São Paulo, domingo, 29 de outubro de 2000

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+ memória

Saudades de Cláudio Abramo

Gilberto Vasconcellos
especial para a Folha

Considero-me sortudo na vida porque, quando jovem, privei com o jornalista Cláudio, nono andar da Folha, 1977. Fui por ele convidado a exercer a função de editorialista. Doutorado em ciências sociais pela USP, tinha 27 anos e trabalhava como professor horista (essa aberração profissional) na Fundação Getúlio Vargas. Minha tese em sociologia era sobre o integralismo. Escrevi um artigo intitulado "Última Flor do Fáscio?". No mesmo dia em que saiu publicado o artigo, recebi um telefonema engraçado de Cláudio Abramo, dizendo que eu era o único acadêmico que sabia escrever. Estava posto o convite para ajudá-lo. "Você vai pagar o meu psicanalista?" Ele me respondeu: "Dinheiro não é comigo". Detalhe é que eu nunca frequentei psicanalista algum. Antes ou depois. Quando fui conhecê-lo no jornal, fiquei bastante impressionado com a sua simpatia e inteligência. Era delicioso ouvir Cláudio Abramo falando sobre a Revolução Russa. Em meio aos editoriais, dissertava sobre os caminhos e descaminhos da revolução de 1917 ou senão sobre o uso do ponto e vírgula na literatura inglesa. A fim de sacaneá-lo, eu o chamava de Kamenev. Não havia clima de constrangimento careta. "Aqui, Kamenev, como é que você consegue ao mesmo tempo ser meu amigo e do Abreu Sodré?" Ele respondia sem dar muita bola: "Um dia eu te explico". Em contrapartida, a toda pessoa que pisava no nono andar da Folha, ele ia logo me apresentando assim: "Meu caro, mostre o bilhete dentro de sua carteira assinado que você daqui a dez anos estará na direita". O irônico prognóstico de Cláudio Abramo fazia sentido; afinal, várias pessoas que iam visitá-lo tornar-se-iam deputados e senadores pelo PT e PSDB. Curiosamente, em minha boemia contracultural, alguns amigos-da-onça simpatizantes da Libelu (sincronizando Trótski na política com Adorno na cultura) diziam-me cooptado ao establishment. Eu estava fazendo a aproximação pioneira da grande imprensa com a universidade na década de 70. Glauber Rocha, quando me conheceu, fez questão de passar a noite inteira discorrendo sobre a inadequação entre Trótski e o Terceiro Mundo. Apresentado a mim por Cláudio Abramo, nono andar da Folha, Glauber tentava me convencer de que o marxismo no Brasil era um agente colonizador. Cuidado. O marxismo atrapalhou Prestes. O nacionalista Oswald de Andrade sacou melhor o pistoleiro Vargas. É problemática a relação do marxismo com o nacionalismo brasileiro. Ainda que tivesse trabalhado ao lado de Samuel Wainer, nunca dele ouvi falar coisa alguma a respeito de Getúlio Vargas, talvez por Samuel ter sido um jornalista mais rooseveltiano do que getuliano. Intelectualmente Samuel Wainer não me comoveu, assim como não tive nenhum deslumbramento pela inteligência de Paulo Francis. Com Cláudio Abramo e Glauber Rocha meu envolvimento afetivo e intelectual foi mais profundo e duradouro. Tive por eles verdadeira idolatria. Em Cláudio Abramo o internacionalismo sobressaía como traço marcante de seu marxismo. Ele achava intolerável o anti-sovietismo da minha geração, cujo grande engodo foi ter embalado a antinomia "democracia" versus "autoritarismo" gerada nos arquivos da CIA (Agência Central de Inteligência norte-americana) e repercutida pelo Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento).

