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Paranóias virtuais
Slavoj Zizek
Nos últimos dias de 1999, em todo o mundo (ocidental), as
pessoas foram bombardeadas
com numerosas versões de
uma mesma mensagem, que encenava
perfeitamente a cisão fetichista: "Sei
muito bem disso, mas...".
Nas grandes cidades, os inquilinos recebiam cartas dos administradores imobiliários, dizendo-lhes que não havia nada com que se preocupar, que tudo estava bem, mas que de qualquer modo seria
melhor encher a banheira de água e preparar um estoque de comida e velas; os
bancos diziam aos clientes que seus depósitos estavam em segurança,
mas que de qualquer modo seria
melhor que providenciassem algum dinheiro vivo e tirassem extratos bancários impressos; até
mesmo Rudolph Giuliani, prefeito
de Nova York, que repetidamente
acalmara seus cidadãos quanto às
providências que tomara, acabou
passando o Ano Novo no bunker
de concreto sob o World Trade
Center, a salvo de armas químicas
e biológicas.
Sinistra obsessão
Qual a causa de tanta ansiedade? Uma não-entidade que atendia por "bug do
milênio". Será que já nos demos
conta de como é sinistra nossa obsessão pelo bug? E de como essa
obsessão revela muita coisa sobre
nossa sociedade? Não apenas o bug foi
criado pelo homem, como ainda é possível localizar com precisão sua origem:
graças à imaginação limitada dos primeiros programadores, as máquinas digitais estúpidas não sabiam como ler o
"00" à meia-noite do fim de ano (1900 ou
2000?).
Essa simples limitação da máquina
bem podia ser a causa, mas a distância
entre a causa e seus efeitos potenciais era
incomensurável. As expectativas iam da
tolice à tragédia, pois nem sequer os especialistas sabiam com certeza o que
aconteceria: talvez o colapso total dos
serviços públicos, talvez coisa nenhuma
(como de fato aconteceu).
Mas será que estávamos lidando apenas com a ameaça de uma simples pane
mecânica? É claro que a rede digital se
materializa em chips e circuitos, mas se
deve ter em mente que todo esse aparato
supostamente "sabe" alguma coisa: supostamente ele corporifica um certo conhecimento, e foi esse conhecimento, ou
melhor, sua falta, que deu origem a todas
as preocupações. O bug do milênio confrontou-nos, na verdade, com o fato de
que nossa vida "real" é regulada por uma
ordem virtual de conhecimento objetivado cuja pane pode ter consequências
catastróficas.
Jacques Lacan chamava esse conhecimento objetivado (a substância simbólica do nosso ser, a ordem virtual que regula o espaço intersubjetivo) de "o grande Outro". Uma versão mais popular e
paranóica da mesma noção é a Matriz do
filme homônimo dos irmãos Wachowski. O que de fato nos ameaçava sob o nome de bug do milênio era a suspensão da
Matriz. Por aí vemos como o filme estava
certo: a realidade em que vivemos é regulada pela rede digital invisível e onipotente, a tal ponto que seu colapso pode
causar uma desintegração global "real".
O que foi, então, o bug do milênio? Talvez o penúltimo exemplo do que Lacan
chamava de "pequeno objeto a", uma
minúscula partícula de poeira que dá
corpo à falha no interior do grande Outro, da ordem simbólica. E aqui a ideologia entra na história: o bug é o objeto sublime da ideologia.
O próprio termo é revelador em vista
de seus quatro sentidos: uma falha ou
um defeito; uma doença, como um vírus
de gripe; um inseto; um fanático. Essa
flutuação do sentido leva a cabo a mais
elementar das operações ideológicas:
uma simples falta ou falha é imperceptivelmente transformada numa doença,
que é então alocada em uma causa positiva, um "inseto" perturbador dotado de
uma certa atitude psíquica (o fanatismo), uma pane puramente negativa adquire assim existência positiva na figura
de um fanático a ser exterminado como
um inseto... e assim mergulhamos fundo
na paranóia.
Metáfora animal
Por volta do fim
de 1999, o principal periódico de direita
da Eslovênia estampou a seguinte manchete: "Será mesmo um perigo ou só
uma farsa?", insinuando que certos círculos financeiros obscuros estavam propalando o pânico do "bug do milênio" a
fim de usá-lo em alguma gigantesca trapaça... Aliás, o "bug", o besouro, não era
mesmo a melhor metáfora animal para a
imagem anti-semita do judeu, um inseto
daninho que introduz degeneração e
caos na vida social, a verdadeira causa
oculta de todos os antagonismos sociais?
Numa jogada que espelha simetricamente a paranóia direitista, Fidel Castro,
tão logo se tornou claro que não havia
bug nenhum, que as coisas seguiriam
adiante, denunciou o pânico do bug como conspiração promovida pelas grandes companhias de computadores, destinada a fazer com que as pessoas comprassem máquinas novas. E com efeito,
quando se tornou claro que o bug fora
um alarme falso, ouviram-se acusações
de toda parte: devia haver alguma razão
para tanto barulho por nada, algum interesse oculto (financeiro) que havia propalado o perigo, não é possível que simplesmente todos os programadores tenham feito o mesmo erro tremendo!
O tema da discussão transformou-se
então em um típico dilema pós-paranóico: houve mesmo um bug, cujas consequências catastróficas foram evitadas
graças às cuidadosas medidas preventivas, ou será que não havia nada, de modo que as coisas podiam
ter seguido adiante sem os bilhões
de dólares gastos com as tais medidas? Eis aí, mais uma vez, o "pequeno objeto a", o vazio que "é" o
objeto-causa do desejo, em sua
forma mais pura: um certo "nada",
uma entidade sobre a qual não se
sabe se "realmente existe" ou não e
que, assim mesmo, como o olho de
um furacão, causa uma comoção
gigantesca a seu redor.
Socializar a rede
Sendo assim, talvez possamos concluir com
uma modesta idéia marxista: uma
vez que a rede digital afeta a todos,
uma vez que ela já é a rede que regula nossa vida cotidiana até mesmo em suas facetas mais comezinhas,
como o suprimento de água, ela deveria
ser socializada de um modo ou de outro.
A digitalização de nossas vidas cotidianas torna realmente possível um controle à maneira do "Big Brother", diante do
qual a velha supervisão da polícia secreta
comunista é uma primitiva brincadeira
de criança.
Aqui, mais do que nunca, deve-se insistir que a melhor reação a essa ameaça
não é a retirada para alguma ilha de privacidade, mas a socialização mais vigorosa do espaço cibernético.
Slavoj Zizek é filósofo esloveno, professor de cultura popular e de teoria lacaniana no Instituto de
Sociologia da Universidade de Liubliana, autor de
"Eles Não Sabem O Que Fazem" e "Um Mapa da
Ideologia". Escreve mensalmente na seção "Autores" do Mais!.
Tradução de Samuel Titan Jr.
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