São Paulo, Domingo, 29 de Agosto de 1999
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Tecnologia de mastros e velas

RICARDO BONALUME NETO
especial para a Folha

Os navios da esquadra de Pedro Álvares Cabral que estiveram nas costas brasileiras em 1500 eram algumas das mais sofisticadas máquinas disponíveis à humanidade naquela época. Eram a síntese da melhor tecnologia então existente, o "ônibus espacial" da era dos descobrimentos.
Tinham uma complexa tecnologia propulsora baseada em um conjunto de mastros e velas que proporcionava boa capacidade de manobra e movimentação em mar alto. Equipamentos de navegação como bússola e astrolábio facilitavam ao navio se afastar das costas. O armazenamento de víveres permitia que se percorressem longas distâncias. O armamento de canhões de carregar pela boca com pólvora e balas esféricas dava um poder de fogo sem rival no resto do planeta.
As grandes navegações portuguesas incluíam um misto de espírito de cruzada cristã com interesse mercantil. Para o empreendimento dar certo, era necessária uma base tecnológica adequada. Todos esses fatores estavam representados entre os cerca de 1.500 homens que tripulavam os 13 navios da frota cabralina.
A maneira como esses navios eram habitados, navegados e comandados resumia em um pequeno universo fechado a sociedade portuguesa da época. No comando supremo estavam os fidalgos aristocratas. Religiosos embarcados cuidavam de manter a bordo o enorme poder que a Igreja tinha em Portugal. Havia técnicos em navegação, como os pilotos, que eram as pessoas mais importantes a bordo depois do capitão -e ninguém podia interferir no seu julgamento sobre as manobras do navio. Seu local de trabalho era uma cadeira ao lado da "agulha de marear" (a bússola).
As técnicas de navegação não podiam ainda ser consideradas estritamente "científicas", como se usaria hoje a palavra; havia muito de empirismo no trabalho dos pilotos (por exemplo, só no século 18 seria possível ter uma determinação razoável da longitude). O famoso cosmógrafo-mor do reino, Pedro Nunes (1502-1578), achava os pilotos uns "ignorantes", segundo o historiador Luís de Albuquerque. Uma avaliação injusta, afirmou Albuquerque, pois muitos pilotos tinham dado provas de grande perícia náutica, "se bem que outros se mostrassem deficientemente preparados e merecessem a crítica".
Personagens importantes como capitães, pilotos e religiosos tinham bem mais espaço a bordo, localizado na parte de trás coberta do navio. Podiam até mesmo ter mobília e embarcar alimento fresco, como galinhas e porcos. Já os marinheiros e soldados comuns tinham de viver em espaços exíguos. Seus raros bens materiais eram principalmente panelas e pratos rústicos. A alimentação era monótona e pouco variou de 1500 a 1800, em Portugal ou em qualquer outro país europeu -carne salgada conservada em barris, biscoito duro, queijos e ervilhas.
No Brasil de hoje "caravela" virou sinônimo de qualquer navio a vela. Mas só três dos 13 navios com que Cabral partiu de Portugal mereciam ser assim chamados. Os outros dez eram naus (incluindo uma "naveta", ou pequena nau, para transportar mantimentos extras). Ironicamente, em 1500 as caravelas estavam saindo de moda. Caravelas eram navios menores, em geral com apenas dois mastros. Além disso, não tinham os altos "castelos" de popa e proa das naus, isto é, áreas cobertas à frente e atrás dos navios. Tinham apenas um pequeno castelo à popa e suas velas podiam ser latinas (triangulares) ou quadradas (caso em que são chamadas de "caravelas redondas", dado o efeito que uma vela quadrangular produz ao ser enfunada pelo vento). Já as naus tinham várias cobertas (conveses abaixo do convés principal) e três mastros.
Por serem mais ágeis e terem capacidade de navegar em ventos vindos de um maior leque de direções do que seria possível com as naus, as caravelas eram as embarcações por excelência para os descobrimentos. Com elas os portugueses foram explorando a costa da África para o sul, até Bartolomeu Dias dobrar em 1488 o cabo da Boa Esperança e mostrar a rota para o Oriente.
Pouco se sabe como eram de fato esses navios. Comentando a evidência disponível, o historiador Francisco Contente Domingues é categórico: "Nada sabemos de concreto quanto ao traçado da caravela latina do século 15". Só no final do século 16 é que surgem descrições mais confiáveis.
Uma vez traçada a rota para a Índia, para poder explorá-la comercialmente os portugueses passaram a empregar as mais pesadas -e mais bem artilhadas- naus. Foi por isso que a esquadra de Pedro Álvares Cabral as tinha em maior quantidade.
Cabral era basicamente um líder militar. A artilharia relativamente moderna de frotas pequenas como a dele ajudaram Portugal a dominar o Oceano Índico por quase um século contra os veleiros locais menos artilhados. O "Piloto Anônimo" faz um interessante relato de um combate entre uma pequena caravela e um navio indiano bem maior -vencido pela caravela. A evolução técnica continuaria ampliando o fosso tecnológico entre europeus e asiáticos, passando-se desses navios de emprego geral (usados para a guerra e o comércio) para os navios construídos especificamente para o combate, os galeões e as naus-de-linha-de-batalha.
Mesmo deixando de lado a possibilidade de combate, sair de Lisboa rumo à Índia ou ao Brasil era uma loteria. Embarcações precárias e superlotadas, fome, doenças e naufrágios faziam com que menos da metade dos tripulantes chegasse ao destino. De 1497 a 1653, um em cada cinco navios enviados à Índia se perdeu no mar, um atestado eloquente de quanto custou para Portugal tomar a dianteira na exploração do resto do mundo.


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