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São Paulo, domingo, 29 de junho de 2003

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Marco da literatura do século 20 que influenciou as vanguardas em todo o mundo, inclusive no Brasil, "Zona" se inspirou na pintura de Picasso para refletir sobre o fazer poético e, ao mesmo tempo, decompor a cidade contemporânea em mitos novos e antigos

A FÁBULA DA MODERNIDADE

Silvana Amorim
especial para a Folha

Há 90 anos, às vésperas da Primeira Grande Guerra, era publicada "Alcools" [Alcoóis], coletânea de poemas de Guillaume Apollinaire (1880-1918), um marco para a poesia do século 20, e não apenas no contexto francês. Naquela Europa que se armava e que acreditava na guerra, a internacional das artes da modernidade e da vanguarda é uma realidade pulsante. Poeta francês de ascendência ítalo-polonesa, nascido em Roma, de pai desconhecido, amigo do espanhol Pablo Picasso, do italiano Marinetti e do suíço Blaise Cendrars, publicado em revistas e antologias estrangeiras, alimentado pelo patrimônio cultural europeu e curioso pelas inovações estéticas, Guglielmo Alberto Wladimiro Alessandro Apollinare de Kostrowitzky encarna, melhor do que qualquer outro, o espírito cosmopolita. Na esteira de Charles Baudelaire, exerceu a modernidade na literatura e foi mentor dos movimentos de vanguarda. Atento às rápidas mudanças que o novo ritmo de vida do início do século 20 impingia, à transformação de conceitos pictóricos (como o cubismo, por exemplo), ele soube captá-las e transpô-las para sua obra, sem deixar de lado suas raízes simbolistas. Esse romano naturalizado francês escreveu desde literatura pornográfica ("As 11 Mil Varas") até peças de teatro (a mais conhecida é "Les Mamelles de Tirésias", na qual aparece pela primeira vez a palavra "surrealismo"). O contato permanente com os pintores cubistas e com jovens poetas que almejavam uma nova expressão poética dirige seu interesse para os movimentos de vanguarda, como o futurismo e o cubismo. Dos poemas escritos nos anos de 1912 e 1913, entre eles "Zona", o próprio autor afirma que se trata de uma "estética totalmente nova".

O encontro com Picasso
Mas foi em 1907 que o encontro maior se deu: nesse ano, quando Apollinaire se depara com o quadro de Picasso "Les Demoiselles d'Avignon" (As Senhoritas de Avignon), a surpresa suscitada pela tela vai servir-lhe de inspiração para inovar a lírica do início do século: o poema que inaugura "Alcoóis" -"Zona"- foi sugerido justamente pelo quadro do pintor espanhol. Encantado com a nova tendência da pintura de Picasso, escreve no seu diário: "Admirável linguagem que nenhuma literatura pode indicar, pois nossas palavras são feitas antecipadamente. Pobre de mim!". Além disso, a paisagem vertiginosamente mutante do início do século, o desenvolvimento da tecnologia e das ciências, a velocidade empreendida pelo trem ditam o novo ritmo das cidades. Esse desenvolvimento "de objetos" marca presença constante na obra de Apollinaire, e é prova de que ele é um autor voltado para sua época. Porém o poeta não tem uma atitude radical em relação ao passado nem quer queimar bibliotecas e execrar autores de outros séculos, como prega Marinetti, o mentor do futurismo. Se há uma palavra para qualificar a obra de Apollinaire, essa seria equilíbrio. O longo poema "Zona" (156 versos), alvo de inúmeros estudos, é considerado, ao mesmo tempo, um comentário do fazer poético e um poema lírico. Para Apollinaire, o esplendor do mundo enriqueceu-se com uma "beleza nova". Paris é o cenário central do poema. A torre Eiffel, naquele momento símbolo de uma nova era, se transforma em pastora das pontes que balem na manhã. Os automóveis, hangares de porta-aviões, datilógrafas, sirenes, ônibus, a graça de uma rua industrial, o gás, aeroplanos, máquinas em geral misturam-se freneticamente no delírio do poeta, que "viaja" em seus versos até Marselha, Coblence, Praga, Roma e Amsterdã, entre outras cidades. Essa presença de elementos citadinos, fruto da surpresa do autor diante de toda essa evolução e da variedade de novas "atrações" que tem o homem do início do século, anuncia a poesia da máquina e da cidade moderna e servirá também à formulação da conferência de 1917, "L'Esprit Nouveau et les Poètes", espécie de manifesto fundador de uma estética da surpresa.