Estilo e opinião
Cláudio Abramo não morria de amores pela sociologia uspiana que tomaria o poder na década de 90. Ele achava esse pessoal dos "seminários Marx" muito chato. Cláudio me perguntava sempre por Luís da Câmara Cascudo, a despeito de não tê-lo conhecido. Adorava, ria muito quando eu dizia que, por ciumeira autoral, Mário de Andrade contribuíra para sabotar o Cascudo na cultura brasileira. Testemunhei certa ocasião uma conversa do romancista Francis perguntando-lhe: "Por que você não escreve um livro sobre sexo?". Cláudio Abramo respondeu o seguinte: "Eu não tenho idade mais para isso". Cláudio Abramo era um homem bem apessoado, elegante, bonito, charmoso, que movimentava suas belas mãos de marceneiro em perfeita simbiose com a maneira sedutora do "homo loquens", parecido fisicamente com o ator Jardel Filho, que fez o papel de Paulo Martins em "Terra em Transe". Depois da morte de Glauber, em 1981, Cláudio comentava a vaidade doentia de Francis (que sempre teve uma relação problemática com Glauber): "Andam fofocando por aí que Paulo Martins é o Paulo Francis. Você é testemunha da história". A TV até hoje não gerou um jornalista do nível de Cláudio Abramo, o qual nunca foi convidado a dirigir a TV Cultura de São Paulo. Cláudio não tinha a visão nacionalista de Glauber, para quem no Brasil o nacionalismo era o inconsciente estético; no entanto Cláudio nunca foi entreguista nem colonizado. Eu tive a oportunidade de observar como é que ele se comportava no exterior, onde o intelectual brasileiro dá bandeira de seu psiquismo colonizado e do seu complexo de inferioridade cultural. O encontro de Glauber Rocha com Cláudio Abramo foi um desbunde a que assisti emocionado. Glauber vinha bater a cabeça para o melhor jornalista brasileiro, que inspirou em "Terra em Transe" o personagem Paulo Martins, em sintonia com o poeta Mário Faustino, dupla da pesada movida pelo impulso de juntar marxismo e invenção poética. A certa altura da conversa, Glauber, rememorando que Cláudio pagou um almoço para ele em Roma ou em Paris (comparando-o ao florentino Dante e ao marxista Luchino Visconti), disse que Jango não teria caído em 1964 se Cláudio Abramo estivesse no poder em Brasília. Cláudio Abramo tinha verdadeira obsessão pelas causas do golpe de 64, diferentemente da maioria da intelectualidade que se amarra em 68, como se a ditadura tivesse irrompido com o AI-5 na varanda do apê de Francisco Weffort. Ser amigo de Cláudio Abramo despertava inveja e perfídia. Em São Paulo, numa só noite, ele me apresentou Luís Carlos Prestes e José Sarney, quando este era presidente da República. Se Sarney o tivesse nomeado embaixador em Moscou, a União Soviética não teria se transformado num grande McDonald's com o gatão Gorby. Abordou a mídia do ponto de vista da luta de classes. Não demonizou Getúlio Vargas e o Estado Novo, ao contrário do professorado paulista sob a bênção de Armando Salles de Oliveira. Não há originalidade no desejo de Fernando Henrique Cardoso em ser o lídimo coveiro da era Vargas. Destarte, Cláudio não via com bons olhos a falta de convicção ideológica em FHC, cuja pusilanimidade se lhe afigurava reflexo de seu anticomunismo, mas o que acabou confundindo tudo, consequência terrível do golpe de 64, foi a tal luta pelas "liberdades democráticas". Cláudio Abramo se deu mal com o regime militar. FHC se deu bem. A história do Brasil urdida pela determinação midiática. Cláudio Abramo considerava Carlos Lacerda melhor jornalista do que Samuel Wainer, embora a UDN (União Democrática Nacional) de Magalhães Pinto e Jânio Quadros tenha lhe atazanado a vida. Um dia eu lhe perguntei: "É verdade que você é amigo de um famoso banqueiro de São Paulo?". "Banqueiro não tem amigo."

Feitorias "networks"
Cláudio Abramo foi testamenteiro de Oswald de Andrade. Na ressaca pós-balzaquiana não é mais necessário fazer a cabeça da opinião pública para operar funcionalmente no mercado da modernidade pluralista. É difícil encontrar jornalista que escreva com estilo. Opinião e estilo andam juntos. O ocaso do estilo decorre da vacuidade opinativa, ou seja, da falta de idéia.
Para Cláudio Abramo, era impossível existir no Brasil democracia com TV explorada por grupos privados. Feitorias "networks", as televisões deveriam se converter em bens públicos, caso contrário pouca coisa se poderia esperar da opinião pública e sua escolha eleitoral. O racionalismo de Cláudio Abramo não suportava a romantização da rebeldia nem da loucura. O fato é que o grande jornalista não deixou discípulos.



Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de ciências sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor, entre outros, de "O Príncipe da Moeda" (Ed. Espaço e Tempo) e "O Xará de Apipucos" (Casa Amarela).


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