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"Contos de Tenetz" traz a ficção onírica do búlgaro Yordan Raditchkov, um dos autores mais importantes de seu país, morto no ano passado
O Kafka dos camponeses
PAULO SCHILLER
ESPECIAL PARA A FOLHA
Em uma pequena aldeia búlgara, a cada movimento dos
personagens o tempo retrocede ao dia anterior. Somente a
imobilidade assegura a permanência do presente e o espectro do futuro. Toda vez que um gato salta sobre
o corpo de um defunto, a alma do
morto, em vez de migrar para o
mundo do além, transforma-se num
Tenetz, versão mais doce do tradicional vampiro, desejoso de ser útil
aos vivos.
Peixes que moram em árvores, um
hieróglifo que se eleva no céu com a
aurora, moscas que falam ao telefone, criaturas imaginárias devastadoras para o homem e para a natureza,
mortos que retornam invisíveis para
assombrar camponeses crédulos: a
coleção de contos de Yordan Raditchkov ("Contos de Tenetz") parece ter sido tecida por um Borges eslavo, mágico, inspirado em telas oníricas de Chagall.
O folclore, as superstições e a sabedoria da gente simples do campo
compõem um cenário em que volta
e meia irrompe inesperada a crítica
áspera à realidade contemporânea.
Nesses momentos, a linguagem poética é subvertida pela aparição da
imagem de Mao Tse-tung, pela evocação das duas grandes guerras ou
pela menção às cooperativas fomentadas pelo comunismo.
Raditchkov, também chamado de
"o Kafka de Sófia", nasceu em 1929 e
morreu no ano passado, aos 74 anos
de idade. Raditchkov, que nunca se
opôs à comparação com García
Márquez, deixou uma obra extensa
repartida entre narrativas de viagem, roteiros para cinema, novelas e
contos publicados em mais de 30
idiomas, além de cerca de uma dezena de peças de teatro apresentadas
em diversos países da Europa e nos
EUA. Com a sua morte, a Bulgária
perdeu o autor mais lembrado como
candidato ao que seria o primeiro
Prêmio Nobel de Literatura concedido a esse país.
Rumen Stoyanov, por mais de
uma vez adido cultural da Bulgária
no Brasil, e Anderson Braga Horta,
poeta, contista e crítico literário mineiro, assinam a tradução, que alcança momentos de grande inspiração. Stoyanov verteu para o búlgaro
os principais autores latino-americanos e inúmeros romancistas e
poetas brasileiros. A publicação de
"Contos de Tenetz" evidencia uma
vez mais a importância das traduções que nos aproximam da literatura de países culturalmente mais distantes de nós, carentes das máquinas
de propaganda dos poderosos.
Paradoxo
Para fugir do olhar controlador do
realismo socialista -uma vez que
escreveu grande parte de sua obra
antes da queda do Muro-, Raditchkov contrapôs ao "heroísmo revolucionário" o paradoxal e o absurdo. O
refúgio na sabedoria camponesa foi
a sua resposta a uma sofisticação
tecnológica que não parece resgatar
o homem de um provincianismo
crescente.
Um dos contos, "A Palavra", celebra a força da linguagem. "Eis o que
pode fazer a palavra -este grande
milagre- desde que saibamos botá-la a trabalhar. [...] Quando tudo o
mais cai de joelhos, a palavra é que
nos socorre." Raditchkov nos socorre da mediocridade cotidiana por
meio dessas narrativas alegóricas
que lemos com um sorriso nos lábios, antecipando o enigma que nos
espreita a cada parágrafo.
Paulo Schiller é psicanalista e tradutor, autor de "A Vertigem da Imortalidade" (Companhia das Letras).
Contos de Tenetz
125 págs., R$ 20
de Yordan Raditchkov. Tradução de Rumen
Stoyanov e Anderson Braga Horta. Ed. Thesaurus (SIG, quadra 8, lote 2.356, 1º andar,
CEP 70610-480, Brasília, DF, tel. 0/ xx/61/
344 3738).
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