Lírica e narrativa
Em "Zona", Apollinaire leva ao extremo os processos de fragmentação e simultaneidade. Em várias sequências fragmentadas, observam-se ao mesmo tempo a simultaneidade e a desconstrução, a decomposição do espaço-cidade, uma visão cubista e futurista, uma das características da lírica contemporânea. Na verdade, todos os espaços que aparecem nomeados em "Zona" nada mais são do que a tradução de um mesmo cenário simultâneo, fruto de um único acontecimento exterior e interior. Se, por um lado, os momentos líricos ocupam um espaço considerável no poema, por outro podem ser encontradas nele características fabulares, de narrativa, quando, por exemplo, o poeta compara a torre Eiffel a uma pastora ou quando vê em Paris rodarem "des troupeaux d'autobus mugissants près de toi".
O poema remete a fatos da vida do poeta, como o rompimento com Marie Laurencin, uma pintora que lhe foi apresentada por Picasso, e a prisão equivocada à qual Apollinaire foi submetido, acusado de ter roubado a tela de Leonardo Da Vinci, a "Gioconda", do Museu do Louvre. Traços modernos compõem essa nova lírica, como a ambiguidade, o jogo entre o "eu" e o "tu" que designa alternadamente o poeta, épocas diferentes justapostas. Esses expedientes dão ao poema uma visão à distância do eu poético, que narra, do presente, os fatos vividos no passado. A fabulação também surge desse jogo: o poeta, em uma manhã, andando pela cidade de Paris, apresenta o que vê e faz associações com o pensamento, com a memória, que misturam ao presente fatos e momentos vividos em outros momentos e em outros locais.
Desse modo, o que se tem é uma narrativa interior, que contrasta com a exterior e com ela se entrelaça. O que há de diferente nesse novo tipo de fabulação é o forte traço de modernidade desse procedimento, isto é, a fábula é reconstituída costurando-se os fragmentos, gerando então uma espécie de narração interior, tão entrecortada quanto a própria memória. Além disso, corroborando o primeiro verso de "Zona", Apollinaire dá nova roupagem aos mitos antigos, mesclando-os a mitos modernos. Esse procedimento resgata o passado e, ao mesmo tempo, reveste o presente com novas características. Insólitas aproximações culminam quase no final do poema, momento em que Apollinaire compara o Cristo aos fetiches da Oceania e da Guiné, criando um sincretismo interessante. É relevante dizer então que, em "Zona", considerado um poema-símbolo da modernidade -e não é sem razão que ele abre a coletânea mais importante de Apollinaire-, traços de lirismo e de narratividade aparecem simultaneamente.
Leitura certa dos modernistas brasileiros, Apollinaire foi e é igualmente importante para os poetas do hemisfério Sul e, nos meios acadêmicos, fundamental para a compreensão da literatura dos séculos passado e atual. O autor de "Zona" cria uma nova forma de expressão que guiará toda a lírica que virá depois dele: torna-se tarefa difícil, para não dizer impossível, falar de modernidade e de lírica do século 20 sem citar o nome de Guillaume Apollinaire.


Silvana Vieira da Silva Amorim é professora de literatura francesa na Unesp (Universidade Estadual Paulista) e acaba de lançar "Guillaume Apollinaire - Fábula e Lírica" (ed. Unesp).


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