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São Paulo, domingo, 29 de junho de 2003

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MARILYN NÃO MORA MAIS AQUI

Andy Clarck - 31.mai.2001/Reuters
Sósias de Marilyn Monroe (1926-62) participam de evento em loja de Toronto, no Canadá



Joyce Carol Oates segue a fórmula da biografia pop em "Blonde", que retoma todos os clichês referentes à atriz de "Os Homens Preferem as Loiras"

O leitor quase desacorçoa ao se ver diante das mais de 800 páginas de "Blonde", de Joyce Carol Oates: nem a saga de Marilyn Monroe, de incontáveis volumes, nem seu tratamento, agora ficcional como o de Norman Mailer, justificam tal profusão. E ainda mais ao se deparar com pérolas de tradução como "ático", "lúrido" e "prona", decifráveis se as revertermos para o inglês. Apesar do subtítulo "romance", a autora embarca na voga da biografia pop, que focaliza astros de cinema e TV, cantores de música popular, esportistas, membros da realeza, assassinos seriais e terroristas, parecendo inesgotável. Os modelos são poucos. Aqui, é o chavão do martirológio sempre que Marilyn vem à baila -atriz bela e talentosa morre cedo de overdose-, apelando para o lado piegas de cada um.

Prostituição precoce
Não faltam: a bastardia; a mãe solteira no manicômio pela vida toda; a criação em orfanatos e lares adotivos; os maus-tratos e abusos sexuais; a prostituição precoce, os abortos e o casamento aos 17 anos; a carreira em troca de favores carnais; o mergulho na droga; o anseio jamais concretizado de maternidade; a morte aos 36 anos por suicídio, acidente ou homicídio (a autora prefere esta versão). O desejo de agradar e de ser amada garante a passividade da vítima, ao mesmo tempo em que constitui poderosa motivação para uma trajetória de artista de cinema. O leitor não pode deixar de lembrar dois depoimentos, provindos de pessoas pouco dadas à maledicência, que põem em xeque o martirológio. E são diferentes de alguns comentários, mencionados no livro, quando da morte da estrela, que a desancaram. Em primeiro lugar, as memórias de Laurence Olivier, protagonista e diretor de "O Príncipe e a Corista", de que a autora faz pouco, dizendo apenas que até ele acabou se rendendo à qualidade do desempenho da atriz. E não diz mais nada, mas o fato é que, na pena de Olivier, Marilyn era uma praga e não tinha consideração pelos colegas, deixando equipes de 200 pessoas de prontidão, chegando com quatro horas de atraso ou não aparecendo de todo. O que é corroborado pelos percalços de seu último trabalho, "Os Desajustados", quando procedia da mesma forma na locação do deserto, com calor de 40C. Foi por isso que a viúva de Clark Gable, astro do filme, já aos 60, que sofrera vários enfartes e logo teve mais um, de que não escapou, acusou-a de ter precipitado o desenlace. O outro depoimento é "Depois da Queda", peça de seu terceiro marido, Arthur Miller, cuja personagem central é uma diva, a exibir narcisismo, a clamar por ser reassegurada a cada instante de sua beleza e seus dotes, a exigir atenção 24 horas por dia; e mais os entorpecentes e as ameaças de suicídio. A autora justifica a guinada como efeito das drogas e consequente perda de pé na realidade; e o leitor vê, sem acreditar muito, a mártir se transformar em algoz. Na transição há pelo menos uma cena a reter, quando o presidente, exercitando a cafajestice Kennedy, humilha uma Marilyn deslumbrada por seu assédio e que a essa altura já perdera o controle.

Arcanos das celebridades
Sabe-se o quanto a biografia pop deve sua expansão em variedade, em multiplicação de objetos, em tiragens ao encolhimento da ficção e ao desaparecimento do enredo no romance. Até há algum tempo, era esse o refúgio da experiência vicária, do privilégio de viver imaginariamente outras vidas. Com os riscos que a vanguarda assumiu, o público leitor foi afugentado e passou a buscar a identificação com o herói, ou mesmo com o anti-herói, na biografia pop. Fácil de ler, desdobrando lugares-comuns, apelando para o sentimentalismo, prestando-se à fantasia de osmose com os arcanos das celebridades, permeável às delícias do voyeurismo, seu espaço parece cada vez maior.
Profissional laureada, a autora pratica aqui declaradamente a ficção. Mas como levá-la a sério quando escamoteia os nomes que todo mundo conhece à saciedade, chamando Arthur Miller de "o Teatrólogo"; o segundo marido, o astro do beisebol Joe DiMaggio, de "o Ex-Atleta"; o magnata dos estúdios Zanuck de "o sr. Z"? Se alguns podem agarrar-se mais ao anonimato, a autora, prevendo o impasse, avança algum dado decisivo.
O mais cômico é o que se passa com o maior ator de Hollywood à época, um gênio, de formosura peregrina, formado no método pelo Actors Studio, que depois engordou até a obesidade. Temendo que, mesmo com o fornecimento desses dados, o leitor não descubra quem é, já que sua presença no cancioneiro marilyniesco não está na boca do povo, ao contrário, é um dos raros trunfos deste livro, a autora passa a chamá-lo de Carlo; mas ainda é pouco e logo adiante vai chamá-lo várias vezes de... Marlon Brando.

Walnice Nogueira Galvão é professora titular de literatura na USP e autora de, entre outros livros, "Guimarães Rosa" (Publifolha) e "No Calor da Hora" (ed. Ática).


Blonde
828 págs., R$ 38,00 (cada volume) de Joyce Carol Oates. Trad. Luiz Antônio Aguiar. Ed. Globo (av. Jaguaré, 1.485, CEP 05346-902, São Paulo, SP, tel. 0/ xx/11/ 3362-2000).



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