São Paulo, domingo, 29 de outubro de 2000

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Paranóias virtuais

Slavoj Zizek

Nos últimos dias de 1999, em todo o mundo (ocidental), as pessoas foram bombardeadas com numerosas versões de uma mesma mensagem, que encenava perfeitamente a cisão fetichista: "Sei muito bem disso, mas...". Nas grandes cidades, os inquilinos recebiam cartas dos administradores imobiliários, dizendo-lhes que não havia nada com que se preocupar, que tudo estava bem, mas que de qualquer modo seria melhor encher a banheira de água e preparar um estoque de comida e velas; os bancos diziam aos clientes que seus depósitos estavam em segurança, mas que de qualquer modo seria melhor que providenciassem algum dinheiro vivo e tirassem extratos bancários impressos; até mesmo Rudolph Giuliani, prefeito de Nova York, que repetidamente acalmara seus cidadãos quanto às providências que tomara, acabou passando o Ano Novo no bunker de concreto sob o World Trade Center, a salvo de armas químicas e biológicas.

Sinistra obsessão
Qual a causa de tanta ansiedade? Uma não-entidade que atendia por "bug do milênio". Será que já nos demos conta de como é sinistra nossa obsessão pelo bug? E de como essa obsessão revela muita coisa sobre nossa sociedade? Não apenas o bug foi criado pelo homem, como ainda é possível localizar com precisão sua origem: graças à imaginação limitada dos primeiros programadores, as máquinas digitais estúpidas não sabiam como ler o "00" à meia-noite do fim de ano (1900 ou 2000?). Essa simples limitação da máquina bem podia ser a causa, mas a distância entre a causa e seus efeitos potenciais era incomensurável. As expectativas iam da tolice à tragédia, pois nem sequer os especialistas sabiam com certeza o que aconteceria: talvez o colapso total dos serviços públicos, talvez coisa nenhuma (como de fato aconteceu). Mas será que estávamos lidando apenas com a ameaça de uma simples pane mecânica? É claro que a rede digital se materializa em chips e circuitos, mas se deve ter em mente que todo esse aparato supostamente "sabe" alguma coisa: supostamente ele corporifica um certo conhecimento, e foi esse conhecimento, ou melhor, sua falta, que deu origem a todas as preocupações. O bug do milênio confrontou-nos, na verdade, com o fato de que nossa vida "real" é regulada por uma ordem virtual de conhecimento objetivado cuja pane pode ter consequências catastróficas. Jacques Lacan chamava esse conhecimento objetivado (a substância simbólica do nosso ser, a ordem virtual que regula o espaço intersubjetivo) de "o grande Outro". Uma versão mais popular e paranóica da mesma noção é a Matriz do filme homônimo dos irmãos Wachowski. O que de fato nos ameaçava sob o nome de bug do milênio era a suspensão da Matriz. Por aí vemos como o filme estava certo: a realidade em que vivemos é regulada pela rede digital invisível e onipotente, a tal ponto que seu colapso pode causar uma desintegração global "real". O que foi, então, o bug do milênio? Talvez o penúltimo exemplo do que Lacan chamava de "pequeno objeto a", uma minúscula partícula de poeira que dá corpo à falha no interior do grande Outro, da ordem simbólica. E aqui a ideologia entra na história: o bug é o objeto sublime da ideologia. O próprio termo é revelador em vista de seus quatro sentidos: uma falha ou um defeito; uma doença, como um vírus de gripe; um inseto; um fanático. Essa flutuação do sentido leva a cabo a mais elementar das operações ideológicas: uma simples falta ou falha é imperceptivelmente transformada numa doença, que é então alocada em uma causa positiva, um "inseto" perturbador dotado de uma certa atitude psíquica (o fanatismo), uma pane puramente negativa adquire assim existência positiva na figura de um fanático a ser exterminado como um inseto... e assim mergulhamos fundo na paranóia. Metáfora animal Por volta do fim de 1999, o principal periódico de direita da Eslovênia estampou a seguinte manchete: "Será mesmo um perigo ou só uma farsa?", insinuando que certos círculos financeiros obscuros estavam propalando o pânico do "bug do milênio" a fim de usá-lo em alguma gigantesca trapaça... Aliás, o "bug", o besouro, não era mesmo a melhor metáfora animal para a imagem anti-semita do judeu, um inseto daninho que introduz degeneração e caos na vida social, a verdadeira causa oculta de todos os antagonismos sociais? Numa jogada que espelha simetricamente a paranóia direitista, Fidel Castro, tão logo se tornou claro que não havia bug nenhum, que as coisas seguiriam adiante, denunciou o pânico do bug como conspiração promovida pelas grandes companhias de computadores, destinada a fazer com que as pessoas comprassem máquinas novas. E com efeito, quando se tornou claro que o bug fora um alarme falso, ouviram-se acusações de toda parte: devia haver alguma razão para tanto barulho por nada, algum interesse oculto (financeiro) que havia propalado o perigo, não é possível que simplesmente todos os programadores tenham feito o mesmo erro tremendo! O tema da discussão transformou-se então em um típico dilema pós-paranóico: houve mesmo um bug, cujas consequências catastróficas foram evitadas graças às cuidadosas medidas preventivas, ou será que não havia nada, de modo que as coisas podiam ter seguido adiante sem os bilhões de dólares gastos com as tais medidas? Eis aí, mais uma vez, o "pequeno objeto a", o vazio que "é" o objeto-causa do desejo, em sua forma mais pura: um certo "nada", uma entidade sobre a qual não se sabe se "realmente existe" ou não e que, assim mesmo, como o olho de um furacão, causa uma comoção gigantesca a seu redor.

Socializar a rede
Sendo assim, talvez possamos concluir com uma modesta idéia marxista: uma vez que a rede digital afeta a todos, uma vez que ela já é a rede que regula nossa vida cotidiana até mesmo em suas facetas mais comezinhas, como o suprimento de água, ela deveria ser socializada de um modo ou de outro. A digitalização de nossas vidas cotidianas torna realmente possível um controle à maneira do "Big Brother", diante do qual a velha supervisão da polícia secreta comunista é uma primitiva brincadeira de criança.
Aqui, mais do que nunca, deve-se insistir que a melhor reação a essa ameaça não é a retirada para alguma ilha de privacidade, mas a socialização mais vigorosa do espaço cibernético.


Slavoj Zizek é filósofo esloveno, professor de cultura popular e de teoria lacaniana no Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana, autor de "Eles Não Sabem O Que Fazem" e "Um Mapa da Ideologia". Escreve mensalmente na seção "Autores" do Mais!.
Tradução de Samuel Titan Jr.


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