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São Paulo, domingo, 29 de junho de 2003

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Dono de características contraditórias e avesso a grupos e correntes, autor de "Cultura e Política" e "Orientalismo" se consolida como exemplo de pensador errante

EDWARD SAID, UM INTELECTUAL FORA DO LUGAR

por Leyla Perrone-Moisés

A autobiografia de Edward W. Said, publicada em 1999, se intitula "Out of Place" [Fora de Lugar]. Said é, de fato, um caso à parte, não apenas por sua biografia, mas principalmente por ser um pensador independente de grupos e correntes. Ser difícil de situar já é uma primeira razão para que dele desconfiem. De um intelectual engajado, o que se pede é que seu lugar de palavra seja definido e estável com relação aos contextos que discute (não por acaso os ensaios de Sartre se abrigam sob o título de "Situações"). A mídia, assim como a polícia política, gosta de definir os intelectuais e escritores de modo sucinto. Mas toda apresentação rápida de Said é parcialmente falsa. Vejamos alguns exemplos: "Edward W. Said é um intelectual norte-americano". Sim, ele é cidadão americano desde a juventude e é professor da Universidade Columbia há quatro décadas. Mas também se pode dizer dele (e se diz): "Edward W. Said é um palestino exilado em Nova York". Sim, ele nasceu em Jerusalém quando essa cidade ainda pertencia à Palestina, teve de sair de lá quando foi criado o Estado de Israel; mas sua situação nada tem em comum com a dos exilados políticos ou com a dos emigrantes carentes de recursos materiais. Sua família emigrou "voluntariamente" e seu pai fez fortuna nos Estados Unidos. Edward estudou nas melhores escolas inglesas do Egito e, depois, na Universidade Harvard. Ora, os sociólogos têm dificuldades em lidar com um sujeito que não pode ser classificado por origem social, capital escolar e capital econômico. Um intelectual rico também é algo que desgosta a certa militância esquerdista, mesmo que o indigitado não seja pessoalmente culpado de sua riqueza. Como personagem, o que ele acaba sendo mesmo sem querer, Said reúne características contraditórias. A fortuna de sua família e sua brilhante carreira intelectual são contrabalançadas, para os adeptos da vitimologia, por uma leucemia com a qual ele luta desde 1991 (os sociólogos diriam: um estigma).

Preconceitos
Outra maneira de o "perdoar" consiste, nos comentários norte-americanos a seu respeito, em falar de sua "tremenda" capacidade de trabalho: livros, artigos, conferências e entrevistas aos borbotões. Também é ressaltada sua civilidade: "Urbano e sofisticado, Edward W. Said é, por muitos aspectos, o nova-iorquino quintessencial" ("The Progressive Magazine", novembro de 2001). Algo que surpreende e quase espanta é o fato de ele ser também pianista e musicólogo. Mas, apesar dessas "atenuantes", seu lugar indefinido incomoda. Seria curioso reunir os comentários norte-americanos acerca de Said e mostrar neles, como ele mesmo fez com os textos literários, os preconceitos subjacentes aos discursos. É justamente pelas peculiaridades de sua existência que ele conhece tão bem a condição de exilado, a qual dá título aos ensaios reunidos em "Reflexões sobre o Exílio". A condição de exilado, diz Said, "é terrível de experienciar, e sua tristeza essencial jamais pode ser superada". Entretanto o exílio foi voluntário e inspirador para muitos intelectuais e escritores dos dois últimos séculos. Segundo Adorno, a casa própria, depois dos horrores da Segunda Guerra, tornou-se uma mercadoria descartável, e o exílio é uma forma de fugir ao "mundo administrado". Referindo-se aos tempos atuais, George Steiner observa que, em nossa "civilização quase de barbárie", convém que os escritores sejam seres "sem casa e errantes entre as línguas". Ambos os autores são referências de Said -o qual, por sua vez, é o exemplo perfeito do intelectual errante. Said é defensor da causa palestina desde 1967. Suas reflexões sobre a questão se espalham por toda a sua obra, mas estão particularmente sintetizadas em outro livro também publicado agora entre nós: "Cultura e Política". Como militante da causa palestina, ele é odiado por muitos de seus compatriotas (americanos) conservadores e sionistas. Já teve seu escritório incendiado, seus familiares e ele mesmo recebem constantes ameaças de morte, e enfrentou uma campanha para que a Universidade Columbia o demitisse (o que não ocorreu). Mas, como ele condena o terrorismo -rompeu há muito com Arafat e a OLP [Organização pela Libertação da Palestina] e defende posições absolutamente laicas e antifundamentalistas-, também é criticado por intelectuais árabes.

