São Paulo, domingo, 29 de setembro de 2002

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Juan José Saer

O escritor argentino analisa as invenções formais e o alcance universal de um conto de Guimarães Rosa

Meus tios narradores

Embora tenha sido publicado pela primeira vez em 1961, em revista ["Senhor"], "Meu Tio o Iauaretê" [reunido no volume "Estas Estórias", em 1969], de Guimarães Rosa, foi escrito antes de "Grande Sertão: Veredas", que apareceu em 1956. Haroldo de Campos, já em 1967, opinava que "Meu Tio..." constitui o ponto alto dos experimentos de Guimarães com a prosa narrativa. Evocando Ovídio e citando Ezra Pound, Haroldo de Campos afirma que o texto incorpora "o momento mágico da metamorfose". O tradutor francês do livro, Jacques Thiérot, cita-o no prefácio de sua elaborada versão: "Já não é a história que cede o primeiro plano à palavra, e sim a palavra que, impondo-se no primeiro plano, configura o personagem e a ação para reconstituir a história. O conto é um longo monólogo-diálogo (o diálogo está subentendido, pois só o protagonista pergunta e responde) de um caçador de onças, perdido na solidão das Gerais, que recebe em seu rancho a visita inesperada de um viajante cujos companheiros se perderam". Vale acrescentar que, entre as múltiplas ambiguidades desse texto singular, a presença do visitante silencioso não é a menor: se o leitor de início acredita que o protagonista realmente se perdeu no sertão, aos poucos começa a se perguntar se não teria chegado ali com o objetivo de matar o monstro em seu esconderijo, como Teseu o Minotauro no centro do labirinto. O caçador, um caboclo pago por um fazendeiro para matar onças e que a princípio cumpre sua tarefa sem nenhum problema, vai entrando imperceptivelmente na aura de suas vítimas, que exercem sobre ele um crescente fascínio, a tal ponto que não apenas se arrepende dos seus crimes e deixa de matá-las, mas começa a conviver com elas e acredita que o adotaram: "Mas eu sou onça. Jaguaretê tio meu, irmão de minha mãe, tutira". Esta palavra, em tupi, significa tio materno, de modo que o caçador, para definir seu parentesco com as onças, reivindica uma filiação matrilinear, comum a muitas culturas, em que os irmãos da mãe substituem o pai nas várias etapas da educação das crianças, aprendizagem, iniciação, integração ao grupo etc. Essa filiação matrilinear com a onça evocada pelo caçador implica, sem dúvida, uma volta às suas origens, não num retrocesso biológico, mas numa ordem cultural, porque seu pai biológico é justamente um branco, e a onça pertence ao âmbito cultural de sua mãe índia.

Alcance universal
Apesar do minucioso trabalho do tradutor, boa parte da riqueza linguística de "Meu Tio o Iauaretê", como as múltiplas ressonâncias que certos vocábulos devem despertar no leitor brasileiro, escapa ao leitor estrangeiro, e muitas de suas conotações devem ser restituídas ou explicadas em notas ao final do livro, algumas redigidas pelo próprio Guimarães, que constituem verdadeiros suplementos poéticos ao texto, como a explicação do termo "vereda" que faz por carta ao seu tradutor italiano [Edoardo Bizzarri". Mas a situação narrativa e suas implicações culturais permanecem intactas e têm um alcance universal. Quanto à narração propriamente dita, as modulações rítmicas do monólogo, o esclarecimento progressivo da trama, a alternância da narrativa com a constante irrupção de sobressaltos afetivos e emotivos por meio de interjeições, onomatopéias e de uma espécie de monólogo interior que por momentos se manifesta em voz alta e se transforma em solilóquio, bem como as repetições e o sutil entrelaçamento temático, tudo isso dá ao texto uma evidência artística imediata. Talvez os momentos poéticos mais intensos sejam aqueles em que o caçador evoca as onças: uma inusitada riqueza sensorial, mais do que pelas evidentes associações eróticas, pela variedade de sensações táteis, olfativas, visuais, auditivas e até gustativas, uma diversidade de texturas e de cores na descrição da pele da onça, uma prosa fluida, macia e ao mesmo tempo elástica, para expressar seus movimentos, lembram por momentos a opulência descritiva dos poetas decadentistas ou o bestiário onírico e a selva imaginária do Aduaneiro Rousseau, criando um contraste incomum com a paisagem e os personagens tão imediatamente realistas. Por último, o tema da metamorfose é tratado com a ambiguidade exata que, desde Kafka, entre outros, o gênero fantástico recomenda, deixando pairar uma indefinição de sentido entre os fatos efetivos e sua possível interpretação metafórica. Assim, a transformação do caçador é sem dúvida psicológica e cultural, mas não necessariamente física, assim como ocorre também em outros contos fantásticos latino-americanos do mesmo período ("Axolotle", de Julio Cortázar, por exemplo).

