São Paulo, domingo, 29 de maio de 2005

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"Cabo Josino Viloso", romance de Francisco Dantas sobre um militar pobre, ignorante e autoritário que vive no agreste, perde força porque não consegue se resolver entre o cordel e o tratado sociológico

Um herói sem caráter e definição

NELSON DE OLIVEIRA
ESPECIAL PARA A FOLHA

A denúncia das mazelas e da rapinagem, por meio da engenhosa sátira social, rendeu à literatura brasileira várias figuras memoráveis: Leonardo Filho, de Manuel Antônio de Almeida, Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, Macunaíma, de Mário de Andrade, Desabrigo e Cobrinha, de Antônio Fraga, João Grilo e Chicó, de Ariano Suassuna, entre outros.
O sergipano Francisco Dantas, aclamado autor do importante "Coivara da Memória" (Estação Liberdade, 1993), em seu novo romance faz uso do humor, do deboche e da ironia para fixar as peripécias de outro típico anti-herói brasileiro: o militar pobre, ignorante, bêbado, autoritário e atrapalhado. Vindo diretamente do agreste, cabo Josino Viloso é o nosso mais recente anti-herói sem nenhum caráter.
Escalado para ser o delegado do Alvide, pequeno vilarejo mal-afamado onde a violência e os desmandos imperam, o cabo Josino segue para lá disposto a fazer valer a lei e a ordem. O romance é narrado por Vieirinha, um dos moradores do local, que assim define o amigo: "Ele foi um desses tantos delegados deserdados da sorte e sem relógio, que nunca estão presentes à hora da precisão em que a raiva dos ofendidos estala num bate-boca".
Desengonçado e falador, a farda gasta e esfarrapada, a princípio a favor dos direitos humanos e do governo que não paga o seu salário, Josino não demora muito para se adaptar à nova situação. "Se não pode com eles junte-se a eles", eis o primeiro mandamento da caatinga. Logo o cabo está interpretando a lei em seu favor. Logo também está trocando rapapés com o jagunço Valenciano, "o valentão Ferrabrás mais afamado, que trazia um monte de crimes no costado".


O atual fracasso da vertente picaresca na literatura brasileira se deve a seu apego ao realismo narrativo

No pequeno texto de apresentação, o crítico Benedito Nunes comenta que "o viloso Cabo ensina-nos, de maneira altamente lúdica e jocosa, que nossa manha brasileira não é brinquedo, que, neste país de estrelado céu, boa vida e atividade rendosa se associam numa farsa a ser levada por todos" ("farse à mener par tous", Rimbaud). Porém, via de regra, na literatura contemporânea o humor, o deboche e a ironia só alcançam sua máxima potência quando a intenção do autor é provocar e inquietar.
Esse não é o caso, pois, seguindo outra linha literária, o novo romance de Francisco Dantas procura, antes de tudo, divertir e deleitar, como sempre fizeram os melhores folhetins. Intenção mais do que legítima, afinal, no mundo do entretenimento, seria pedir demais à literatura que não tentasse competir, por exemplo, com a TV e o cinema.
O que não funciona com perfeição no "Cabo Josino Viloso" é o que funciona muito bem em romances como "O Dragão", do cearense José Alcides Pinto, e "Meu Tio Roseno a Cavalo", do paranaense Wilson Bueno.
Essas duas narrativas, igualmente com sotaque e ambientadas muito longe dos centros urbanos, trazem o mesmo cuidado com a linguagem, o mesmo apego ao jocoso, mas sem o fundo fortemente moralista do livro de Dantas. Trata-se aqui de uma moral invertida e picaresca, mas estereotipada, que pode ser resumida no princípio da cordialidade oportunista, descoberto pelo protagonista ao longo de sua vida: o verdadeiro negócio da China é mesmo o situacionismo.
O nosso cabo teve a sabedoria cartesiana de adaptar-se ao Alvide, de somar a seu favor posturas contraditórias: o amor à própria pele e o respeito à autoridade do Alto Comando, o temor a Valenciano e o ardor patriótico travestido de civismo matuto. Porém o registro desses feitos apresenta, aqui e ali, os defeitos da mera caricatura.
No "Cabo Josino Viloso" o conflito entre a baixa e a alta culturas livrescas põe em risco o prazer da leitura. A briga entre o que nele é cordel (a malandragem e o faroeste caboclo) e o que é tratado sociológico (o painel da sociedade sertaneja) atrapalha a diversão e o deleite.
Em linhas gerais, o atual fracasso da vertente picaresca na literatura brasileira se deve ao seu apego aos ditames do realismo narrativo. No romance de Dantas, o excesso descritivo, a grande quantidade de pormenores, o respeito à cronologia e à linha reta anulam o efeito satírico de muitas passagens do livro. O humor se perde não só na tirada moralista mas também na multidão de detalhes, característica típica da literatura mais pretensiosa.

Nelson de Oliveira é autor de "Pequeno Dicionário de Percevejos" (ed. Lamparina).

Cabo Josino Viloso
152 págs., R$ 32 de Francisco J.C. Dantas. Ed. Planeta (al. Ministro Rocha Azevedo, 346, 8º andar, CEP 01410-000, SP, tel. 0/ xx/ 11/ 3088-2588).


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