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"Vieram ao encontro da embaixada várias mulheres com uns vasos plenos de fogo, dentro dos quais eram lançados vários perfumes"
EM MELINDE
De como o presente e a carta do rei de Portugal foram entregues ao rei de Melinde
Alcançamos Melinde no dia 2
de agosto do referido ano. No lugar, estavam ancoradas duas naus
provenientes de Cambaia, cada
uma com capacidade para 200 tonéis. Os seus cascos eram bem feitos e de boa madeira, madeira
amarrada com cordas -eles não
utilizam pregos- e untada com
uma mistura que tem muito incenso. Tais embarcações, que vinham negociar da parte da Índia,
tinham castelos somente na popa.
Logo que chegamos, o rei mandou presentear-nos com carneiros, galinhas, gansos, limões e laranjas -as melhores que existem
no mundo. Tínhamos, em nossas
naus, alguns homens com escorbuto, a quem essas laranjas fizeram bem. Quando ancoramos em
frente à terra, o capitão mandou
disparar todas as bombardas, embandeirou as naus e enviou à terra
dois feitores do rei -um dos
quais apto a falar mouro, isto é,
árabe- a fim de indagar como
estava o rei e informá-lo de que,
no outro dia, seria enviada à sua
presença uma embaixada com
uma carta que o rei de Portugal
lhe remetera. O rei demonstrou
grande prazer com a nossa chegada e pediu que o feitor que falava
árabe ficasse em terra.
No dia seguinte, o rei enviou à
nau do capitão dois mouros muito honrados, que sabiam falar árabe. Por meio deles, mandava-lhe
dizer que a sua presença lhe aprazia e que não hesitasse em solicitar, como se estivesse em seu país,
tudo de que tivesse necessidade,
pois ele e todo o seu reino estavam
a serviço do rei de Portugal. O capitão decidiu, então, mandar para
terra a carta e o presente que o rei
de Portugal destinara ao monarca
local. O presente consistia no seguinte: uma rica sela; um par de
cabeçadas esmaltadas para um
cavalo; um par de estribos e um
par de esporas em prata esmaltada e dourada; um peitoral para a
sela, com correias e guarnições
carmesins muito ricas; um cabresto trabalhado com fio de ouro
para o dito cavalo; duas almofadas de brocado e outras duas de
veludo carmesim; um tapete fino;
um pano de arrás e duas peças de
pano escarlate (presente que, em
Portugal, valeria mais de 1.000 ducados); e ainda uma peça de cetim
carmesim e uma peça de tafetá
vermelho. Foi decidido em conselho que o feitor-mor, Aires Corrêa, em companhia de muitos homens principais e ao som de
trombetas, iria à terra levar o presente e a carta. Quando do desembarque, o rei mandou que todos
os seus principais fossem receber
os nossos. A caminho da residência real, situada na praia do porto,
vieram ao encontro da embaixada várias mulheres com uns vasos
plenos de fogo, dentro dos quais
eram lançados vários perfumes.
Daí exalavam odores que pareciam impregnar a terra. E assim a
embaixada entrou na casa do rei,
que a recebeu sentado num trono
e rodeado por muitos dos mouros
principais. O rei alegrou-se muito
quando lhe foi dado o presente e a
carta, que vinha escrita em árabe
de um lado e em português do outro. Depois de ler a missiva, o soberano comentou algo com os
mouros que o rodeavam e todos
demonstraram grande contentamento. Deram, em seguida, um
grande grito, rendendo graças a
Deus por terem como amigo tão
grande rei e senhor como o rei de
Portugal. Imediatamente, o rei
mandou trazer armas e peças de
seda e as entregou a Aires Corrêa,
pedindo-lhe que, enquanto as
naus estivessem ali ancoradas,
permanecesse em terra, pois tinha
grande prazer na sua companhia.
O feitor-mor respondeu que não
podia atendê-lo sem antes consultar o capitão. O rei mandou, então, que um cunhado seu fosse,
com um anel, solicitar a autorização do capitão e comunicar-lhe
que mandasse buscar em terra as
provisões e a água de que necessitasse. A nova deixou o capitão
muito contente.
Aires Corrêa foi instalado num
aposento muito confortável e recebeu, exceto pão, artigo que não
é consumido nessas plagas, tudo
aquilo de que tinha necessidade, a
saber: carneiro, galinha, arroz, leite, manteiga, mel e frutas de diversas qualidades. Corrêa permaneceu três dias em terra, conversando frequentemente com o rei
acerca das coisas de Portugal e do
rei nosso senhor. O rei dizia-lhe
sempre que teria muito prazer em
encontrar-se com o capitão. Corrêa explicou-lhe que o capitão tinha ordens de não desembarcar e
que a única forma de se encontrarem seria nos batéis, como havia
sido feito em Quilôa. A princípio
o monarca repudiou essa idéia,
mas Corrêa tanto fez que ele acabou por aceitá-la. O capitão foi,
então, avisado e rapidamente
aprontou os seus batéis, deixando
as naus em segurança. O batel em
que seguia tinha uma cobertura
extensa, de finíssimo tecido escarlate, sob o qual iam escondidos alguns homens armados. O rei, por
sua vez, mandou preparar dois
batéis semelhantes, também munidos de coberturas, e ordenou
que seu cavalo fosse arreado à
maneira portuguesa. Não havia,
porém, entre eles ninguém que o
soubesse fazer, e os nossos homens tiveram de ajudá-los.
No dia combinado, o rei saiu de
sua casa e desceu uma escada, ao
pé da qual a gente mais rica e honrada do lugar o aguardava. Essas
pessoas traziam um carneiro e, logo que o rei montou, trataram de
sacrificá-lo e atirá-lo ao chão para
que o cavalo real passasse sobre
ele. Quando isso se deu, todos soltaram um grito alto e forte. A gente do lugar assim procede por cerimônia e encantamento.
Em Zanzibar tem-se o mesmo
costume. A conversa teve finalmente lugar, e o capitão fez saber
ao rei que desejava partir, mas
que tinha necessidade de um piloto que o guiasse até Calicute. O rei
prometeu-lhe que providenciaria
um, despediu-se e partiu. Logo
que desembarcou, o rei mandou
Aires Corrêa levar a bordo muita
carne e frutas para o capitão, bem
como um piloto guzerate, pertencente a uma das embarcações de
Cambaia que se encontrava no
porto.
Antes de partir, o capitão desembarcou dois condenados portugueses: um deveria ficar em
Melinde e outro seguiria para
Cambaia em uma das naus referidas. No dia 7 de agosto, levantamos âncora e iniciamos a travessia do golfo de Calicute.
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