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+ memória
Saudades de Cláudio Abramo
Gilberto Vasconcellos
especial para a Folha
Considero-me sortudo na vida
porque, quando jovem, privei
com o jornalista Cláudio, nono
andar da Folha, 1977. Fui por ele
convidado a exercer a função de editorialista.
Doutorado em ciências sociais pela
USP, tinha 27 anos e trabalhava como
professor horista (essa aberração profissional) na Fundação Getúlio Vargas. Minha tese em sociologia era sobre o integralismo. Escrevi um artigo intitulado
"Última Flor do Fáscio?".
No mesmo dia em que saiu publicado
o artigo, recebi um telefonema engraçado de Cláudio Abramo, dizendo que eu
era o único acadêmico que sabia escrever. Estava posto o convite para ajudá-lo.
"Você vai pagar o meu psicanalista?" Ele
me respondeu: "Dinheiro não é comigo". Detalhe é que eu nunca frequentei
psicanalista algum. Antes ou depois.
Quando fui conhecê-lo no jornal, fiquei
bastante impressionado com a sua simpatia e inteligência.
Era delicioso ouvir Cláudio Abramo
falando sobre a Revolução Russa. Em
meio aos editoriais, dissertava sobre os
caminhos e descaminhos da revolução
de 1917 ou senão sobre o uso do ponto e
vírgula na literatura inglesa.
A fim de sacaneá-lo, eu o chamava de
Kamenev. Não havia clima de constrangimento careta. "Aqui, Kamenev, como
é que você consegue ao mesmo tempo
ser meu amigo e do Abreu Sodré?" Ele
respondia sem dar muita bola: "Um dia
eu te explico". Em contrapartida, a toda
pessoa que pisava no nono andar da Folha, ele ia logo me apresentando assim:
"Meu caro, mostre o bilhete dentro de
sua carteira assinado que você daqui a
dez anos estará na direita".
O irônico prognóstico de Cláudio
Abramo fazia sentido; afinal, várias pessoas que iam visitá-lo tornar-se-iam deputados e senadores pelo PT e PSDB. Curiosamente, em minha boemia contracultural, alguns amigos-da-onça simpatizantes da Libelu (sincronizando Trótski na política com Adorno na cultura) diziam-me cooptado ao establishment. Eu
estava fazendo a aproximação pioneira
da grande imprensa com a universidade
na década de 70.
Glauber Rocha, quando me conheceu,
fez questão de passar a noite inteira discorrendo sobre a inadequação entre
Trótski e o Terceiro Mundo. Apresentado a mim por Cláudio Abramo, nono andar da Folha, Glauber tentava me convencer de que o marxismo no Brasil era
um agente colonizador. Cuidado. O
marxismo atrapalhou Prestes. O nacionalista Oswald de Andrade sacou melhor
o pistoleiro Vargas.
É problemática a relação do marxismo
com o nacionalismo brasileiro. Ainda
que tivesse trabalhado ao lado de Samuel
Wainer, nunca dele ouvi falar coisa alguma a respeito de Getúlio Vargas, talvez
por Samuel ter sido um jornalista mais
rooseveltiano do que getuliano.
Intelectualmente Samuel Wainer não
me comoveu, assim como não tive nenhum deslumbramento pela inteligência
de Paulo Francis. Com Cláudio Abramo
e Glauber Rocha meu envolvimento afetivo e intelectual foi mais profundo e duradouro. Tive por eles verdadeira idolatria. Em Cláudio Abramo o internacionalismo sobressaía como traço marcante
de seu marxismo. Ele achava intolerável
o anti-sovietismo da minha geração, cujo grande engodo foi ter embalado a antinomia "democracia" versus "autoritarismo" gerada nos arquivos da CIA (Agência Central de Inteligência norte-americana) e repercutida pelo Cebrap (Centro
Brasileiro de Análise e Planejamento).
Estilo e opinião
Cláudio Abramo
não morria de amores pela sociologia uspiana que tomaria o poder na década de
90. Ele achava esse pessoal dos "seminários Marx" muito chato. Cláudio me perguntava sempre por Luís da Câmara
Cascudo, a despeito de não tê-lo conhecido. Adorava, ria muito quando eu dizia
que, por ciumeira autoral, Mário de Andrade contribuíra para sabotar o Cascudo na cultura brasileira.
Testemunhei certa ocasião uma conversa do romancista Francis perguntando-lhe: "Por que você não escreve um livro sobre sexo?". Cláudio Abramo respondeu o seguinte: "Eu não tenho idade
mais para isso".
