São Paulo, domingo, 29 de outubro de 2000

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Em "Inglaterra, Inglaterra" Julian Barnes transforma seu país em um parque temático e faz uma sátira corrosiva de sua política e costumes
Ilha para inglês não ver

Fábio de Souza Andrade
especial para a Folha

Imagine um homem de visão, um megaempresário que arrendasse a ilha de Marajó (PA) e nela instalasse uma miniatura de Brasil para inglês ver, juntando, num só lugar, tudo que há sob o céu do Oiapoque ao Chuí: praias, sensualidade dos trópicos, coqueiros que dão coco, mãe preta no cerrado, cadinho de raças, japonês no samba, arte naïf, um tantinho de miséria pitoresca, bom futebol de priscas eras, bananas e café, tapioca e vatapá, fauna e flora exuberantes, de encher os olhos. Imagine, nessa ilha, réplicas de nossos mais caros monumentos kitsch, dos prédios de Niemeyer, um Pelourinho dois, uma profusão de templos e terreiros, um Carnaval e um Círio de Nazaré por semana, bumba-meu-boi e farra do boi, duas vezes ao dia. Imagine, em debate público permanente, coronéis nordestinos, populistas urbanos, ilustres representantes do tucanato, um punhado de sem-terra. Separatista, a ilha reclamaria soberania e, livre de nepotismo, burocracia e corrupção, implantaria uma administração de qualidade total, zelando pelos interesses da corporação gestora. Longe das dentadas do fisco brasileiro e das amarras de uma constituição prolixa, estaria pronta para transformar seu território em destino prioritário dos turistas endinheirados de todo o mundo.

Essência de uma caricatura
Troque-se Marajó pela ilha de Wight, o Brasil pela Inglaterra, turistas ingleses por americanos e japoneses e aí está a receita de "Inglaterra, Inglaterra", divertida sátira política e de costumes de Julian Barnes ("O Papagaio de Flaubert", "Em Tom de Conversa", "O Porco-Espinho", "Uma História do Mundo em 10 Capítulos e Meio"). Um dos expoentes do romance britânico recente, Barnes compartilha com seus contemporâneos a origem (Oxbridge), um verniz de bom gosto e refinamento "high brow" e um fascínio, mais ou menos envergonhado, pelo sucesso de mercado. Casado com uma agente editorial de primeira linha, Barnes já foi editor de suplementos de cultura, lexicógrafo do "Oxford English Dictionary" e crítico de televisão. Assinou sob pseudônimo (Dan Cavanagh, o sobrenome é da mulher) uma série de romances policiais, protagonizados por um encarregado de segurança de sistemas bissexual. Essência de uma caricatura, a ilha da ilha, reproduzida como parque temático, não é uma Inglaterra qualquer, mas a dos almanaques e panfletos de turismo, o país da fleuma, da família real e da cerveja quente, da troca da guarda, de Robin Hood e do Manchester United. A idéia de Barnes, engenhosa, tira sua graça de expor a sobrevivência de traços culturais, orgulho auto-suficiente e apego ferrenho à tradição local, entre eles, em meio à experiência de um poder nacional declinante, à nova globalização da economia, à força política das grandes corporações multinacionais. Os limites entre realidade e ficção (turismo traz mesmo recursos que governo algum despreza e empresários de fato já cogitaram criar nações-paraísos fiscais particulares), o mundo do simulacro, do culto à reprodução e da emoção virtual são cutucados com a vara curta do riso solto.

Simpatia nostálgica
Dividido em três partes, o livro mostra a gênese do projeto de Jack Pitman pelos olhos cínicos de Martha Cochrane, acompanhados desde sua infância em meio às tradicionais feiras agrícolas dos vilarejos campestres e precoce embotamento emocional. O miolo do livro traz a experiência em funcionamento, concentrando a sátira e apresentando o golpe que, por meio de chantagem com o comportamento sexual heterodoxo do magnata, leva Martha à gerência geral dos negócios da ilha.
Na terceira parte, o interesse volta-se para a velha Inglaterra, que, abandonada pelos turistas que preferem a réplica ao original, involui para um estágio pré-capitalista. Rebatizada Anglia, adota um estilo de vida primitivo e tribal sem energia elétrica, sem estradas, tomada por uma renascente vegetação selvática, e acaba por acolher de volta a protagonista, caída em desgraça na empresa, para nela passar seus últimos dias.
A simpatia nostálgica com que Barnes escreve sobre esta Anglia e as festas rurais da primeira parte, escapando ao tratamento satírico dado ao parque, imagem escrita e escarrada da Inglaterra atual, é um pouco desconcertante. Mostram que é mais fácil, hoje, saber onde não apostar suas fichas do que o que fazer com elas. O riso ainda é um santo remédio.



Inglaterra, Inglaterra
256 págs., R$ 28,00 de Julian Barnes. Tradução de Roberto Grey. Ed. Rocco (rua Rodrigo Silva, 26, 5º andar, Rio de Janeiro, RJ, tel. 0/xx/21/ 507-2000).



Fábio de Souza Andrade é professor de teoria literária na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e autor de "O Engenheiro Noturno - A Lírica Final de Jorge de Lima" (Edusp).


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