pode ser comparado com outras realidades da América Latina? Afinal, havia elite nos outros países.
Dias -
É importante levar em conta que esses outros países tinham um outro tipo de escravidão, a da população indígena. Enquanto aqui, nas áreas de café, havia muitos escravos e, por isso, a necessidade de controle, de poder autoritário. Além disso, as elites daqui, por estarem mais dispersas, precisavam de um pólo forte, ou em Lisboa ou no Rio.

Folha - Há hoje uma "desideologização" do ensino e da pesquisa, não é?
Dias -
Sim, às vezes no mau sentido, noutras no bom. No mau, porque vemos muito trabalho água-com-açúcar, onde não há crítica. E também se fazem mais coisas para vender. A história, de certa forma, se comercializou.

Folha - Como vê o futuro da pesquisa histórica no Brasil?
Dias -
Acho que o caminho do historiador é cada vez mais interdisciplinar, mais sofisticado. É preciso hoje um arsenal teórico muito forte para tornar significativos e críticos temas pequenos da vida cotidiana.
Há uma aproximação maior com a antropologia, a sociologia e deve continuar por mais tempo esse desapego aos grandes conceitos de explicação histórica. Existe um diálogo das necessidades sociais. Isso não quer dizer que essa história não seja igualmente militante, pois esse processo faz parte das tensões do mundo contemporâneo, de crise do Estado, dos partidos. A perspectiva de um novo modo de fazer política, totalmente descentralizado.

Folha - O que a multiplicidade de temas pode trazer?
Dias -
Esse pandemônio, ao mesmo tempo em que favorece um tipo de história amena que vende bem, facilita documentar sujeitos históricos que nunca apareceram. Isso só começou a aparecer depois que surgiu um modo de olhar não apenas as instituições, mas as relações sociais.

Folha - No que a sra. está trabalhando agora?
Dias -
Num estudo sobre as mulheres na República. Sempre temos a idéia de que, com a República e o fim do Império, as mulheres passaram a aparecer mais. Mas, na verdade, elas estavam massacradas entre as famílias e os negócios e tinham de improvisar papéis sociais.
Também há a questão do casamento. Não se casavam, por exemplo. Nessa época da República havia não só a obsessão de fazer com que as pessoas se mostrassem européias nas roupas e de fazer higienização mas também de forçar casamentos. Porque as pessoas viviam muito em concubinatos.


A Interiorização da Metrópole e Outros Estudos
168 págs., R$ 32 de Maria Odila Leite da Silva Dias. Ed. Alameda (r. Tucuna, 194, conjunto 31, CEP 05021-010, SP, tel. 0/xx/ 11/3862-0850).


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