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Marco da literatura do século 20 que influenciou as vanguardas em todo o mundo, inclusive no Brasil, "Zona" se inspirou na pintura de Picasso para refletir sobre o fazer poético e, ao mesmo tempo, decompor a cidade contemporânea em mitos novos e antigos
A FÁBULA DA MODERNIDADE
Silvana Amorim
especial para a Folha
Há 90 anos, às vésperas da Primeira Grande
Guerra, era publicada "Alcools" [Alcoóis], coletânea de poemas de Guillaume Apollinaire
(1880-1918), um marco para a poesia do século
20, e não apenas no contexto francês. Naquela Europa
que se armava e que acreditava na guerra, a internacional das artes da modernidade e da vanguarda é uma
realidade pulsante.
Poeta francês de ascendência ítalo-polonesa, nascido
em Roma, de pai desconhecido, amigo do espanhol Pablo Picasso, do italiano Marinetti e do suíço Blaise Cendrars, publicado em revistas e antologias estrangeiras,
alimentado pelo patrimônio cultural europeu e curioso
pelas inovações estéticas, Guglielmo Alberto Wladimiro Alessandro Apollinare de Kostrowitzky encarna,
melhor do que qualquer outro, o espírito cosmopolita.
Na esteira de Charles Baudelaire, exerceu a modernidade na literatura e foi mentor dos movimentos de vanguarda. Atento às rápidas mudanças que o novo ritmo
de vida do início do século 20 impingia, à transformação de conceitos pictóricos (como o cubismo, por
exemplo), ele soube captá-las e transpô-las para sua
obra, sem deixar de lado suas raízes simbolistas.
Esse romano naturalizado francês escreveu desde literatura pornográfica ("As 11 Mil Varas") até peças de
teatro (a mais conhecida é "Les Mamelles de Tirésias",
na qual aparece pela primeira vez a palavra "surrealismo"). O contato permanente com os pintores cubistas e
com jovens poetas que almejavam uma nova expressão
poética dirige seu interesse para os movimentos de vanguarda, como o futurismo e o cubismo. Dos poemas escritos nos anos de 1912 e 1913, entre eles "Zona", o próprio autor afirma que se trata de uma "estética totalmente nova".
O encontro com Picasso
Mas foi em 1907 que o
encontro maior se deu: nesse ano, quando Apollinaire
se depara com o quadro de Picasso "Les Demoiselles
d'Avignon" (As Senhoritas de Avignon), a surpresa suscitada pela tela vai servir-lhe de inspiração para inovar a
lírica do início do século: o poema que inaugura "Alcoóis" -"Zona"- foi sugerido justamente pelo quadro do pintor espanhol. Encantado com a nova tendência da pintura de Picasso, escreve no seu diário: "Admirável linguagem que nenhuma literatura pode indicar,
pois nossas palavras são feitas antecipadamente. Pobre
de mim!".
Além disso, a paisagem vertiginosamente mutante do
início do século, o desenvolvimento da tecnologia e das
ciências, a velocidade empreendida pelo trem ditam o
novo ritmo das cidades. Esse desenvolvimento "de objetos" marca presença constante na obra de Apollinaire,
e é prova de que ele é um autor voltado para sua época.
Porém o poeta não tem uma atitude radical em relação
ao passado nem quer queimar bibliotecas e execrar autores de outros séculos, como prega Marinetti, o mentor do futurismo. Se há uma palavra para qualificar a
obra de Apollinaire, essa seria equilíbrio.
O longo poema "Zona" (156 versos), alvo de inúmeros
estudos, é considerado, ao mesmo tempo, um comentário do fazer poético e um poema lírico. Para Apollinaire, o esplendor do mundo enriqueceu-se com uma
"beleza nova". Paris é o cenário central do poema. A
torre Eiffel, naquele momento símbolo de uma nova
era, se transforma em pastora das pontes que balem na
manhã. Os automóveis, hangares de porta-aviões, datilógrafas, sirenes, ônibus, a graça de uma rua industrial,
o gás, aeroplanos, máquinas em geral misturam-se freneticamente no delírio do poeta, que "viaja" em seus
versos até Marselha, Coblence, Praga, Roma e Amsterdã, entre outras cidades.