Mobilidade de enunciação
Aijaz Ahmad, por exemplo, contestou o uso que Said faz da primeira pessoa do plural, que, segundo o crítico, é ambíguo e oportunista: "Qualquer leitura atenta do conjunto de sua obra mostraria como ele emprega estrategicamente palavras como "we" e "us" [nós] para referir, em contextos variados, palestinos, intelectuais do Terceiro Mundo, acadêmicos em geral, humanistas, árabes, árabe-americanos e cidadãos americanos em geral" ("In Theory", ed. Verso, 1992). Acontece que essa mobilidade de enunciação é não apenas autorizada por sua múltipla identidade cultural, mas é também reivindicada por Said como um modo legítimo de ser cidadão de muitas pátrias e de nenhuma, modo de ser conquistado por sua biografia e adequado a uma mundialização que ele deseja humanista e pacífica. A identidade é encarada por ele como um estorvo e um perigo. O nacionalismo, por exemplo, que ele define como "a filosofia da identidade transformada numa paixão coletivamente organizada", é necessário num primeiro tempo das nações, mas deve ser em seguida atenuado "para que a identidade saia em campo aberto e assuma seu lugar entre outras identidades humanas".

"Arriscar a identidade"
Suas considerações sobre o nacionalismo cultural são exemplares: "Fazer com que toda educação ou apenas parte dela seja subserviente a esse objetivo é limitar os horizontes humanos, sem justificativa intelectual ou mesmo política. Ao supor que os fins da educação são mais bem servidos se nos concentrarmos principalmente em nossa própria condição de separados, em nossa identidade étnica, nossa cultura e nossas tradições, nos colocamos ironicamente no lugar subalterno e inferior que a teoria racial do século 19 nos atribuiu e assim deixamos de compartilhar as riquezas gerais da cultura humana".

E suas observações sobre a universidade decorrem do mesmo princípio. O modelo de liberdade acadêmica, para ele, deve ser o migrante ou viajante: "Deveríamos considerar o conhecimento algo pelo qual devemos arriscar a identidade e então pensar na liberdade acadêmica como um convite para desistir da identidade, na esperança de compreender e talvez até assumir mais de uma". Com seu livro "Orientalismo" [Companhia das Letras], de 1979, ele antecipou toda uma corrente dos estudos culturais norte-americanos e depois mundiais, os estudos pós-coloniais. Ao estudar e demonstrar o modo como o Oriente aparece nas obras literárias do século 19 e início do 20, Said pôs a nu toda a odiosa ideologia do imperialismo britânico e europeu em geral. Mas só pôde escrever esse livro brilhante porque estava munido da artilharia conceitual que adquiriu nas escolas inglesas e americanas, assim como no vasto conhecimento que tinha da literatura, das artes e da filosofia ocidentais. Sua enunciação segura, mas tranquila, contrasta assim, flagrantemente, com a impostação frequentemente raivosa, simplificadora e demagógica de boa parte da produção teórico-crítica pós-colonial subsequente, pouco ciosa de fundamentar, com um saber que exige tempo, paciência e competência, afirmações que mais se aparentam aos manifestos e panfletos do que às obras de reflexão.