Cláudio Abramo era um homem bem
apessoado, elegante, bonito, charmoso,
que movimentava suas belas mãos de
marceneiro em perfeita simbiose com a
maneira sedutora do "homo loquens",
parecido fisicamente com o ator Jardel
Filho, que fez o papel de Paulo Martins
em "Terra em Transe". Depois da morte
de Glauber, em 1981, Cláudio comentava
a vaidade doentia de Francis (que sempre teve uma relação problemática com
Glauber): "Andam fofocando por aí que
Paulo Martins é o Paulo Francis. Você é
testemunha da história".
A TV até hoje não gerou um jornalista
do nível de Cláudio Abramo, o qual nunca foi convidado a dirigir a TV Cultura de
São Paulo.
Cláudio não tinha a visão nacionalista
de Glauber, para quem no Brasil o nacionalismo era o inconsciente estético; no
entanto Cláudio nunca foi entreguista
nem colonizado. Eu tive a oportunidade
de observar como é que ele se comportava no exterior, onde o intelectual brasileiro dá bandeira de seu psiquismo colonizado e do seu complexo de inferioridade cultural.
O encontro de Glauber Rocha com
Cláudio Abramo foi um desbunde a que
assisti emocionado. Glauber vinha bater
a cabeça para o melhor jornalista brasileiro, que inspirou em "Terra em Transe" o personagem Paulo Martins, em sintonia com o poeta Mário Faustino, dupla
da pesada movida pelo impulso de juntar marxismo e invenção poética. A certa
altura da conversa, Glauber, rememorando que Cláudio pagou um almoço
para ele em Roma ou em Paris (comparando-o ao florentino Dante e ao marxista Luchino Visconti), disse que Jango
não teria caído em 1964 se Cláudio Abramo estivesse no poder em Brasília. Cláudio Abramo tinha verdadeira obsessão
pelas causas do golpe de 64, diferentemente da maioria da intelectualidade
que se amarra em 68, como se a ditadura
tivesse irrompido com o AI-5 na varanda
do apê de Francisco Weffort.
Ser amigo de Cláudio Abramo despertava inveja e perfídia. Em São Paulo, numa só noite, ele me apresentou Luís Carlos Prestes e José Sarney, quando este era
presidente da República. Se Sarney o tivesse nomeado embaixador em Moscou,
a União Soviética não teria se transformado num grande McDonald's com o
gatão Gorby.
Abordou a mídia do ponto de vista da
luta de classes. Não demonizou Getúlio
Vargas e o Estado Novo, ao contrário do
professorado paulista sob a bênção de
Armando Salles de Oliveira. Não há originalidade no desejo de Fernando Henrique Cardoso em ser o lídimo coveiro da
era Vargas. Destarte, Cláudio não via
com bons olhos a falta de convicção
ideológica em FHC, cuja pusilanimidade
se lhe afigurava reflexo de seu anticomunismo, mas o que acabou confundindo
tudo, consequência terrível do golpe de
64, foi a tal luta pelas "liberdades democráticas".
Cláudio Abramo se deu mal com o regime militar. FHC se deu bem. A história
do Brasil urdida pela determinação midiática. Cláudio Abramo considerava
Carlos Lacerda melhor jornalista do que
Samuel Wainer, embora a UDN (União
Democrática Nacional) de Magalhães
Pinto e Jânio Quadros tenha lhe atazanado a vida. Um dia eu lhe perguntei: "É
verdade que você é amigo de um famoso
banqueiro de São Paulo?".
"Banqueiro não tem amigo."
Feitorias "networks"
Cláudio
Abramo foi testamenteiro de Oswald de
Andrade. Na ressaca pós-balzaquiana
não é mais necessário fazer a cabeça da
opinião pública para operar funcionalmente no mercado da modernidade pluralista. É difícil encontrar jornalista que
escreva com estilo. Opinião e estilo andam juntos. O ocaso do estilo decorre da
vacuidade opinativa, ou seja, da falta de
idéia.
Para Cláudio Abramo, era impossível
existir no Brasil democracia com TV explorada por grupos privados. Feitorias
"networks", as televisões deveriam se
converter em bens públicos, caso contrário pouca coisa se poderia esperar da
opinião pública e sua escolha eleitoral. O
racionalismo de Cláudio Abramo não
suportava a romantização da rebeldia
nem da loucura. O fato é que o grande
jornalista não deixou discípulos.
Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de
ciências sociais da Universidade Federal de Juiz de
Fora (MG) e autor, entre outros, de "O Príncipe da
Moeda" (Ed. Espaço e Tempo) e "O Xará de Apipucos" (Casa Amarela).
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