Essa presença de elementos citadinos, fruto da surpresa do autor diante de toda essa evolução e da variedade de novas "atrações" que tem o homem do início
do século, anuncia a poesia da máquina e da cidade moderna e servirá também à formulação da conferência de
1917, "L'Esprit Nouveau et les Poètes", espécie de manifesto fundador de uma estética da surpresa.
Lírica e narrativa
Em "Zona", Apollinaire leva ao
extremo os processos de fragmentação e simultaneidade. Em várias sequências fragmentadas, observam-se
ao mesmo tempo a simultaneidade e a desconstrução, a
decomposição do espaço-cidade, uma visão cubista e
futurista, uma das características da lírica contemporânea. Na verdade, todos os espaços que aparecem nomeados em "Zona" nada mais são do que a tradução de
um mesmo cenário simultâneo, fruto de um único
acontecimento exterior e interior. Se, por um lado, os
momentos líricos ocupam um espaço considerável no
poema, por outro podem ser encontradas nele características fabulares, de narrativa, quando, por exemplo, o
poeta compara a torre Eiffel a uma pastora ou quando
vê em Paris rodarem "des troupeaux d'autobus mugissants près de toi".
O poema remete a fatos da vida do poeta, como o
rompimento com Marie Laurencin, uma pintora que
lhe foi apresentada por Picasso, e a prisão equivocada à
qual Apollinaire foi submetido, acusado de ter roubado
a tela de Leonardo Da Vinci, a "Gioconda", do Museu
do Louvre. Traços modernos compõem essa nova lírica, como a ambiguidade, o jogo entre o "eu" e o "tu"
que designa alternadamente o poeta, épocas diferentes
justapostas. Esses expedientes dão ao poema uma visão
à distância do eu poético, que narra, do presente, os fatos vividos no passado. A fabulação também surge desse jogo: o poeta, em uma manhã, andando pela cidade
de Paris, apresenta o que vê e faz associações com o
pensamento, com a memória, que misturam ao presente fatos e momentos vividos em outros momentos e em
outros locais.
Desse modo, o que se tem é uma narrativa interior,
que contrasta com a exterior e com ela se entrelaça. O
que há de diferente nesse novo tipo de fabulação é o forte traço de modernidade desse procedimento, isto é, a
fábula é reconstituída costurando-se os fragmentos, gerando então uma espécie de narração interior, tão entrecortada quanto a própria memória. Além disso, corroborando o primeiro verso de "Zona", Apollinaire dá
nova roupagem aos mitos antigos, mesclando-os a mitos modernos. Esse procedimento resgata o passado e,
ao mesmo tempo, reveste o presente com novas características. Insólitas aproximações culminam quase no
final do poema, momento em que Apollinaire compara
o Cristo aos fetiches da Oceania e da Guiné, criando um
sincretismo interessante. É relevante dizer então que,
em "Zona", considerado um poema-símbolo da modernidade -e não é sem razão que ele abre a coletânea
mais importante de Apollinaire-, traços de lirismo e
de narratividade aparecem simultaneamente.
Leitura certa dos modernistas brasileiros, Apollinaire
foi e é igualmente importante para os poetas do hemisfério Sul e, nos meios acadêmicos, fundamental para a
compreensão da literatura dos séculos passado e atual.
O autor de "Zona" cria uma nova forma de expressão
que guiará toda a lírica que virá depois dele: torna-se tarefa difícil, para não dizer impossível, falar de modernidade e de lírica do século 20 sem citar o nome de Guillaume Apollinaire.
Silvana Vieira da Silva Amorim é professora de literatura francesa
na Unesp (Universidade Estadual Paulista) e acaba de lançar "Guillaume Apollinaire - Fábula e Lírica" (ed. Unesp).
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