Conciliar antinomias
A característica mais conflituosa de Said consiste exatamente na junção de uma teoria crítica ocidental, eurocêntrica em seus princípios iluministas, com uma postura política anticolonial. Essa antinomia, que está na própria base dos estudos pós-coloniais, o faz declarar que o epíteto "humanista" provoca nele um sentimento misto de afeição e repulsa. Numa entrevista recente, ele declarou que seu maior problema intelectual era o de conciliar o conhecimento e o humanismo. Como efeito positivo, esse conflito confere à sua escrita uma inquietação permanente, uma ausência de arrogância decorrente da saudável tendência a encarar os problemas de vários ângulos. Finalmente, talvez a maior originalidade desse intelectual compromissado seja o fato de ele pertencer a uma área de saber cada vez menos reconhecida e prestigiada: a dos estudos literários. Foi estudando obras de autores ocidentais como Conrad, Kipling, Defoe, Loti, Mann e de não-ocidentais como Mahfouz, Idriss, Naipaul, Tayib Salih, Kanafani e uma infinidade de outros escritores da literatura migrante que Said constituiu não apenas a sua ampla visão do mundo, mas também a sua concepção de militância política. Podemos apenas lamentar que ele saiba pouco da literatura e da teoria latino-americanas, mas ninguém pode conhecer tudo, e o que ele conhece já é muito. A disciplina de que Said é titular, a literatura comparada, é uma decorrência do projeto romântico da "Weltliteratur" concebida por Goethe e, naturalmente, tributária de uma ideologia eurocêntrica. Os grandes inspiradores teóricos de Said, nessa disciplina, são os eruditos Curtius e Auerbach. Goethe concebia a literatura mundial como uma sinfonia; Said, intelectual de um mundo completamente transformado pelas grandes guerras, pelas viagens e migrações, pela globalização econômica e pela cultura massificada, prefere falar em contraponto. No terreno literário, a "mundialidade" é vista por ele como uma noção útil. Estabelecer relações entre obras e, através delas, entre os homens é uma maneira de "ampliar o contexto" e "fazer com que as culturas se alimentem umas às outras".

Formas certeiras
Esses truísmos humanistas, que correm sempre o risco de cair na retórica vazia, adquirem, na ensaística de Said, formas incisivas e certeiras. Como literário que é, ele desconfia da linguagem. Com relação ao conflito israelo-palestino, ele propõe o abandono de palavras desgastadas como "diálogo" e "paz" e sua substituição por "coexistência", "igualdade", "autodeterminação", "cidadania", "direitos". E, contrariamente aos "culturalistas", que usam os textos literários apenas como comprovações de suas teses acusatórias ou laudatórias, Said nunca perde de vista a especificidade dos estudos literários. E não cai na armadilha dos engajamentos nacionais-populares tão frequentes entre os terceiro-mundistas. Seu projeto não é o de exaltar obras, autores, etnias ou nações particulares, reivindicando, para os excluídos, lugares de honra no cânone hegemônico. Seu procedimento é o de colocar em relação e avaliar em pé de igualdade obras das mais diversas procedências.
Vale a pena citá-lo em extenso: "Quando se ligam obras entre si, elas são tiradas do esquecimento e da posição secundária à qual por todos os tipos de motivos políticos e ideológicos foram condenadas anteriormente. Portanto o que estou propondo é o oposto do separatismo e também o reverso do exclusivismo. É somente por meio do escrutínio dessas obras enquanto literatura, como estilo, como prazer e iluminação, que elas podem ser, por assim dizer, recolhidas e mantidas. De outro modo, serão consideradas apenas espécimes etnográficos informativos, apropriados para a atenção limitada de especialistas da área [...]. Uma grande parte da recente especulação teórica propôs que as obras de literatura são completamente determinadas por sua situação e que os próprios leitores estão totalmente determinados em suas reações por suas respectivas situações culturais, a tal ponto que nenhum valor, nenhuma leitura, nenhuma interpretação podem constituir algo além do mero reflexo de algum interesse imediato. Todas as leituras e toda a escrita são reduzidas a uma emanação histórica pressuposta".
Said recusa tanto o determinismo historicista quanto "a despreocupação etérea da crítica pós-axiológica" da chamada pós-modernidade. É na busca do compromisso entre o reconhecimento dos condicionamentos históricos e geográficos da obra literária e a avaliação estética com pressupostos universalistas que Said traça seu difícil percurso. Enquanto o mundo carecer de justiça e de beleza, a literatura tem uma função maior do que a de doutrinar ou distrair, e leitores humanistas como Said são indispensáveis.


Leyla Perrone-Moisés é professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e autora de, entre outros, "Altas Literaturas" e "Inútil Poesia" (Companhia das Letras).


Cultura e Política
160 págs., R$ 29,00
de Edward Said. Org. Emir Sader. Trad. Luiz Bernardo Pericás. Boitempo (r. Euclides de Andrade, 27, CEP 05030-030, SP, tel. 0/xx/ 11/3872-6869).

Reflexões sobre o Exílio e Outros Ensaios
352 págs., R$ 39,50
de Edward Said. Org. de Milton Hatoum. Trad. de Pedro Maia Soares. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 32, CEP 04532-002, SP, tel. 0/ xx/11/3707-3500).

Out of Place
336 págs., US$ 14,00
de Edward Said. Vintage Books (EUA).


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