A fatalidade biológica
A especificidade brasileira não anula, mas antes enriquece, o alcance universal do texto, pois expressa com o sabor único de um idioma, uma época e um lugar um conflito que é constante em todo tipo de sociedade. Seu achado mais singular é essa filiação matrilinear reivindicada pelo caçador, podendo-se detectar na substituição do pai biológico por um ou vários tios maternos uma tentativa de superar a fatalidade biológica por meio de um parentesco que constitui uma autêntica instituição social e cultural. Mas seria um equívoco interpretar essa filiação como uma suposta regressão indigenista ou naturista, uma vez que ela expressa, através do narrador -que, vale lembrar, é um matador contratado para exterminar onças-, uma tentativa de reconciliação, em que homens, animais e paisagem são englobados numa síntese mais rica que o conflito que os opõe. Ao mesmo tempo em que o caçador se animaliza, as onças vão se tornando mais humanas, com traços individuais, não apenas físicos, mas também psicológicos, e até nomes próprios. Apesar de sua evidente ferocidade, o caçador também desperta nossa compaixão, pois sua mestiçagem representa para ele a mesma carga que para o minotauro significa a conformação monstruosa resultante de uma cópula "contra natura". Mas vale a pena imaginar o que teria acontecido se, em determinado momento, o monstro de Creta, repudiando o coito bestial, tivesse reconhecido sua estirpe nos jovens que eram enviados de Atenas para o sacrifício, em vez de devorá-los.

A filiação de Dostoiévski
Os momentos mais fecundos da cultura são aqueles em que, recusando a fatalidade biológica ou uma tradição muito rígida que às vezes se pretende tão inexorável quanto essa fatalidade, certos grupos ou indivíduos reivindicam uma nova filiação. Para não provocar a indignação de nenhum etnólogo profissional com essas extrapolações, nos limitaremos à narrativa, citando, por exemplo, o caso de Dostoiévski. Como se sabe, seu pai, que morreu assassinado, foi para ele uma fonte inesgotável de problemas morais, psicológicos e físicos. Na condição de escritor, ele opõe a essa fatalidade familiar uma filiação própria, pessoal, uma filiação cultural semelhante à do caçador de Guimarães Rosa. Seus tios narradores se chamavam Gogol, Cervantes, Shakespeare, Homero. Ao transportá-lo para um mundo maior e mais flexível que o da sua fatalidade biológica e familiar, eles não só o salvaram, mas o tornaram um dos seus, apto a transmitir não apenas uma visão própria, mas também, como eles, uma tradição renovada. Ele mesmo se transformou, por sua vez, na divergência possível, capaz de arrancar o mundo do seu estúpido determinismo.


Juan José Saer é escritor e ensaísta argentino, autor de, entre outros, "O Enteado" (Iluminuras) e "Ninguém Nada Nunca" (Companhia das Letras).
Tradução de Sergio Molina.


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