|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
A "Relação do Piloto Anônimo" narra o fracasso da missão oriental da frota que descobriu o Brasil; desde 1946 o relato não é publicado na íntegra em língua portuguesa
O desastre de Cabral
JEAN MARCEL C. FRANÇA
especial para a Folha
A "Relação do Piloto Anônimo" é,
ao lado das cartas
de Pedro Vaz de
Caminha e de Mestre João, um dos
três testemunhos diretos do Descobrimento do Brasil que chegaram até nós.
O relato tem uma história curiosa. Foi primeiramente publicado
em italiano, na coleção organizada por Fracanzano Montalboldo e
intitulada "Paesi Novamente Retrovati et Novo Mondo de Alberico Vesputio Florentino Intitulato" (Vicenza, 1507, folhas 58 a 77,
capítulos 63 a 83). Montalboldo
diz ter traduzido um original em
português; todavia, não se conhece o seu paradeiro.
A primeira versão conhecida
nessa língua data de 1812 e é da
autoria de Trigoso de Aragão Morato. Essa retroversão, que veio a
público na "Coleção de Notícias
para a História e Geografia das
Nações Ultramarinas", baseou-se
numa versão italiana, publicada
por Ramusio Battista Giovanni,
em 1550, com o título "Navigationi del Capitano Pedro Alvares Cabral Scrita per un Piloto Portoghese et Tradotta di Lingua Portoghese in Italiana" (In: "Primo Volume della Navigationi et Viaggi...").
Ramusio é o primeiro a atribuir
a um piloto a autoria da relação
(cujo significado aqui é o de "relato"). Contudo, é muito pouco
provável que o autor desempenhasse esse ofício. A própria narrativa quase desautoriza tal suposição, pois é desprovida das observações de natureza técnica comuns em diários escritos por pilotos de navio.
Há quem defenda que o Giovanni Matteo Cretico, então núncio em Lisboa, é o autor do texto.
Cretico teria compilado ou traduzido uma narrativa anônima, remetendo-a, em seguida, ao cronista de Veneza, Domenico Malipiero. Daí a edição italiana de
1507. Muitas são, no entanto, as
restrições a essa suposição. A
principal delas é a de que o núncio
não dominava o português, sendo-lhe impossível compilar ou
traduzir um texto nesse idioma.
Mais plausível é a hipótese de William Greenlee, que, depois de
promover um cuidadoso levantamento dos homens alfabetizados
que retornaram com a armada cabralina, asseverou ser João de Sá,
escrivão da armada, o autor do
texto.
Incertezas à parte, a "Relação..."
é um documento incontornável
para os que querem conhecer um
pouco mais sobre a empresa marítima comandada por Cabral. É
verdade que, no referente ao Descobrimento do Brasil, a narrativa
pouco acrescenta à inspirada e
detalhista carta de Caminha (que,
aliás, morreu durante a viagem,
em Calicute): não ficamos a saber
mais nem sobre a viagem entre
Cabo Verde e a costa do Brasil,
nem sobre as características dos
nativos aí encontrados, nem tampouco sobre os primeiros contatos com esses nativos. O Anônimo limita-se a confirmar o que,
de forma bem mais colorida, descrevem as outras duas testemunhas do acontecimento.
O relato, no entanto, contrariamente às epístolas, não se detém
no achamento do Brasil. Ele segue
em frente com a armada e dá-nos
conta das muitas desventuras por
que passou Cabral e seus subordinados na viagem de ida e volta de
Lisboa a Calicute. Tal diferença
faz do texto atribuído a João de Sá
o único testemunho direto que
dispomos da segunda viagem dos
portugueses à costa da Índia, uma
viagem sobremodo importante,
pois tinha como fim realizar o que
Vasco da Gama não conseguira
na primeira (1497/98): estabelecer
relações comerciais permanentes
com a cidade de Calicute e firmar
a presença lusitana na região.
Não cabe aqui entrar em detalhes acerca de tão importante
aventura marítima. É indispensável salientar, todavia, que o conhecimento da empreitada cabralina no Índico, propiciado pela
"Relação...", não somente nos dá
uma idéia mais precisa da real dimensão que teve o Descobrimento do Brasil no processo de expansão marítima portuguesa, mas
também nos esclarece por que razão Cabral, quando retornou a
Lisboa, foi recebido muito mais
como o responsável por um desastre político e comercial do que
como o audaz descobridor de
uma rica e promissora terra.
Antes, porém, que o leitor siga a
acidentada navegação do fidalgo
Pedro Álvares Cabral (leia nas
págs. 5-5 a 5-10), convém dizer
uma ou duas palavras sobre a presente edição do relato.
Grosso modo, optei por uma estratégia bastante diferente daquela escolhida por Thomas Marcondes de Souza, que, em 1946, ao
apresentar a sua versão da narrativa -até aqui, a última edição
completa em língua portuguesa-, explica: "A nossa tradução
foi feita, tanto quanto possível, ao
pé da letra, sacrificando-se mesmo a forma literária pelo amor à
fidelidade ao texto original (...)".
A versão que ora apresento, embora modernizada, procura preservar com a máxima fidelidade
possível a peculiaridade das descrições feitas pelo autor. Contudo,
dado que desconhecemos o suposto original em português e que
o estilo é pouco cuidado na maior
parte das edições, não hesitei em
promover mudanças tanto na
pontuação quanto na ordem das
frases, de modo a facilitar a compreensão do texto e a tornar a sua
leitura mais acessível. Optei também por corrigir, sempre que pude identificá-los, os nomes de pessoas, coisas e localidades.
Jean Marcel Carvalho França é doutor em
literatura comparada e autor de, entre outros, "Visões do Rio de Janeiro Colonial" (José Olympio).
Texto Anterior: Brasil 500 d.c. - Bento Prado Jr.: A filosofia seminal de Bergson Próximo Texto: Ricardo Bonalume Neto: Tecnologia de mastros e velas Índice
|