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Em "Inglaterra, Inglaterra" Julian Barnes transforma seu país em um parque
temático e faz uma sátira corrosiva de sua política e costumes
Ilha para inglês não ver
Fábio de Souza Andrade
especial para a Folha
Imagine um homem de visão, um megaempresário
que arrendasse a ilha de Marajó (PA) e nela instalasse
uma miniatura de Brasil para inglês ver, juntando,
num só lugar, tudo que há sob o céu do Oiapoque ao
Chuí: praias, sensualidade dos trópicos, coqueiros que
dão coco, mãe preta no cerrado, cadinho de raças, japonês no samba, arte naïf, um tantinho de miséria pitoresca, bom futebol de priscas eras, bananas e café, tapioca e
vatapá, fauna e flora exuberantes, de encher os olhos.
Imagine, nessa ilha, réplicas de nossos mais caros monumentos kitsch, dos prédios de Niemeyer, um Pelourinho dois, uma profusão de templos e terreiros, um
Carnaval e um Círio de Nazaré por semana, bumba-meu-boi e farra do boi, duas vezes ao dia. Imagine, em
debate público permanente, coronéis nordestinos, populistas urbanos, ilustres representantes do tucanato,
um punhado de sem-terra. Separatista, a ilha reclamaria soberania e, livre de nepotismo, burocracia e corrupção, implantaria uma administração de qualidade
total, zelando pelos interesses da corporação gestora.
Longe das dentadas do fisco brasileiro e das amarras de
uma constituição prolixa, estaria pronta para transformar seu território em destino prioritário dos turistas
endinheirados de todo o mundo.
Essência de uma caricatura
Troque-se Marajó
pela ilha de Wight, o Brasil pela Inglaterra, turistas ingleses por americanos e japoneses e aí está a receita de
"Inglaterra, Inglaterra", divertida sátira política e de
costumes de Julian Barnes ("O Papagaio de Flaubert",
"Em Tom de Conversa", "O Porco-Espinho", "Uma
História do Mundo em 10 Capítulos e Meio").
Um dos expoentes do romance britânico recente, Barnes compartilha com seus contemporâneos a origem
(Oxbridge), um verniz de bom gosto e refinamento
"high brow" e um fascínio, mais ou menos envergonhado, pelo sucesso de mercado. Casado com uma agente
editorial de primeira linha, Barnes já foi editor de suplementos de cultura, lexicógrafo do "Oxford English Dictionary" e crítico de televisão. Assinou sob pseudônimo
(Dan Cavanagh, o sobrenome é da mulher) uma série
de romances policiais, protagonizados por um encarregado de segurança de sistemas bissexual.
Essência de uma caricatura, a ilha da ilha, reproduzida como parque temático, não é uma Inglaterra qualquer, mas a dos almanaques e panfletos de turismo, o
país da fleuma, da família real e da cerveja quente, da
troca da guarda, de Robin Hood e do Manchester United. A idéia de Barnes, engenhosa, tira sua graça de expor a sobrevivência de traços culturais, orgulho auto-suficiente e apego ferrenho à tradição local, entre eles,
em meio à experiência de um poder nacional declinante, à nova globalização da economia, à força política das
grandes corporações multinacionais. Os limites entre
realidade e ficção (turismo traz mesmo recursos que
governo algum despreza e empresários de fato já cogitaram criar nações-paraísos fiscais particulares), o mundo do simulacro, do culto à reprodução e da emoção
virtual são cutucados com a vara curta do riso solto.
Simpatia nostálgica
Dividido em três partes, o livro mostra a gênese do projeto de Jack Pitman pelos
olhos cínicos de Martha Cochrane, acompanhados desde sua infância em meio às tradicionais feiras agrícolas
dos vilarejos campestres e precoce embotamento emocional. O miolo do livro traz a experiência em funcionamento, concentrando a sátira e apresentando o golpe
que, por meio de chantagem com o comportamento sexual heterodoxo do magnata, leva Martha à gerência geral dos negócios da ilha.
Na terceira parte, o interesse volta-se para a velha Inglaterra, que, abandonada pelos turistas que preferem a
réplica ao original, involui para um estágio pré-capitalista. Rebatizada Anglia, adota um estilo de vida primitivo e tribal sem energia elétrica, sem estradas, tomada
por uma renascente vegetação selvática, e acaba por
acolher de volta a protagonista, caída em desgraça na
empresa, para nela passar seus últimos dias.
A simpatia nostálgica com que Barnes escreve sobre
esta Anglia e as festas rurais da primeira parte, escapando ao tratamento satírico dado ao parque, imagem escrita e escarrada da Inglaterra atual, é um pouco desconcertante. Mostram que é mais fácil, hoje, saber onde
não apostar suas fichas do que o que fazer com elas. O
riso ainda é um santo remédio.
Inglaterra, Inglaterra
256 págs., R$ 28,00
de Julian Barnes. Tradução de
Roberto Grey. Ed. Rocco (rua
Rodrigo Silva, 26, 5º andar, Rio
de Janeiro, RJ, tel. 0/xx/21/ 507-2000).
Fábio de Souza Andrade é professor de teoria literária na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e autor de "O Engenheiro Noturno - A Lírica Final de Jorge de Lima" (Edusp).
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