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Biografia de Torquato Neto condensa situações e fatos menos conhecidos
da vida do poeta e compositor tropicalista, além de trazer textos inéditos
Um ícone lúcido e trágico
LIVIO TRAGTENBERG
ESPECIAL PARA A FOLHA
Biografia é um gênero difícil.
Difícil de escrever e de ler.
Lendo a biografia do poeta
e jornalista Torquato Neto
[1944-72], "Pra Mim Chega" [ed. Casa Amarela, 234 págs., R$ 36], de Toninho Vaz, a gente tem a dimensão
de como são difíceis ambas as coisas.
Por muitas vezes, ao longo da leitura, deu vontade de gritar: "Pra
mim chega!".
O que já é um mérito do livro: não
é laudatório, é incômodo. Isso basta?
Explico. Para quem curte a obra de
Torquato, as situações biográficas,
peripécias e relacionamentos de diferentes ordens esclarecem sobre
sua personalidade, seu tempo, podendo até nos revelar detalhes, picardias, passagens pitorescas; mas
ao final se dissipam como fumaça no
tempo: um amontoado de camadas
sob as quais ainda se esconde a personagem principal.
Apetite voyeur
Daí a dificuldade quanto ao gênero
biografia. Está certo que a vida de
Torquato Neto é um prato cheio para o apetite voyeur, folhetinesco.
Mas, para ser fiel ao seu essencialismo, o gênero biográfico recolhe, inevitavelmente, seu espólio com olhos
de passado. Esse olhar me parece
que trai Torquato. Aqui não vai uma
crítica ao livro em questão, mas ao
próprio gênero, uma vez abordando
um criador tão intenso e despojado
como Torquato Neto.
Precisamos dissecar e entender
suas dissonâncias e questionamentos. A posição ímpar e íntegra que
ocupava na discussão pública, a forma como colocava suas idéias, que
recusava a adesão e o compadrismo,
uma recusa à inesgotável aptidão
para a cooptação que nos assola, a
política de grupos que se autopromovem e assim garantem sua sobrevivência na cena cultural. São recusas que reclamam a nossa reflexão.
Essas e outras perguntas talvez não
pertençam ao universo da biografia;
talvez daí advenha uma certa irritação na leitura, engasgando um "isso
não me interessa!". Sou um péssimo
leitor de biografias, talvez porque já
esteja resignado com relação àquilo
de que o ser humano é capaz. Assim,
os temas "quentes" típicos das biografias, como revelações em torno
da sexualidade e de comportamentos, intrigas etc., me parecem tão desinteressantes e, antes de mais nada,
mais uma expressão da província
em que estamos mergulhados. Mas
o mundo é uma grande província...
O livro de Toninho Vaz tem como
mérito o fato de que contextualiza de
forma eficiente, informa ao leitor,
condensando fatos, situações desconhecidas, mas, principalmente, publicando textos inéditos.
Mas ainda ecoa a pergunta ao final
da leitura: o que significou e significa
o mal-estar lírico essencial de Torquato, plantado no centro da cultura
brasileira.
Pode-se abordá-lo por um viés folclorizante, do "poeta maldito", desajustado, que o transformou num
ícone trágico. No entanto a leitura
atenta de seus escritos nos oferece
uma lucidez crítica quanto às formas
e mecanismos em que estava e está
construída a atividade cultural na
sociedade brasileira que extrapola
essa dimensão.
O mal-estar de Torquato era também quanto a essa situação. É esse
aspecto que interessa, que o mantém
atual. O mesmo mal-estar que acometeu criadores tão díspares como
Kleist e Rimbaud, Qorpo-Santo e
Jim Morrison, entre outros tantos.
Combatividade
Os fatos da vida interessam, uma
vez que "a obra de Torquato guarda
estreita relação com aspectos históricos e biográficos, estabelecendo
um vínculo imprescindível com seu
processo vital", como acentua Toninho Vaz na apresentação do livro;
mas a combatividade na atuação e a
qualidade poética de Torquato Neto
mais estimulam que paralisam: nos
confronta, para muito além da
mi(s)tificação.
A minha geração conviveu com o
magro volume "Os Últimos Dias de
Paupéria" (1973), que influenciou
muito e que, em sua concisão circunstancial, apresentava a essência
da obra de Torquato, um catecismo
do desassossego, nos mergulhando
numa sensação permanente de mal-estar e desequilíbrio. A obra foi ampliada em 1982 e agora completada
com a edição de "Torquato Neto
-Torquatália" (Rocco) em 2004.
Cultura é feita de mal-estar, a civilização medra no mal-estar. "Pra
Mim Chega" provoca um saudável
mal-estar, aí reside sua maior qualidade intestina.
Livio Tragtenberg é compositor.
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