São Paulo, domingo, 29 de maio de 2005

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Biografia de Torquato Neto condensa situações e fatos menos conhecidos da vida do poeta e compositor tropicalista, além de trazer textos inéditos

Um ícone lúcido e trágico

LIVIO TRAGTENBERG
ESPECIAL PARA A FOLHA

Biografia é um gênero difícil. Difícil de escrever e de ler.
Lendo a biografia do poeta e jornalista Torquato Neto [1944-72], "Pra Mim Chega" [ed. Casa Amarela, 234 págs., R$ 36], de Toninho Vaz, a gente tem a dimensão de como são difíceis ambas as coisas.
Por muitas vezes, ao longo da leitura, deu vontade de gritar: "Pra mim chega!".
O que já é um mérito do livro: não é laudatório, é incômodo. Isso basta?
Explico. Para quem curte a obra de Torquato, as situações biográficas, peripécias e relacionamentos de diferentes ordens esclarecem sobre sua personalidade, seu tempo, podendo até nos revelar detalhes, picardias, passagens pitorescas; mas ao final se dissipam como fumaça no tempo: um amontoado de camadas sob as quais ainda se esconde a personagem principal.

Apetite voyeur
Daí a dificuldade quanto ao gênero biografia. Está certo que a vida de Torquato Neto é um prato cheio para o apetite voyeur, folhetinesco. Mas, para ser fiel ao seu essencialismo, o gênero biográfico recolhe, inevitavelmente, seu espólio com olhos de passado. Esse olhar me parece que trai Torquato. Aqui não vai uma crítica ao livro em questão, mas ao próprio gênero, uma vez abordando um criador tão intenso e despojado como Torquato Neto.
Precisamos dissecar e entender suas dissonâncias e questionamentos. A posição ímpar e íntegra que ocupava na discussão pública, a forma como colocava suas idéias, que recusava a adesão e o compadrismo, uma recusa à inesgotável aptidão para a cooptação que nos assola, a política de grupos que se autopromovem e assim garantem sua sobrevivência na cena cultural. São recusas que reclamam a nossa reflexão.
Essas e outras perguntas talvez não pertençam ao universo da biografia; talvez daí advenha uma certa irritação na leitura, engasgando um "isso não me interessa!". Sou um péssimo leitor de biografias, talvez porque já esteja resignado com relação àquilo de que o ser humano é capaz. Assim, os temas "quentes" típicos das biografias, como revelações em torno da sexualidade e de comportamentos, intrigas etc., me parecem tão desinteressantes e, antes de mais nada, mais uma expressão da província em que estamos mergulhados. Mas o mundo é uma grande província...
O livro de Toninho Vaz tem como mérito o fato de que contextualiza de forma eficiente, informa ao leitor, condensando fatos, situações desconhecidas, mas, principalmente, publicando textos inéditos.
Mas ainda ecoa a pergunta ao final da leitura: o que significou e significa o mal-estar lírico essencial de Torquato, plantado no centro da cultura brasileira.
Pode-se abordá-lo por um viés folclorizante, do "poeta maldito", desajustado, que o transformou num ícone trágico. No entanto a leitura atenta de seus escritos nos oferece uma lucidez crítica quanto às formas e mecanismos em que estava e está construída a atividade cultural na sociedade brasileira que extrapola essa dimensão.
O mal-estar de Torquato era também quanto a essa situação. É esse aspecto que interessa, que o mantém atual. O mesmo mal-estar que acometeu criadores tão díspares como Kleist e Rimbaud, Qorpo-Santo e Jim Morrison, entre outros tantos.

Combatividade
Os fatos da vida interessam, uma vez que "a obra de Torquato guarda estreita relação com aspectos históricos e biográficos, estabelecendo um vínculo imprescindível com seu processo vital", como acentua Toninho Vaz na apresentação do livro; mas a combatividade na atuação e a qualidade poética de Torquato Neto mais estimulam que paralisam: nos confronta, para muito além da mi(s)tificação.
A minha geração conviveu com o magro volume "Os Últimos Dias de Paupéria" (1973), que influenciou muito e que, em sua concisão circunstancial, apresentava a essência da obra de Torquato, um catecismo do desassossego, nos mergulhando numa sensação permanente de mal-estar e desequilíbrio. A obra foi ampliada em 1982 e agora completada com a edição de "Torquato Neto -Torquatália" (Rocco) em 2004.
Cultura é feita de mal-estar, a civilização medra no mal-estar. "Pra Mim Chega" provoca um saudável mal-estar, aí reside sua maior qualidade intestina.


Livio Tragtenberg é compositor.

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